18/12/2019

Das porras em que eu me meto

É assim há anos: eu já sei, de antemão, que vou meter-me numa situação da qual sairei magoada, mas meto-me na mesma. Até me inscrevo, como foi este o caso.
Existe uma marca de cosmética, da qual não vou dizer o nome, porque ninguém me paga para isto, mas que é excelente, que eu uso há bastante (por força da oferta de amostras, que uma amiga farmacêutica me fornece às litradas), cujas ampolas e cremes me rejuvenescem todos os dias um pouco, coisa para qualquer dia parecer um feto e, logo de seguida, um embrião. É uma marca da farmácia, e não há vez que lhe leia o rótulo e não me lembre do filme "Madagáscar".
Então, deixei-me inscrever para ir fazer uma "avaliação da pele". Logo na gula de receber mais umas quantas amostras grátis, prantei-me na farmácia à hora marcada. Fui atendida por uma senhora mais velha do que eu, o que não seria nada de extraordinário, não fora o facto de ter, ela sim, uma pele péssima, ou melhor, invisível sob uma espessa camada de betume, o que impossibilitava, agora sim, a avaliação pela minha parte. No entanto, era para a inversa que eu ali estava, e, por essa razão, sujeitei-me. Por trás dos óculos com lentes olho-de-boi, que lhe aumentavam o tamanho dos olhos a níveis olímpicos, emoldurados por pestanas posticíssimas, a pessoa perguntou-me dados, tipo o nome e a idade, enquanto pegava numa peça semelhante a um telefone fixo e ma encostava, primeiro à testa, depois à bochecha, finalmente quase à orelha, isto para aferir do meu tipo e estado da pele. Nada de nariz, bigode, queixo, aquelas zonas que nós, mulheres, se pudéssemos, secaríamos de gorduras, pêlos e outros contratempos assim mesmo sem olhar para trás. A seguir, sentenciou que eu tenho "uma pele mista", que é aquele meio-termo entre a carne e o peixe, é um quase, um talvez, um não-me-comprometo, e, para o caso de eu desconhecer o conceito, explicou-mo: que tenho zonas gordurosas [tomara tu] e zonas secas [toda a minha cara, no sentido de semblante, naquele momento]. E, por fim — após ter-me revelado que a minha pele tem mais três anos do que a minha idade real (subestimando que já lhe havia dito que é a marca que ela representa que eu uso), e de eu lhe ter perguntado: "Então, o que faço? Arranco-a? Deito-a fora? Faço um peeling? Meto um abrasivo?", considerando a possibilidade de a minha pele ter nascido três anos antes de mim —, traçou-me um "plano de tratamento" com seis produtos, mas que eu, ao tentar inteirar-me dos preços, e visto que só um deles custava cinquenta oiros, olhem, desisti de tratar a minha idosa e estafada pele, e pus-me foi nas tamanquinhas dali para fora, carregando-a comigo, tal e qual um lobo com pele de cordeiro.
Chiça.

