14/02/2023

Raio de sol

Pela terceira vez em trinta anos, a minha casa necessitou de obras, o que, estatisticamente, daria uma intervenção por cada década, não fora o facto de a última ter sido há quatro anos. Aconteceu que, entre um bom Covid com direito a hospital e um oportuno cancro, dois violadores de paredes entraram pela minha porta adentro, com a desculpa de consertar um cano roto, derrubaram uma parede, de caminho estoiraram um cano comum do prédio, de maneira que a água — cimentosa, lamacenta, barrenta —, entrou a jorros pelo lar adentro, destruindo tudo o que apanhou à frente, a começar no soalho dos meus encantos (que, na altura, respirava sob os meus pés há apenas três anos), em carvalho maciço, envernizado sem brilho, o chão mais bonito que alguma vez pisei, e a acabar nos meus sonhos de ter a casa dos meus sonhos. Bastaram alguns segundos, quatrocentos litros de água espalhados entre meu lar, o patamar das escadas e as caixas dos dois elevadores.

(Se eu não tenho razões para estar maluca, não sei quem terá.)

Pela terceira vez, então, tivemos que arranjar onde viver durante a obra, pois parece que é impossível dormir em cima de um chão enquanto os senhores andam a colar tacos. Tínhamos como premissa ficar no mesmo bairro, porque tudo: logística, empregada com outro trabalho na área, parquímetro, e clima. Estou a gozar, o clima era-nos indiferente. Desde que não chova e a roupa seque, por mim está de bom tamanho.

Não existem casas para arrendar em Lisboa por poucos meses, sobretudo quando não se quer sair de um círculo. Mas, ao cabo de muitas buscas, apareceu uma, numa zona social, que é como quem diz, na zona bairro do bairro. De tal forma periférica, que não está incluída no nosso parquímetro, o que não é grave, uma vez que nos basta deixar a frota do lado de lá de uma avenida, que é a que separa o norte da chique zona sul deste aglomerado: atravessamos, subimos uma ladeira em escadas, tonificamos o glúteo e estamos na moradia. De início, temi-me um bocado, só um portão ferrugento a separar o logradouro da porta, só uma porta a separar-nos da vizinhança tenebrosa, gatuna e estripadora. Nunca estive tão enganada: até posso deixar tudo escancarado e borrifado de ouro em pó, que ninguém vem cá varrer-mo. Uma tranquilidade de dar gosto ao demónio.

Hoje subia a ladeira de escadas e lá estava ela, talvez quatro anitos, mil caracoletas na cabeça e um raminho de flores silvestres na mãozinha, estendida para fora do portão da pequeníssima casa.

Queres as minhas flores?

Não posso aceitar, querida.

Porquê?

Porque tu não me conheces. Dá as flores à tua mãe, ela vai ficar feliz.

Vou dar à minha avó. Olha, e queres um chupa-chupa?

Não, guarda para ti.

Vais-te embora?

Vou, mas volto.

Queres ver a minha trotinete?

É linda, quem me dera uma igual. Olha, se calhar aceito as tuas flores, agora já me conheces.

São para a minha avó. Vais para casa do pai João?

Não, o meu pai não se chama João. É Henrique.

Dei-lhe adeus com a mão, soprei beijinhos e continuei a subir a ladeira, carregando a certeza de que a solidão é transversal, mas também a de que um raio de sol pode atingir-nos assim, a meio do nada, ou a meio de um caminho que nem sequer é o nosso.


13/02/2023

A última de umas quantas tristezas

Dia da última injecção de Trastuzumabe. Nunca decorei este nome, agora mesmo fui ao Google confirmá-lo. São dezoito ao todo, no espaço de um ano. É um processo muito demorado: venho cedo, apanho o trânsito da hora de ponta, a fila para o estacionamento, a senha para a triagem com rodos de pessoas antes de mim, e depois uma hora de espera para que a injecção seja preparada e a seguir enviada para a Oncologia. Mas tenho cabelo, que cresce encaracolado, posso pintar as unhas, ainda tão frágeis, posso pôr saltos altos se não abusar da sorte, posso ser uma aproximação de mim.

A sala de espera abarrota de gente doente. Ninguém se queixa, ninguém solta um ai, a maior parte está só ali. Uma mulher, de sapatos-pantufa e gorro de lã, costura qualquer coisa que não entendo, ora com a mão esquerda, ora com a direita, bocadinhos de pano à volta de uma rodela de plástico, que também é caixa de agulhas. De vez em quando, cai-lhe uma coisa para o chão, a agulha, a caixa, uma bolsinha com padrão de bonecos cheia de rebuçados que se espalham no chão. Diz a quem lhe pergunta que está a fazer “florzinhas”. Deve estar louca.

Está um homem com os olhos muito abertos, pregados a pregos ferrugentos no vazio, com um interesse tal, que juraria estar a encontrar respostas para todas as questões que ainda o atormentam.

Uma mulher fala ao telefone uma língua que não entendo, como acontece com quase toda a gente.

Disse-me uma enfermeira em tempos que os que têm cabelo são os casos mais graves. Pâncreas, fígado, intestino. Olho para eles com olhos diferentes, já não lhes invejo o cabelo.

Entra uma mulher dressed to impress: casaco e calças cor de tijolo, uma pele de coelho na gola e punhos, blusa branca de lamé, carteira de péssima imitação da Birkin, Hermès.

Um homem chega a arfar, assim fica durante largos minutos ao meu lado, depois tranquiliza-se. Parece que correu a maratona, mas creio que a caminhada de vinte metros desde o elevador foi suficiente.

Há muitos velhinhos neste circuito infernal. Nunca ninguém disse que a vida é justa.

Eu, por mim, saio hoje com o alívio da certeza (ou, pelo menos, a esperança) de não voltar, a não ser para consultas. Vou-me embora cheia de marcas, nem uma única saudade.