Esta história dos cookies lembrou-me outra, ocorrida há muitos anos, que, embora não tenha nada a ver com aquela, tocam-se num denominador comum, que é o da prática do crime de falsas declarações que, com maior ou menor consciência, mais ou menos frequência, vamos cometendo ao longo da vida.
Era eu ainda uma mera estagiária — e o mera vem porque, naquele tempo, ser estagiário era assim qualquer coisa um nadinha mais do que estafeta, mas com o pormenor de não se auferir um salário —, e, por conseguinte, era pau para toda a obra, designadamente por ser mesmo um pauzinho de virar tripas e por só não ter sido, no decorrer daqueles dois anos que durou o estágio, chamada para desentupir um cano porque, vá-se lá perceber como e porquê, não entupiu nenhum naqueles entretantos. Mas ser estagiário era, talvez mais do que hoje, toda uma ciência de vida. Encontravamo-nos num estado de alma e corpo de uma singularidade que não voltaríamos a experimentar, nem sequer no início do primeiro emprego. Era um limbo perfeito, de quem julga estar investido de uma sabedoria máxima e se apercebe, dia após dia, hora após hora, de que, afinal, atingiu o ground zero do conhecimento, pois a torre que levou alguns anos a construir se desmoronou como uma bolacha seca e deu lugar a um enorme buraco, que de zero só tem o nome, já que se encontra vários níveis abaixo do solo. No entanto, queríamos agradar. Se alguma sumidade das que nos acompanhavam o estágio dissesse algo semelhante a "Isso é atirar o barro à parede", era quase certo que o estagiário se atirava de mãos ao chão, pregando os pés à parede, pois teria entendido "Faz aí o pino contra a parede". Coisa que, convenhamos, nem sempre é a melhor opção, pois havia quem fizesse um estágio inteiro de saia travada e saltos altos.
Ham.
Um belo dia, fui chamada ao gabinete da chefona máxima, e mandou-me ela deslocar ao consulado britânico, com vista a certificar uma tradução.
Diz Murphy, esse sábio dos anais, que quando alguma coisa te corre mal, pode sempre piorar.
A tradução tinha sido feita por outra estagiária, que poderia ser tão voluntariosa quanto eu e ir certificar a autenticidade do seu trabalho, poupando uma inocente à prática inadvertida de um crime tão vil. Porém, era detentora de um rabo levemente mais largo e tinha necessidades francamente superiores de praticar stretch da cintura para cima. Por outro lado, conhecia melhor a língua inglesa do que eu, que papagueava em francês quase como em português (mas sem palavrões quase nenhuns), mas meu inglês era de nível Zezé, puta cream number five, e já gozavam. Escalaram-me a mim, que é o que interessa.
Perto do Jardim da Estrela, que casa tão bonita, palacete, ai que bom que deve ser morar num sítio destes, enfim, até à chegada do funcionário consular, nada de estranho.
Vá, digam-me que não era o cônsul. É que eu ainda hoje não sei.
Vem a alta figura, altíssimo, louro, olhos e fato azuis, com um livro na mão e estende-mo.
Dizia lá na capa HOLY BIBLE.
Ó pá, o meu inglês era mau, mas ainda pensei Holy shit, estou fornicada.
Ninguém me tinha avisado daqueles bateres de continência e de calcanhares. Por isso, perguntei, toda branca:
- O que é isso?
Diz-me o britânico, cheio de sotaques e tiques:
- É a bíblia. Ponha-lhe a mão em cima para prestar juramento — e pegou-me na mão esquerda.
Eu sei que tenho um par de tomates porque, nesta altura, senti claramente duas coisinhas pequeninas ao nível dos tornozelos. Mas ninguém diria que isso era apenas eu à procura do botão de pânico, da tampa do alçapão ou da porta do inferno. Retirei a mão da dele, endireitei a bíblia, e disse:
- Vou virar o texto para mim, que está de pernas para o ar. E a mão é a direita, que isto é uma bíblia.
A boca do homem abria-se a desníveis, à medida que a minha desgraça singrava alegremente.
Mas Murphy tem lá os seus motivos.
E o cônsul (digam-me que não era o cônsul! Eu preciso de uma velhice sossegada!) apresentou-me um papelinho pequenino para eu ler.
Era o juramento.
E o meu inglês era mau. Isso, acho que já ficou claro.
I swear to almighty God...
Parece que ainda me estou a ver. A mim, e à boca do cônsul (pode ser que não fosse o cônsul, vá lá...).
Ai suére.
A boca dele. Riquezas de sua avó.
Tu ólmigue.
Tão linda, a boquinha, bilu-bilu.
Tu ólmigue...
Mas Murphy ainda não estava satisfeito. Vá que não me deu para vomitar. Ou soprar um ar daqueles (já era uma senhorinha, essa é a única fatalidade que, de todo, não me pode acontecer. Só arrotos).
E gargalhei, agora eu, de boca escancarada, para rematar esta pérola, sem baliza à vista:
- Hahaha, tu ólmigue! Vá, do princípio: I swear to almighty God — e, desta vez, li com o melhor inglês que o liceu não inglês me tinha ensinado, aquelas bem fadadas cinco linhas, que me souberam a cinco páginas, arrancadas não sei se com sangue, mas com suor com certeza, e lágrimas, muitas lágrimas, de riso descontrolado, do lado de fora do consulado, sentada no passeio, toda consolada de gozo e nervos e frescura, da brisa que corria e da juventude que me percorria.