09/12/2019

Titi Blue também esteve na Black

Parecendo que não, também fui ver a Black Friday. Bem sei que já foi há assaz, mas só agora se me aprouveu denunciar aqui.
No fundo, foi um acidente, como praticamente tudo o que me sucede no tempo e no espaço. 
Dá-se que quase todas as sextas-feiras, para mim, são 13. Constatei isto há talvez décadas, designadamente quando tive uma chefe que era detentora do grande dom de criar trabalhos inadiáveis aí pelas cinco da tarde do último dia da semana, trabalhos esses que eu mesma concluía, cerca de duas horas depois, que podiam esperar pela segunda-feira seguinte, ou até por qualquer de todas segundas-feiras seguintes, quando constatava que ela própria já se eclipsara da fábrica de miolos fritos onde laborava à época. Ainda bem que me despediu um dia, poupando-me o trabalho e a vergonha de o fazer sem a sua preciosa ajuda.
Amorosa, e porque a minha empregada aniversariava no dia seguinte, e eu havia encomendado uma coisa numa loja e já recebera o aviso de chegada dela à dita, atirei-me para dentro do Colombo. Logo o caminho da ida foi sinuoso, houve que contornar uma bichona de carros a perder de vista, uma coisa nunca vista. Assim, ultrapassei talvez três ou quatro papalvos, embora ainda tenha tido que me colocar em fila indiana atrás de mais uns quantos. Chegada ao parque, verifiquei que já só havia lugar no -3, que é aquele basfond onde a Via Verde jamais funciona. Retirei o bilhete, dei meia volta com Rosinha, minha canoa, e de repente arranjei um lugar óptimo, mesmo em frente do ascensor, que era para não errar nas portas, outro dos meus vários super-poderes. Apanhar um que me carregasse não foi particularmente difícil, eu já a achar que a Preta Sexta era um mito rural, mas eis senão quanto aporto no primeiro andar e sou confrontada com uma multidão compacta, qual domingo, qual véspera de Natal, qual exposição do carro do Michael Night (a sério, isto existiu, e foi ali), qual inauguração da Forever 21 (coisa a não ser frequentada por quem tenha 20 anos ou menos), aquele flop de trapos cuja ascensão e queda foram igualmente rápidas. Posso dizer com alguma segurança que tive que travar luta física para alcançar a loja, que fui encontrar em estado de sítio, três gajas por metro quadrado, um sonho de pinga-amor tornado realidade, brancas, pretas, qualquer cor, você quer tudo o que vê, elas até estavam organizadas em caracol (ou melhor, vistas de cima pareciam aquele jogo da cobra que nunca acaba de crescer), ao longo de todo o espaço disponível, para chegarem à caixa de pagamento e não perderem a oportunidade de, após espera de — quê? —, meia-hora, pagarem 8 euros por aquela blusa que custa 10, vão usar hoje à noite e amanhã entregam para troca na loja, cheia de desodorizante, suor e maquilhagem. Ia-me dando o Credo!, aí sim, caí naquela realidade alternativa, onde — mamã! — não queria estar. Então roguei, não uma praga, por não estar em condições psiquiátricas, mas à caridade humana de uma funcionária que ia ali a passar, "Por favor, para levantar uma encomenda, tenho que me meter nesta bicha?", ela que não, que podia dirigir-me aos provadores. Só que um relance me revelou que a bicha dos provadores também era das grandes, só que em linha recta, e já começava a faltar-me o ar para a sobrevivência mais imediata. Então abordei outra funcionária igualmente angélica, "Por favor, para levantar uma encomenda, tenho que me meter naquela bicha?", ela que não, que era só ir buscar o iPad e já me trazia a coisa, eu ai, olha queres ver que hoje é o meu dia de vaca, ou vou acordar daqui a nada e estou metida numa bicha interminável?
Saí da loja com a prenda da minha empregada no sovaco, ainda consegui flutuar quase em ombros derivados à multidão, até ao rés-do-chão, com vista a adquirir uma quiche de vegetais lá na padaria daquilo, depois fui de passadeiras rolantes até ao -3, subestimando a possibilidade de apanhar outro elevador sem espinhas (ou seja, sem cinco carrinhos de bebé, um par de muletas, três cadeiras de rodas e dez recém-nascidos no marsúpio) como o que me içara até ao primeiro piso, meti-me em Rosinha e aqui deixo o comprovativo, que é para não pensardes que omito a verdade. Das 11:29 às 11:54 vão quê? Pois.



