(Não sabia muito bem que título pôr a isto, então pus aquele. Mas pode ser outro qualquer, aceitam-se sugestões.)
As minhas idas àquela estação de Correios deviam ser filmadas (julgo que, por questões de segurança, efectivamente são, a questão é que eliminam os filmes — os meus filmes! — ao fim de pouco tempo, como se não se tivesse passado nada ali dentro).
Entro, retiro a senha 146, e verifico que está a ser atendida a dona da senha 143, sendo que estão dois balcões a funcionar. Pacífico. Tenho quinze minutos para despender ali dentro, imagino ingenuamente que nem a tanto chegarei. Não posso esperar a minha vez na rua, pois está uma ventania de vários quilómetros por hora e estou com um vestido cuja saia roda como a da Rosa arredonda a saia.
A senhora da 143 — idosa e obesa — está a pagar, quando a funcionária lhe pergunta se quer uma Raspadinha. Diz que não, e, quando recebe o troco, deixa cair uma moeda de um cêntimo para o chão. Não é capaz de se baixar para a apanhar, nem acocorando, nem dobrando as costas, de maneira que se inclina para a frente e abre as pernas até ao limite, algo que considero no momento que tem boas hipóteses de evoluir para uma razoável cabeçada no solo. (Noutros tempos, a menina bem educada que me habita iria apanhar a moeda para a entregar à sua proprietária, mas é que nem me passou pelo juízo que alguém movesse uma palha por um cêntimo.) Apanha a moeda e, quando levanta a cabeça, está tão escarlate — hão-de os seis (ou talvez sete) litros ter-lhe ido todos para as orelhas — e perturbada, que penso que ainda vou assistir a uma filoxera. Mas afinal não. Não sei se do esforço, se da passagem sanguínea pelas ideias, se meramente exausta de ouvir a funcionária, muda de ideias e compra a Raspadinha. No entanto, não sabe raspar o coisinho da dita e pede ajuda à outra, que, entretanto, já lhe contou metade da história da vida dela (ou a história de metade da vida dela): que encontrou uma Raspadinha há uns dias, deitada para o chão da rua, mas que afinal tinha dez euros, e zzzzzzz.
Eu, obviamente, já nervosa.
Nisto, entra uma terceira funcionária, de gelado Perna de Pau em punho, já meio mordido, e sem a máscara nos beiços. Ainda por cima, vinha a fazer piadas, acho que lascivas, sobre o facto de vir a chupar gelado, sorte dela que 1: o Perna de Pau era o vermelho, o original; 2: eu não ouvi o que a criatura disse. Mas lá pôr-se atrás do balcão a despachar serviço é que nicles, pois havia de estar na sagrada quinquagésima oitava pausa da tarde.
Nos entrementes, a do outro balcão atendeu duas pessoas, apesar de o número no visor se manter inalterado no 143, e vamos que eu assumi serem elas o 144 e o 145. Mal esta última saiu, avanço eu, visto que a do balcão ao lado continuava a raspar avidamente a Raspadinha da senhora obesa, enquanto lhe relatava a parte 2 da história da sua vida. E diz-me esta que havia de me atender, cheia de prosápia e soberba: "A senhora tem que aguardar a sua vez, que eu ainda não a chamei".
Isto só para me situar a mim: mas que raio fiz eu à mulherzinha para que me tratasse assim à pedrada, só de olhar para mim? Magoei, ofendi, deprimi.
É que esta coisa acontece-me com uma frequência tal, que começo a equacionar se não serei eu que pareço arrogante e elas sentem-se encolher derivados a isso. Estou ali, à espera da minha vez, faço o melhor que sei a minha poker face — com alguns discretos, imperceptíveis! suspiros e rolling eyes —, e depois, quando vou para ser atendida, pumba, batem-me.
Não me chamou a mim, assim como não chamou nenhuma das duas últimas pessoas que atendeu. Esta senhora é o 143, já atendeu o 144 e o 145, portanto, está na minha vez.
Furiosa, atendeu-me. Eu levei os cerca de noventa segundos da praxe — entre pagar e debitar o NIF — e movi-me dali para fora, não fossem as ventas bufar-me cinzas, ou destilar fel, ou borbulhar espuma, sei lá, para cima do vestido rodado.