26/09/2022

And that awkward moment # 67

em que recebes uma mensagem a anunciar a missa por alma de uma pessoa tua parente — e, consequentemente, a sua morte, facto que desconhecias —, em que a imagem de perfil é da própria, e toda ela  escrita na primeira pessoa do singular. Tipo aquele falso e maravilhoso bilhete de suicídio da personagem Sebastião do Pôr do Sol, quando foi assassinado: 

Boa tarde, 

Matei-me. Adeus e boa continuação, 

só que com a nuance Morri, venham à missa comemorativa do primeiro mês.

Dúvidas houvesse sobre a minha muito remota, porém provável, disfuncionalidade, eis uma possível explicação, com parentescos deste nível. É que nem a desculpa de se tratar do enredo de uma novela cómica tenho. Isto é a vida real. A minha vida.

Ainda estou em posição fetal. Tenho medo de partilhar genética com pessoas humanas que tomam estas iniciativas. 

Não vou comparecer à dita missa. Nunca se sabe.


23/09/2022

Exposição imersiva, submersiva, subversiva, interactiva, tudo em um

Olá, esta sou eu a cultivar-me. 

Chego à Mãe d’Água (nome mais bonito, recuso-me a chamar-lhe reservatório) para ver uma exposição sobre o Egipto, embora estivesse lá escrito “Egito”. Ou era “Egipo”? Ou “Epigo”? Olhem, não sei. Fui. Ainda proibida de ir à praia, um domingo assaz ventoso, peguei em dois familiares e aqui vai dela. Lá chegados, somos informados na bilheteira de que cada entrada (plateia em pé, porque sentados era um preço que eu esqueci imediatamente) custa doze paus, mas que, se fizermos prova de sermos moradores em Lisboa, passa milagrosamente para dez. Acho isto uma xenofobia interna, mas siga. Fiquei tão nervosa que só me apeteceu dizer com sutak dos Açores, “Atã num se vê lóg que sumos de Lisbôa?”, mas contive-me porque, efectivamente, queria poupar seis dele. Fizemos a tal prova com as cartas de condução (donde se conclui que, quem não conduz, não entra), mas em que só uma delas (por ser mais recente) continha a morada. Porém, aquele meu ar afectado e possidoninho de revolta (a terceira em minuto e meio), denunciou a minha origem lisboeta e a senhora cedeu ao óbvio. Deslargados logo ali seis contos de réis, lá entrámos para aquela sala belíssima e sinistra que tem um lago ao meio, onde um segurança nos indicou o caminho para os melhores lugares (em pé, já referi?), que eram exactamente ao lado dele, mas que, para alcançarmos sem que ele tivesse que retirar uma fita amovível, teríamos que dar a volta completa à sala (vá lá que sem um mergulhinho pelo meio, à laia de brinde), que tem seguramente seiscentos e qualquer coisa metros quadrados. Eu cá liguei a lanterna do telemóvel, porque se há coisa que me dá angústia é andar às escuras em sítios que não conheço. Isso e cheiro a suor, mas já lá vamos. Chegámos ao local indicado — a zona dos lugares sentados cheia que nem um ovo, pois isto é povo que não pode pagar o arroz e o feijão, mas lá ficar em pé meia hora é que nem ponderar —, local aprazível, fresco, cheio de espaço e um varandim para a pessoa apoiar os cotovelos ou outra articulação qualquer, e eis que chega uma família de quatro elementos, era o pai, era a mãe, era a adolescente parva e a criança sossegada, e, num espaço de vinte e cinco metros de comprimento, todo ele disponível, em quem é que a tonta vem encostar-se? Adivinharam. (Covid, aquele vírus maroto, jamais será vencido.) A exposição começou, a catraia sentou-se na varanda, de costas para as imagens, e eu desejei com ardor que ela submergisse nas águas da Mãe d’. O pai da dita considerou, com certeza, que nós éramos uns privilegiados em termos de localização, porque foi colocar-se exactamente atrás de mim. Lembro que tínhamos à disposição uma parede com vinte e cinco metros para nos colocarmos (para além das outras três com mais vinte e cinco metros cada uma) e que foram vendidos, ao todo, treze bilhetes da modalidade em pé. Lembro ainda que Covid.

Tinham-nos fornecido à entrada uns headphones com uma caixinha, para ouvirmos a explicação das imagens projectadas na parede, ao som da voz de Ricardo Carriço, dramatiquíssimo, olhem, até tive medo cada vez que ele dizia Tutankamon. Também foi o único nome que fixei, uma vez que já o conhecia. 

Do lado de lá da fita de segurança, mesmo ao meu lado, instalaram uma família que chegou atrasada, constituída por pai, mãe e bebé. Arranjaram-lhes cadeiras, eles sentaram-se, tiraram o bebé do marsúpio e deitaram-no no chão de pedra. Cheiravam tanto a suor que tive oportunidade de ver a exposição em quatro dimensões. 

Não sei se recomendo, vou pensar. Sei que vou passar a ir cultivar-me para outras paragens, nem que seja numa alfaia agrícola.