14/11/2019

lágrimas de suor

Começou a corrida e eu levava os olhos cheios de água, vinda não sei de que esforço, ou seria da alma que se arrasta por estes dias, que até nem chovia.
Carcinoma das maminhas, tinha dito a veterinária há um ano. E ela bem, recuperada das duas cirurgias quase seguidas, magra, silenciosa como só um gato sabe ser. De um dia para o outro, ainda mais magra, ainda mais silenciosa, o ser gato levado a um extremo insuportável. 
Está maior, o tumor dela. Por isso, também por ela, fomos correr no domingo. Quando a Ciência avançar para umas, terá igualmente um braço que alcance as outras. Fiz o melhor tempo de sempre, não parei para andar, para descansar, para pensar - mais ainda -, sequer para chorar. A alegria de ter concluído a corrida sem percalços nem dores no corpo esteve sempre atravessada por aquela farpa que transporto no coração, eu no meu e os outros cinco nos deles. Ainda assim, não adianta camuflar com demais explicações: estou velha, estou extremamente velha, sou aquela ridícula que adoece cada vez que lhe morre ou adoece um animal de estimação. Diz agora a veterinária que devemos - como se se tratasse de um dever tout court, e não de algo que, implícita e naturalmente, sairia de nós - dar-lhe todo o mimo, todas as guloseimas que ela aceite. E também que devemos - esse, sim, um dever a cumprir ninguém sabe muito bem como - preparar-nos para a deixar partir
Não sei fazer essas preparações, e recuso-me a tentar, sequer. Não considero nem quero fazer mais nenhum luto, seja ele antecipado ou em tempo real. Ao invés, encho-lhe a boca com a cortisona receitada, o corpinho com festas, a cabecinha com beijos. E, contra tudo o que é normal - ou não fosse eu - rejubilo com todos os pequenos progressos, quando come bem, quando dorme tranquila, quando esgatanha alguma coisa, desconsiderando a evidente reacção à medicação, subestimando que o tempo corre implacável, numa corrida cuja meta será toda ela de lágrimas, enchendo-me de uma coisa qualquer a que nem admito chamar esperança.

26/10/2019

A herdade

(Se acharem que é spoiler, é não lerem # 13)

Após insistências várias, algumas com cariz ameaçador, cá venho então falar do filme "A herdade", antes que me esqueça de tudo.
Pode parecer que não, mas gostei bastante, pelo menos das partes que vi, por estar acordada. Vá que pestanei um nico ali aos minutos 122 e 157. Ninguém manda aos realizadores portugueses fazerem filmes de duas horas e três quartos, quando a história até se contava em menos de metade e ficávamos todos felizes na mesma, designadamente pessoas como eu, que sofro daquele síndrome das pernas inquietas, razão pela qual, se estou parada num sítio muito tempo, sou acometida de um ataque de pernas, dá-me o ó-ó e depois só mesmo xonando-as é que me sossegam os membros inferiores. 
Por outro lado, ainda não percebi a cena dos grandes planos do pessoal de costas, é uma grande falta de educação para com o público, mas estamos na missa ou quê? Começo a pensar que os planos de costas estão para o cinema português como o nu frontal está para o cinema francês: é um estilo. Mas achei escusado e um crasso erro histórico a cena em que o Joaquim, capataz, encarregado num monte alentejano - o que nunca é dito, mas a paisagem não engana, embora tentem enganar-nos com a léria dos arrozais - aparece de mãos nos bolsos, de costas, claro, a menear a peida como uma flausina. Isto é impossível alguma vez ter acontecido no Alentejo de 1973. Assim como é impossível que o carro do dono do monte seja um Mercedes dos anos sessenta do século passado, mesmo que ele fosse um coleccionador, apreciador de clássicos: naqueles terrenos, ninguém se deslocava de clássico. Isto, é claro, se não considerarmos que a marca deu uma achega para esticar o filme até às quase três horas. 
Enfim, fora estes pequenos lapsos que só as atentinhas ao que não interessa como eu é que reparam, o filme tem uma história bem conseguida, cheia de verdades, lembranças e algumas subtilezas (a paternidade daquelas crianças, toda trocada), tem uma fotografia muito razoável, e interpretações francamente boas. Albano Jerónimo, que não tem culpa de ter um nome de merda, mas que se revela gigante (em sentido estricto, o homem tem quase dois metros). Interpreta um proprietário de bem com Deus e o diabo, mas de mal com a vida, de um blasé mais actual do que pertencente à época, mas que faz valer a pena o filme, especialmente na cena em que dança com a cunhada. 
Não sei se já disse que gostei, mas também não me apetece ler aquilo tudo lá para cima. Ide ver (o filme), se fazeis o favor.

