22/03/2024

Intervencionada(s)

Há cerca de meia dúzia de semanas a dividir por dois, a pessoa foi a intervencionar. A radioterapia arrasou com uma das meninas e elas brigavam todo o dia. Como a paciência tem limites, resolvi acabar com o assunto, eu sou mais redonda, eu estou mais alta, tu estás mais dura, és feia, és mais baixa, um ror de insultos que marquei, fui avisada na semana anterior que era "para a semana", nada de exames e análises feitos, no dia seguinte aviei tudo numa pernada só. 

Vai daí, dou entrada. Não me lembro de estar tão bem disposta e sem uma pinga de nervos num internamento. A pobre da auxiliar insistiu em carregar a minha mala, que ainda hoje não sei o que levava lá dentro que pesava uma bigorna mais motor automóvel, a desgraçada percorreu dois corredores com aquilo na mão, mais pequena e magra do que eu, toda inclinada para o lado do monstro, mas ela quase me arrancou o peso pesado das mãos, quem sou eu para entrar em lutas físicas para a seguir carregar um boi? Deixou aquilo num quarto duplo, onde já pairava uma senhora e um biombo separava as nossas camas. Não entabulei logo conversações, pois nunca sei se me sai uma azeda ao caminho, e esperei que ela o fizesse, se quisesse. Estava já vestida com a bata cirúrgica, os chinelos e as meias de contenção. Os olhos estavam semi-cerrados, entre o Jessica Rabbit e o Marlene Dietrich. Disse-me que lhe tinham dado "uma coisinha" para acalmar e que também me iam dar a mim. Respondi-lhe que sou resistente a "isso", mas tudo bem, podiam dar-me cicuta ou cianeto, que eu tomava na mesma, desde que me acordassem com as meninas no lugar e mais pequenas, mas gémeas idênticas. 

Não perguntei, mas ter-me-ia arrependido se tivesse perguntado: "Eu vou ser operada às hemorróidas". A única parte boa da coisa foi ter logo concluído que não era com o meu médico - o senhor é um cavalheiro, não faz essas coisas - e, portanto, não me passaria à frente. 

Chega a enfermeira, daquelas pessoas que só são bonitas ao perto (ao longe, meh) com a bata e os chinelos. Perguntei pelas meias, respondeu, olhos abertos de ameaça para os meus (mal sabe ela que eu tenho tanto medo de enfermeiras como de baratas. Zero), furibunda porque se havia esquecido das meias e não queria dizer. "As meias não se põem em qualquer cirurgia". "Pois, mas eu vou pôr meias. Trago dois pares na mala (queres ver que era isso que pesava os cornos?) e, seguramente, não ponho os pés na sala de cirurgia sem elas. Já as uso desde a minha terceira cesariana e, desde lá, quer que lhe conte quantas vezes fui operada? Digo-lhe que adormece". Então explicou-me que as meias de contenção só se usam em cirurgias com duração superior a quinze minutos. Revirei os olhos mentalmente, imaginei o meu médico a tratar do meu assunto num quarto de hora, ou então aparecer ao dentista dos olhos bonitos com aquela porra enfiada nas pernas e sorri, falsa, enquanto ela ia buscar as meias e me metia um comprimido debaixo da língua. 

Não tive sono até, já no bloco, me injectarem uma poderosa droga veias afora. Antes disso, ainda me lembro de me mostrarem a touca verde, e eu sobrepor as duas mãos sobre a cara, gemendo: "Não, a touca não, por favor, não quero pôr isso, fica-me malíssimo!". Depois apaguei.

Acordei no melhor dos mundos, sem touca. Está tudo bem com as gémeas. 

12/03/2024

Botei

o voto na urna. Não foi fácil. Pelo caminho, cerca de seiscentos metros, ainda ia, já não como em tempos — a fazer undolitá — a votar mentalmente por exclusão de partes “Neste não, naquele nem pensar, no coiso era o que faltava”. Como sempre, fiquei na sala exclusiva das Marias, de Maria Eduarda a Maria Viviana. Tinha tido um cuidado desmesurado a escolher a hora para ir exercer os meus direitos, que os tenho, minha senhora, para não encontrar as caridosas do “Estás bem?”, a enterrarem os olhos nos meus, uns ares tão sérios que julgo que vão ralhar-me já, já, eu naquela, “Estou, estou bastante bem, que eu saiba”, elas logo a amolecer o olhar, “Isso é que é preciso, espírito positivo”, como quem diz, “Coitada, diz que está bem, é deixá-la viver na ilusão de que não é a primeira de nós todos a morrer”, sabem lá elas se dali a cinco minutos não vem uma betoneira desgovernada que as mistura com o cimento. Escolhi tão afincadamente a hora, que as encontrei todas, mas consegui tornar-me invisível à mais empenhada, que quis um dia tomar café comigo no pós-tratamentos e esteve todo o tempo a chorar porque havia saído recentemente de uma peritonite. 

À minha frente encontrei dezanove Marias até à curva que dava acesso à sala. Chegou a minha vez, o rapaz que presidia aquela mesa ia adormecendo a ler o meu nome (já estou habituada) e deu-me aquela folha gigantesca, onde constavam partidos dos quais nunca tinha ouvido falar, como o fálico (?) “Ergue-te!”, ou bíblico, sabe Deus (“Levanta-te e anda!”), para além de mais um ou dois, agora não sei precisar quantos desconhecia. Quase todos, vá.

