07/04/2024

Lançamento do livro, um dia modalidade olímpica

Pergunta-me se não me importo de a acompanhar a “uma grande chatice”. Digo logo que não, pois que chatice maior haverá do que um funeral? Estivemos há poucas semanas juntas em memória de outra amiga dela, mais nova dois ou três anos do que nós, e, se fosse o caso, ela avisar-me-ia. Além disso, eu sou pro em esperar em salas de médicos e hospitais, acho que passei as vinte e quatro horas de Lisboa nos últimos dois anos. Antes perder um dia para ganhar uns milhares do que ao contrário. Ora, quem já aguentou esperas dessas, aguenta qualquer seca. Diz-me ela que foi convidada para ir ao lançamento do livro de um ex-colega e já se negou a dois ou três eventos do mesmo tipo (no duplo sentido de homem e classe de encontros), não pode negar nem mais um.

É o primeiro livro dele, de poesia numa língua que, se calhar, nem ele próprio entende. A mim, falam-me de lançar um livro e eu faço imediatamente a imagem mental e literal da coisa, tal e qual aquelas pessoas que se põem à beira-mar a atirar um disco de plástico uma à outra, muito atléticas e compenetradas. Ou então, aquela modalidade olímpica do lançamento do disco, que eu estou mesmo a ver que um dia se faz boomerang e sai de lá um lançador sem dentes. Devo andar a ver muitos desenhos animados.

Disse-lhe que sim, ela apreensiva, pois toda a gente — essencialmente marido e filhas — lhe disse que não. Fiz finca-pé, e vou, e vou, e vou, no dia ela ainda me pôs à vontade para desistir, ai a tua saúde, ai a chuva, ai as areias vindas do sul de todos os sules, que no mapa é norte, mas eu argumentei que já estava vestida e calçada a preceito, o que constitui o argumento mais inderrotável para qualquer mulher.

Calhou-nos um fim de tarde de céu chorão e ferroso, um trânsito absurdo na cidade, lá se foi uma hora das nossas vidas para percorrer um caminho de sete milhões de milímetros. Chegámos e a sala muito composta de cabeças maioritariamente brancas, e nós, que pintamos as nossas de castanho. O auto-homenageado (soube a posteriori que ele pagou a impressão de sua jóia) surge de kilt e eu penso que é hoje que vou saber se é verdade ou não que os escoceses não usam lingerie. O homem senta-se de pernas abertas, mas o pano pregueado cai-lhe por entre elas. Portanto, fiquei na mesma, felizmente. A figura era a do professor Girassol, mas sem chapéu e ainda menos cabelo. Para nos entreter, chamaram uma rapariga muito pouco bonita, mas com um cabelo extraordinário, que foi entoar uma música celta, com uma voz tão linda como os seus cabelos, e desafinou barbaramente três ou quatro vezes. Como se aquilo tivesse uma dificuldade de física quântica. Tragam-me os Dexis!

Quando eu contava com um croquete (de espinafres), uma empadinha (idem), uma flute de champanhe (sem álcool), começou a assinatura dos livros, de que ela comprou um exemplar ao preço de quatro mil réis em moeda antiga, que eu folheei e basicamente não tinha nada lá dentro — uma folha com uma palavra, uma folha com uma poesia em escadote, uma folha com outra poesia a rimar nuvem com nuvem, uma outra cujo poema falava de liberdade e de como estamos (?) acorrentados a ela. Mas, como havia muitas palminhas e um homem gordo ainda gritou “Bravo!” com sotaque francês, quem sou eu para achar que protagonizei mais um filme de David Lynch?

Ela quis o exemplar que comprara assinado por sua sumidade, que, entre gargalhadas inoportunas, lhe pediu: “Lembre-me o seu nome”. Estou até hoje sem perceber como é que ela resistiu a lançar-lhe o livro.