25/10/2019

Tive um OVNI na blusa

Vamos só supor que me encontrava em pleno Alentejo com lei, precisamente porque tencionava vender umas terras que para lá possuía, a meias, collants e soquetes com outros parentes, numa compropriedade que já só nos trazia ralações e despesas. 
(A propósito de Alentejo, tenho que vir aqui stalkar um bocado o filme "A herdade", mas agora não. Lembrem-me.)
Encontrado o comprador, redigida a promessa de compra e venda, faltava apenas assinar o dito documento, pelo que marcámos encontro ali perto, uma vez que, por outros motivos alheios a este, tinha que me deslocar até ali. Isto, só para que percebam o enquadramento, o contexto e também a paisagem. Pelo caminho, havíamos visto muita fauna voadora: cegonhas que vivem em autênticos condomínios em torres eléctricas, águias, falcões (vai ser a bonita quando e se o aeroporto passar para o Montijo), e outros mais pequenos, tipo tordos e assim. 
Ora, nesse dia, havia eu vestido uma blusa de decote em bico (em V, vá), entalada nas calças. Estava o comprador a acercar-se da gente, como diz o povo, e, subitamente e sem qualquer hipótese de preparação, entra-me uma coisa voadora para dentro da blusa, através do V. Não sei explicar o que foi, se mosca, se abelha, se pássaro, se drone. Um objecto voador não identificado, literalmente. Na aflição da cócega, deito a mão ao decote, depois blusa adentro, ai, que tenho um bicho, ai, um bicho, mas é que o animal (?), que nunca cheguei a ver, portanto até podia ser um F-16, deu em descer blusa abaixo, e já o sentia na cintura sem conseguir retirá-lo de dentro da roupa, ai, o bicho [se isto não dava uma coreografia para o Iran Costa...?], pois então não é que me vi na contingência de ter que desentalar a blusa das calças e dar uns quantos saltinhos, até ter tido a certeza de que a criatura havia sido libertada, tudo isto diante do espanto/fingimento de não ter visto nada por parte do comprador?
Bom, o que importa é que nos livrámos do enguiço, pois ele, impávido, assinou e pagou.


16/10/2019

As minhas faneras e eu

Agora é isto: de quinze em quinze dias, ou catorze, se quisermos ser rigorosas, lá vou arranjar as unhas com Filipa, após pazes que houve que fazer, por conta de quase me ter arrancado as dez (e não as vinte pois nesse dia não estava a "fazer" os pés). 
Acho que já disse aqui várias vezes que tenho trauma com cabeleireiros, toda eu sou suor e lágrimas quando entro, às vezes sangue, como daquela vez em que Filipa me sangrou as pontas dos dedos até à chicha. Hoje entendi fazer dela minha psi, não que lhe pague para o efeito, mas porque me apeteceu tentar desbravar terreno pelos meus traumas afora. Quis entender o porquê de aguentar estoicamente a broca do dentista, mas, mal encaro com a tesoura da cabeleireira ou os cutelos da manicure, toda eu sou sofrimento mais ou menos em silêncio, se descontados os suspiros e as interjeições.
Foi então que me lembrei de que, quando era petiza, isto ainda estudante ao nível do jardim de infância, um galfarro que frequentava a minha sala de actividades, me entalou a mão direita na frincha da porta, com uma violência tal que uma das unhas saltou directamente, pena que não para a glote dele. Estimo que hoje esteja barrigudo e careca. E sem unhas. Aquilo foi coisa para me fazer desmaiar, numa épica cena em que perdia os sentidos e acordava, e assim sucessivamente, pois as dores eram tantas que voltava a perdê-los, isto até a empregada me ir buscar (porque nós éramos chiques e os meus pais trabalhavam os dois, não existiam telemóveis e o contacto de emergência era o de casa, não vão já achar que eu era uma criança abandonada, criada pela criada, sei lá) e eu ainda desmaiar mais umas quantas vezes em cima da pessoa. Depois andei muitos anos com uma unha torta e diferente das outras, sensível e coitadinha.
Portanto, isto, quanto a unhas, retenho este trauma infantilóide.
Já quanto a cabelos, aconteceu uma vez, teria talvez dezasseis anos, em que sonhei que me tinham cortado o cabelo curto, e, assim que acordei do pesadelo, dirigi-me ao cabeleireiro e pedi que me cortassem a melena igual à da Isabelle Adjani, só que a bruta deve ter percebido mal o meu imperdonable french e deixou-me igual à Lara Li. Enfim, foram meses até esta bodega chegar aos ombros, mas meses de auto-bullying no liceu, coisa mais confrangedora sair à rua sem antes tentar esticar a peruca com a escova e o secador, que naquele tempo não havia géis nem espumas, era tudo tão atrasado, parece que saí da Idade da Pedra Lascada, mas de debaixo de uma pedra, mesmo.
Também podia ter ficado traumatizada com dentistas, pois entre os dez e os treze anos tive um que me brocava os molares todos até ao nervo sem anestesia, mas é possível que haja uma sádica em mim, e isso não me demoveu de me sentar (e deitar!) na cadeira de outros dentistas que lhe sucederam, provavelmente porque o maluco já tinha brocado tudo o que havia para brocar nesta minha cavidade bucal. Muáháháháhá.