Já no meu cantinho, pronta para exercer, reparo que não há ali caneta ao meu dispor. Procuro na mala, sei que é raro ter uma caneta (trauma com uma que se me rebentou dentro da mala, não quero lembrar-me; o mesmo para os pacotes de açúcar; e as saquetas de molho de soja), mas desta vez lá estava uma, triste, só e abandonada, gelada, gelada. Nos entrementes, ouvia-se o meu murmúrio, “Não há aqui caneta? Uma pessoa puxa pelo cordelinho e não vem nada na ponta. Se não tivesse uma na mala, a esta hora não votava”. Fui à mesa entregar o meu papelinho e comuniquei: “No meu cantinho não havia caneta. Senti um convite, mais, um incitamento, ao voto em branco”. Rimo-nos todos muito e depois voltei para casa, com o meu dever (não me enganei, não) cumprido.


06/03/2024

Aprendam comigo, que eu não duro sempre

Quando tu, mulher, desconfiares que algo está errado porque alguém mexe no teu corpo, é porque está. Não estás errada. Deixa-te de dúvidas, “Será que…?”, “Não pode ser…”, “Sou eu que tenho a mania”. Não, não és: os abusadores não têm escrito na testa “tarado”. Das duas vezes que fui atacada — mesmo, com perseguição e encurralamento — eram homens novos, fato e gravata, malinha de cromados.

Outra vez na fila do supermercado. Tinha ido comprar só batatinhas para assar, postas num saco de rede. De repente, sinto um toque na cauda (vá, não me obriguem a chamar rabo ao meu rabo), que deslizou um pequeníssimo instante sobre o meu vestido. O primeiro instinto foi puxar as batatinhas atrás, com a intenção de as espetar na cara do fdp. Virei-me em décimos de segundo, à espera de um rapazola da escola profissional, para se gabar aos amigos, ou um bêbado qualquer, mas deparei com um senhor, muito bem posto, que, naquele momento, muito providencialmente, mexia nas suas próprias compras. Aí é que me vieram as dúvidas, “Foi impressão minha”, “Dou-lhe com as batatas no focinho e ainda cometo uma injustiça”, etecetera e parva. Paguei, as lágrimas a quererem chegar no pior momento, como sempre, saí para o vento e admiti a mim mesma: “Não foi nada impressão tua, devias ter-lhe enfiado batatas cruas até à garganta e, simultaneamente, demonstravas naquele lugar a quantidade de palavrões que uma senhora sabe aplicar no momento certo”.

Nunca se esqueçam disto: não há impressão ou desconfiança ou dúvidas, de que alguém, sem o nosso acordo, nos está a tocar. Está. Sempre. Mesmo.

(Em casa, perguntei a uma das crianças se estava ordinária, dentro de um vestido roxo de gola camiseiro, não curto, não justo, e ela ensinou-me: “Até podias estar nua, o problema não está em ti, está nele”.)


04/03/2024

Errare

Ainda não sei porquê e admito que nunca vou saber, meti-me um destes dias no supermercado. Já na fila para pagar, lembrei-me do bolo do caco, que não constava do meu cesto. Ali o abandonei e saí da fila, “Falta-me o bolo do caco!”, por acaso a pensar por que diachos se chama bolo àquele pão — já para não escalpelizar a palavra “caco” (monco? Burrié?) — e depois se chama pão àquele bolo de ló (e “ló” porquê? Por que não “dó” ou “lá”?) Pronto, já sei: devia estudar a etimologia das palavras antes de me meter aqui. Depois voltei para a fila, e “Ai, onde é que estão as minhas coisas? O meu carrinho?”. Estive mesmo para fazer um espavento, “Fui assaltada!”, mas depois lembrei-me que os bagulhos só são meus a partir do momento em que os pago. Foi quando percebi que estava na bicha errada. Enfim, só não erra quem não faz. 

Saí dali direitinha à loja de lingerie, entrei e disse à funcionária: “Olá. Eu sou a dos sutiãs.”. Isto porquê? Porque já entabulara diversas conversações telefónicas acerca daquela peça em particular, cor, tamanho, encomenda, já chegou, vou buscar, eu guardo. A pessoa, extremamente maquilhada (verde na parte não móvel da pálpebra, muito anos ‘70), respondeu-me assim: “Eu não sou daqui, sou de Odivelas.”. Curioso — pensei, pondo a cabecita de lado, como fazem as galinhas quando estão baralhadas (amiúde) — já não é a primeira vez que esta retro me responde isto quando a abordo. Será que diz o mesmo a todas as freguesas? Para a próxima, entro na loja e digo: “Eu não sou de Odivelas, sou daqui.” Só para ver o que é que acontece. 

Deslindado o imbróglio, chegámos à conclusão que as negociações que eu havia entabulado não haviam sequer tido lugar com alguém daquele espaço comercial, mas sim de um outro, para lá da Estefânia. Tudo culpas do Google, que uma pessoa põe “loja de x no lugar y” e o destravado apresenta-nos o lugar z. Não importa, a verdade é que estava tão empenhada na aquisição que me despedi da de Odivelas e determinei-me a zarpar Rosinha, minha canoa, até para lá da Estefânia. Acerco-me da viatura e deparo-me com um idoso, dentro do carro estacionado ao lado, a ver no telemóvel mulheres sem sutiã. É o mal de darem smartphones àquela faixa etária, coitados. Depois enganam-se e vão parar ao inferno, ou ao céu, ou lá o que é.