17/09/2022

Read the fucking manual

Ando cá a matutar em escrever um manual de instruções — porque sinto que não tenho estudos para publicar um livro — sobre “Como lidar com alguém que tem cancro”. A ideia é um bocado alcançar o Pulitzer, o Nobel, ganhar uns cêntimos, mas, essencialmente, ensinar o Outro, espalhando a palavra. Já o alinhavei e tenho, assim sendo, alguns vectores:

1. Não ignores, nem a doença nem o doente. Não finjas que não o vês (oh, como seria bom adquirir o dom da invisibilidade, mas não por essa via), não evites falar-lhe no assunto, não fujas. Se não tens nada para dizer, pergunta apenas: “Como é que estás?”. Simples, assim;

2. Não tenhas medo das palavras. Podes dizer “cancro” à frente de uma pessoa com cancro. “Um problema”, “a doença”, “isso que tens” são eufemismos. Mete-os no coiso, agora não me lembro do nome. Cancro, está bem?

3. Não digas “Estou aqui para o que precisares” quando não estás. Ninguém espera que sejas mais nem melhor do que és, prometer o irrealizável é só um desperdício de saliva, agravado se for escrito nas redes sociais, para o povaréu ver e se comover com tamanha bondade;

4. Não massacres com as tuas pequenas maleitas, olímpicas diarreias e sintomas de covid. Uma pessoa com cancro está-se completamente cagando para as tuas desinterias sazonais ou porque abusaste dos enchidos;

5. Abraça. Dá a mão. Faz uma festa na cara. Aperta as duas mãos. Olha dentro dos olhos. Evita os clichés, “Vai correr tudo bem”. Isso não tem qualquer base científica e a pessoa que está doente sabe. Pode correr e pode não. Mas abraça sempre e nunca com segundas intenções. Percebe que a libido de um doente de cancro é muito semelhante à de um calhau. Não. Lhe. Apetece. Pinar;

6. Não exageres na simpatia. A condescendência, a súbita cortesia quando foste uma besta até agora, a compreensão desmedida, cheiram a piedade e a piedade cheira mal. Age normalmente, sem demasiados “Estás tão linda”. Ninguém se sente tão linda quando carrega consigo uma doença que mata e cujos tratamentos a desfiguram;

7. Não dês espaço sem que a pessoa te peça. Dar espaço é desaparecer. Cómodo para quem salta fora, demolidor para quem fica, doente e só;

8. Deixa a pessoa respirar. É ela que acorda e se deita todos os dias com o monstro escuro. Para onde quer que se vire tem-no na sombra. Sobrecarregá-la com mais inputs é tão inútil quanto cruel;

9. Não desvalorizes. Há quem se ria do seu próprio cancro, há quem chore rios e oceanos, há quem se mantenha à tona, mas todos, sem excepção, têm uma pistola apontada à cabeça para o resto da vida, e, para viver assim, nem todos têm tomates;

10. Se não puderes fazer nada disto, vai ver se está a chover. 


12/09/2022

Voltei às pistas

O fenómeno deu-se há duas semanas, ainda faltavam nove tratamentos para acabar a radioterapia. Ao contrário do que o povo julga, eu não sou valente nem corajosa: sou das maiores e mais temíveis teimosas que conheço. Tinha consultado o oráculo da aplicação que me mede as maratonas e concluí que havia corrido pela última vez há oito meses, cinco dias antes de começar a quimioterapia. Não acredito nisto, porque não tenho nada ideia de ter corrido dez quilómetros já com o diagnóstico feito. Mas, se a aplicação diz, deve ser verdade.

Os primeiros duzentos metros, fi-los em subida, o que foi bastante inteligente da minha parte: tive, desta forma, a clara noção do que é ser um carro de bois, em que eu era o animal de tracção e os bois iam lá atrás, deitados no carro, de papo para o ar. Ponderei seriamente a possibilidade de me sentar no chão e deixar correr o marfim, porque estava quase a mascar os pulmões e a fazer um balão com eles.

Teimosa como uma mula, arre burra, obriguei-me a pensar noutra coisa, tipo trapos bonitos, e siga. Fiz o percurso que fazia há oito meses, determinada a, em vez de dar dez voltas ao largo — o que fazia das minhas corridas qualquer coisa de bastante monótono e aborrecido, mas tinha a vantagem de 1. Saber que aquelas dez voltas representavam cinco quilómetros; 2. Não corria (passe o pleonasmo) o risco de me perder, se fosse em linha recta —, dar apenas uma. A ideia era correr um quilómetro ou dois, na loucura. Cheguei ao largo e ele estava transformado numa feira, com farturas, churros e porras, tudo menos livros. Tive que contornar dezenas de barracas de louça e cacos, tapetes e cenas que desconheço para o que servem, mas dei a volta completa ao largo e, quase morta dos bofes, voltei ao lar. 

A aplicação somou cinco quilómetros, mas acho sinceramente que estava toda avariada de saudades. Na semana seguinte fui correr para o estádio universitário, que é só lombas, parece uma pista de motocross, e, aos três quilómetros, toda eu era suor e sei lá que mais porcarias. Aguentei até aos cinco e meio e basicamente estraguei o meu domingo. 