10/10/2019

Lá a ver se eu não tenho cara de parva/desocupada/aérea/invisível

Estou eu muito bem na loja de tecidos, com a firme e inabalável intenção e uma grande vontadinha de comprar sete padrões diferentes que me estão debaixo do olho e quero levar debaixo do braço, aguardando a minha vez, detentora da senha 77 e sem ter reparado onde diachos ia o contador delas, quando uma das duas únicas funcionárias ao balcão me interpela com aquele menear de cabeça, "A senhora?", e me ponho a debitar tudo o que quero, apontando para a estante com o dedito indicador, "Quero um metro de cada um daqueles sete". E vai ela, nisto, e põe a manita aberta em sinal de STOP e diz-me assim: "Importa-se só que atenda esta senhora primeiro?". Vá que considerei que a tal dita senhora podia ter chegado antes de mim, que, inebriada pela beleza dos tecidos, associada à matemática que fui fazendo - sempre a somar o que, contas feitas a final, resultaria numa subtracção para o meu lado -, lá lhe disse que sim com a cabeça também, mas a minha acompanhada de um leve sacudir de ombros. Então, ela atendeu aquela senhora, pois muito bem, aviou-a, recebeu o pagamento, deu o troco, e aconteceu que entrou outra na loja, que essa vi bem que já foi depois de mim, e a do balcão vai e desata a aviá-la também. Eu, de senha 77 na mão, já a hiperventilar, a sentir a desagradável sensação da invisibilidade, que só me dá quando não faz falta nenhuma. Incrédula, vou de perguntar qual é o critério ali dentro, que a pessoa que me estava a atender já vai na segunda cliente que atende na minha vez, e é então que entra em cena A Colega, a questionar-me - e talvez muito bem - qual é o número da minha senha. Eu digo "77", como quem diz "33", e ela esclarece-me que o contador ainda vai no 64. É quando rio, de nervos. A loja é pequena, para além de mim, enquanto freguesas, estão mais três pessoas: a que está a ser aviada pela minha caixeira, a que está por conta d' A Colega e uma outra desgraçada que está ali há horas a ver passar navios em alto mar. Em suma, se é que faltam treze pessoas para a minha vez, capaz de terem ido todas tomar café juntas ali à esquina e ainda vão aparecer de surpresa, com aquela merda da tolerância de duas senhas como argumento para me ultrapassarem na bicha. Com sorte, serão treze prioritários, todos grávidos e velhos acamados, aleijados a arrastar o soro e malucas com um calmeirão de dezoito anos ao colo, ai queres ver que é hoje que eu me passo? A que estava a atender-me veio então com um sorriso que eu nem percebi de que cor (para aí verde) e, como sou assim intransigente e já tinha mudado de ideias porque contrariada, mandei cortar meio metro de cada um dos sete tecidos, e sim, gosto de dar trabalho às pessoas que merecem. Está ainda ela a cortar o segundo meio metro, ou seja, já eu era possuidora de um metro de trapo, quando me pergunta, nem percebi se para me provocar ou só porque é das que gostam de apanhar: "Importa-se só que eu atenda aquelas duas senhoras que acabaram de entrar, e já volto aqui para cortar o resto dos tecidos?". 
Foi a raiva.
Foi o espectáculo: a pequena multidão embasbacada.
Importo. Aquelas duas senhoras vão esperar a vez delas, como eu já esperei a minha, aliás, por duas vezes. Não percebo os seus critérios, nem quero perceber. Quem é que lhe diz que eu não estou com pressa? Que não tenho uma vida para além de estar aqui de gesso, à espera de ser atendida? Que eu não tenho um tacho ao lume? Ou um alguidar de roupa na lixívia?
Caladinha, cortou - a direito - o resto dos tecidos, pagou-se e ficou, ela e as outras duas, mais A Colega, a verem-me sair a bater o salto alto, um nico fula, depois de ter dito, em tom de promessa-ameaça: "Eu volto."