Tenho que ir mais devagar, dizem os outros humanos. Mais devagar do que isto, nem as velhinhas das caminhadas. Ou faço moonwalk, que sempre justifica a lentidão da actividade.



04/09/2022

Os meus becos

Então, acabo a radioterapia na próxima quinta-feira. Comentei o facto com uma desvairada do ginásio, que só conheço de lá, e que me esbugalhou os olhos e afirmou, peremptória: “Na sexta-feira trazes uma garrafa de champanhe”. Perante a minha hesitação, “Não gostas de champanhe?”, eu “Heh, neste momento não gosto de quase nada.”, “Então, tinto. Gostas de tinto?” [Não sei que parte de “nada” é que ela não percebeu.] “Dá-me sono. Imediatamente. Tipo coma. Uma vez adormeci a meio de uma conversa com a minha cunhada.” “E branco, gostas?”, “Sim, mas tem que estar fresco. Também gosto de Rosé.” Ela, a torcer o nariz e a processar a ideia, cinco enormes segundos: “Gostas de Rosé?”. “Gosto. Mas tem que estar fresco.” E eu a dar-lhe, no fundo a arranjar uma desculpa para me livrar da carraça. O ginásio não vai guardar uma garrafa no frigorífico dos funcionários porque há uma borracholas que quer comemorar o fim dos tratamentos de uma desgraçadinha mal agradecida. Ela outra vez com uma paragem da boneca, os olhos escancarados e o sorriso congelado no seu expoente máximo. Procurei demovê-la: “Não acho muito boa ideia, repara: antes da aula, vamos para lá enjoar”. [Poupei-a à vez em que, calor assassino, tempo de sobra e muita gula por um prato de tremoços, emborquei uma cerveja antes da aula e ainda hoje desconheço como é que não expeli tudo cá para fora — tremoços incluídos — a meio de uma pirueta.] “Depois da aula, pior ainda: a noite já caiu, não vamos ficar as duas no meio da rua de copo na mão. E preciso de conduzir em segurança para casa.” Ela ainda argumentou que “o professor podia juntar-se a nós”, mas isto porque ela tem um crush por ele, que eu, lamento, não tenho.

Antes da aula, tinha-me perguntado como é que eu estou psicologicamente. “Acredita que, desde o início, ainda não deitei uma única lágrima”. [Não contam duas chatices que tive entretanto e aproveitei para purgar umas quantas a mais que tinha cá engasgadas.] “Mas tens que deitar. E vais deitar. E vai ser comigo que vais deitá-las.”

Eu não quero beber com ela. Eu não quero chorar com ela.


01/09/2022

The girl next door # 18

Por razões que desconheço em absoluto, que tanto podem prender-se com uma extrema empatia para com o outro (ser humano) — aspirando a que, se todas as pessoas fossem como eu, ninguém andaria com a blusa do avesso na rua —, um TOC de não poder ver nada fora do lugar, ou simplesmente porque tenho a mania que sou estupendaça, outro dia corri a avisar uma vizinha de que ela trazia as cuecas à mostra.

Vinha eu com meu Pacheco — comprei um carrinho para me alombar com as compras, tipo velhas no mercado, e assim lhe chamei, em homenagem à grande Hermínia Silva e seu guitarrista —, quando vislumbro, ao fundo da rua, a minha vizinha de baixo, senhora para os seus setenta e picos e de carnes abastada, que, após despejar várias garrafas de vinho no vidrão, se preparava para entrar num carro daqueles que têm uma etiqueta TVDE. Subitamente, ela move-se, exibe-me a traseira e vejo-lhe, não o traseiro, convenhamos, mas a cueca, com a saia toda ali entalada. Quem nunca? Só quem não usa saias, uma percentagem quase irrisória da população mundial. Basta um chichi à pressa, há um repuxar mais desajeitado das pregas-laregas do vestido-larido, e lá se vai para a rua, enfrentando o(s) desconhecido(s) de pernas até ao quadril e cuecas à vela. 

Foi uma sensação de quase pânico, a que me tomou, mas, como sempre nessas, agi imediatamente. Dava para bombeira. Ou paramédica (paranóica, mas sim). Ou super-heroína, drug free. Desato então a correr na direcção da vizinha, Pacheco a reboque, quando me lembro que não sei o nome dela (apesar de vivermos sob o mesmo tecto vai para trinta anos), então foi mesmo de “Ó vizinha! Ó vizinha!”, como naqueles bairros, e ela a meter-se no carro e a fechar a porta. “Queres ver que vou morrer na praia?”, pensava meu músculo cardíaco todo acelerado. Felizmente, e porque existe um pequeno compasso de espera entre a pessoa entrar no carro e o motorista arrancar, alcancei-o, bati desesperadamente no vidro, a vizinha abriu a porta e disse-lhe: “Tem a saia presa nas cuecas”. “Estou indecente?”, respondeu ela, num risinho de nervos. “Está.” Estive mesmo para lhe recomendar passar a andar sem cuecas, a ver se estas coisas não voltam a acontecer-lhe.