07/10/2019

como é fino o manto da violência

Os meus olhos pousaram naquela menina que cirandava, esvoaçante, em volta da mesa da esplanada onde se encontravam alguns adultos, podiam ser dela parentes ou apenas aparentemente aparentados, todos a ela alheios, ou até podiam não lhe ser nada. Tinha um pequeno laço no cabelo encaracolado, o vestido era de flores bonitas e calçava ténis de marca cara e visível. Imaginei-lhe uns quatro anos, talvez já cinco, perdidas as dobrinhas de bebé, não a candura infantil de quem ainda tem tanto para sonhar. E nisto, levantou-se da mesa uma mulher muito jovem, no semblante a contrariedade, pensei eu que por ter interrompido o café com os amigos, percebi logo depois que o motivo era então outro: a criança havia feito chichi na roupa, talvez à quarta ou quinta tentativa de que a mãe a levasse onde é próprio uma pequena adultazinha fazê-lo, não estivesse esta largada à sua sorte no meio de adultos grandes e surdos. Chocante foi a forma como percebi, eu e quem ali estivesse ou fosse a passar, que a menina havia feito chichi nas calcinhas: a mãe levantou o vestido de flores bonitas, agora tristes, e exibiu a roupa interior molhada da filha - aborrecida, zangada, ralhando. Ainda que nada disto houvesse feito, o vestido arregaçado, a roupinha devassada, os olhos pregados no chão, chegaram.

02/10/2019

And that awkward moment # 57

em que me dirijo ao quiosque-café-esplanada, que até deve ser também restaurante, bar, e, soube-o ontem, discoteca e micro Hyde Park, ou não fora uma das funcionárias se encontrar na zona da despensa do mini cubículo, a dançar uma dança sensual qualquer, tipo do varão, mas sem o dito, e haver um senhor, sentado na relva, a discursar chorrilhos contra o Governo da república portuguesa e outros que tais, que tanta náusea e vernáculo lhe instigavam. 
E então, solicito à gaiata que está atrás do balcão — não à que dança, a essa não ia interromper a manifestação artística — um "pão com queijo", mal suspeitando eu que iríamos iniciar o proveitoso diálogo adiante registado.
- Pão com queijo, não tenho.
- Tem, sim, que ainda a semana passada aqui comi um.
- Não temos. - Generalizou a um problema da empresa. E sorriu, tonta.
Dirigi-me então à pequena montra e mostrei-lhe O pão onde poderia, sei lá, na loucura e por absurdo, colocar uma fatia de queijo. 
- Ah, esse pão é para as sandes de queijo. 


Bloqueada. Desiludida.
Deslarguem-me. Desenervem-me.

- Então, é isso que quero.
Depois pus-me a pensar e achei preferível fazer a destrinça entre sandes e pão com.
- Qual é a diferença entre uma sandes de queijo e um pão com queijo?
É que também acredito naquilo do aprender até morrer.
Mas sorriu, a tonta.
- Não sei...
Olhem, eu é que não sei. E também não fiquei a saber. Sei que já tive aquela idade há cerca de milhares de anos, e nunca fui tão tolinha.
Devo ter perdido alguma coisa pelo caminho.

24/09/2019

A carne é forte

Deixei de comer carne em Janeiro, e não teve a ver com uma decisão de Ano Novo, até mesmo porque não foi no dia 1, apesar de não me lembrar em que dia foi. Sei que foi algo não maturado, como quase todas as decisões que tomei em definitivo, que se deu no momento em que abri o youtube por uma razão inútil qualquer e, sem que tivesse carregado em botão algum, abriu-se um filme que se passava num matadouro/ assadouro de porcos, e, desta forma, fiquei agarrada ao ecrã, ao horror a que assistia, à convicção de que nunca mais seria capaz de comer mamíferos, e, já agora, animal nenhum com patas em que a relação mãe-filho seja de dependência mútua nos primeiros tempos de vida. É este o meu diapasão: não é o facto de serem animais domésticos, animais criados exclusivamente para alimentar o Homem, animais que sofram a morrer (errrr...) (gosto particularmente da definição de "vacas felizes"), ou animais que, mais tarde ou mais cedo, se "esgotem" e tornem insustentável a alimentação humana. Para mim, e por enquanto, é assim, repito: animais com patas em que a relação mãe-filho seja de dependência mútua nos primeiros tempos de vida. Portanto, encontro-me ainda naquela fase hipócrita das pessoas que não comem carne, mas comem peixe, como se os peixes não fossem animais também eles, não sofressem ao morrer, etecetera. Toda a vida me fez confusão os olhos dos peixinhos quando me chegavam ao prato, porque continham o último olhar do animal, que deveria ser de agonia e desespero e eu, mesmo em miúda, já era esquisita e acreditava, de alguma maneira, que aquela angústia se podia transmitir quando engolisse a carne do bicho. E é que não deveria estar muito longe da verdade, pois parece que está provado que a hormona libertada pelo animal no momento da morte se conserva no organismo dele, e nós ingerimo-la, "inocentes". 
Enfim, uma coisa de cada vez. Agora sou, de há uns meses para cá, piscitariana. Não fundamentalista, uma vez que continuo a cozinhar carne, porque respeito quem comigo mora. (Homens...)
Mudanças que senti, depois de abandonar a carne? Nenhuma. Não estou mais magra nem mais gorda, não tenho mais nem menos força, não melhorei a nível físico em coisa nenhuma (também era difícil), nem ao menos intelectualmente (idem). Não é mais barato alimentar-me só de peixe e vegetais, não é mais fácil encontrar refeições, até pelo contrário: nos restaurantes comuns, a panóplia de escolha resume-se a metade do menu, quando não a um décimo. Só estou mais feliz. E não, não é uma questão hormonal, é mesmo só por ter a consciência mais tranquila. E isso, parecendo que não, é um alicerce para a tal felicidade.
(Estou tão adulta.)


23/09/2019

Checklist para um dia como o de hoje, apenas para contrariar a tendência (e demonstrar a Murphy que a teoria dele é péssima)

1. Lavar o cabelo. Quem vive no fio da navalha, ainda o seca com secador e dá-lhe uns jeitos com o babyliss. Radical mesmo, é ir ao cabeleireiro, e pagar para obter o mesmo resultado: um cabelo arranjado e limpo que enfrente a chuva, ainda que fraca - ou a forte possibilidade dela - com toda a classe e arrojo;
2. Calçar sandálias/ qualquer calçado que exiba o pé quase todo. A unha ainda está bonita e recentemente pintada, pelo que pode e deve ser mostrada sem pudores até que troveje/ chovam picaretas e cats and dogs. As mais afoitas devem mesmo pintar as unhas dos pés antes de sair de casa e saírem com elas pintadas de fresco para a calçada portuguesa;
3. Não usar calças, recurso das indecisas/ medrosas. Saias, vestidos, calções, mas sem a batota do collant. O que serão umas pinguinhas no pernil, diante da imagem da coragem por nós encarnada, mesmo que vestidas de verde?;
4. Esquecer o guarda-chuva. Esse grande mono, que só faz falta quando está em casa. É deixá-lo. Existem muitos vendedores ambulantes que também precisam de se governar;
5. Não esquecer os óculos de sol. Há sempre uma réstia, um raio de um raio que não é relâmpago, aquela luz ao fundo dos túneis da vida;
6. Deslocar-se a pé a maior parte possível do percurso, e por descampados. Quais agora carro, quais agora transportes com tecto. Em sobrando tempo, é apanhar um sightseeing e ir lá em cima, a arejar as ideias. Ou dar uma volta no Hippotrip. Ou alugar um descapotável;
7. Mandar lavar o carro. Para que o coitadinho não se sinta marginalizado, só porque;
8. Lavar vidros e persianas. Vá, tudo a brilhar, caso chova. Nada mais romântico do que ver a chuva a cair através de um vidro tão limpo que nem se percebe a sua existência. Chega a ser filosófico;
9. Fazer um piquenique. Se chover, não haverá formigas a atormentar as nossas compotas;
10. Casar. Diz que boda molhada e assim.


14/09/2019

Foram três vacas seguidas. Fora as outras duas, ainda mais importantes

E nisto, passou-se um mês sem aqui vir. De tal maneira que me esqueci da password entretanto, algo normal numa pessoa da minha idade. Refi-la, ou, como diria o povo, refiz-a, ou, ainda melhor, refízi-a. E então, cá estou.
Achei importante registar três vacas que tive ontem, apesar de ter sido sexta-feira, 13. De resto, não se tem passado nada que me apraza publicar acerca da minha existência, que continua este marasmo repartido entre muita beleza, glamour e dolce vita.
Então, ontem foi dia de dentista-dos-olhos-bonitos. Estive para ali deitada mais de uma hora, ele apertou-me os ferrolhos e depois saí. Na recepção, foi-me comunicado pela assistente que já não havia nada a pagar do aparelhómetro bucal, uma vez que, ao longo destes últimos treze meses (reparem se não há aqui um sinal qualquer), já o havia feito. Primeira vaca.
Saio para a rua, pimpona e feliz (a estrear um vestido com dois anos - dois! - de armário, que levou tantos elogios que não sei como não o vesti quando era dois anos mais nova), tenciono cessar o pagamento do parquímetro através da aplicação, e verifico que, ou porque fiz alguma coisa mal, ou porque a p. da aplicação não funcionou, tinha deixado o carro à solta, sem selo nem pagamento algum durante uma hora e meia. Vai de correr para Rosinha, minha canoa, assim o raio do vestido novo permitisse, mais as chalocas de saltos, o coração aflorando os beiços, deitando contas à vida, Ai, meu Deus, ai, meu Deus, estacionei há uma hora e meia em zona amarela, impossível não ter passado um Emélio nos entrementes, vou chegar e ter Rosinha com uma fita de miss a toda a volta e uma patinha bloqueada, fora a despesa, que não ganho para estas distracções, e não é que, quando me acerco da viatura, está ela parada, é certo, mas limpa e impoluta de envelope vermelho, fita ou bloqueador? Meti-me nela e arranquei muito devagarinho, só naquela de ver se não me aparecia um daqueles fiscais a pular em cima do capô, ou, como diria o povo, cápom. Segunda vaca do dia.
Minutos volvidos, estou a circular no Eixo Norte-Sul em sexta velocidade, a cerca de 87 ou 93 quilómetros por hora, faixa do meio, e vai o camelão que está à minha frente - um camião de cargas - e trava. Assim, do nada. Já tinha percebido que, à frente dele, circulavam mais dois pesados (um deles de transporte de combustíveis), e terá sido um dos dois que travou primeiro. Pode ter sido mérito dos travões de Rosinha, ou então do meu também pesado pé direito, mas o que é facto é que também consegui travar. Com tempo para ligar os quatro piscas e fazer uma breve oração, Enfim, agora é esperar que nenhum me venha esborrachar contra o monstro de ferro e, indirectamente, contra a gasolina do outro, pois, se assim for, terá sido em vão e uma grande ironia tanto trabalho e investimento botado neste corpaço. Terceira vaca, portanto.
Por último, mas muito mais importante: tive dois filhos na estrada ontem, e chegaram-me inteiros e lindos, como nos dias em que nasceram.

12/08/2019

Algumas informações acerca da pessoa humana, que, embora possam ser inúteis, terão certamente algum interesse ao nível de stalking, esse desporto paraolímpico

Pois bem, ando arredada. Já toda a blogobola deu por ela, não negueis.
Ocupo uma boa parte do meu tempo numa actividade altamente gratificante, não tanto em termos financeiros - é que nasci para rica, mas parece que não vai acontecer -, mas de ficar feliz com o resultado. Que me sai das mãos, que me dá largas à imaginação, que me diferencia e destaca muito mais do que isto aqui. Ainda por cima, não tenho que me exibir, me fazer maior, me revelar culta e bela: sou eu e o meu trabalho. Quanto melhor o fizer, mais terei para fazer. Uma suave bola de neve, toda ela algodão doce. Meti-me no Instagram, numa de divulgação, e tem sido uma revelação antropológica: o Mundo está perdido. Já recebi todo o tipo de propostas, mas é que todo. As mais indecentes têm sido as das parcerias. Nova definição de "parceria", urgente, senhores da Porto Editora: situação em que alguém que trabalha é colocado por alguém que não trabalha, em que o primeiro fornece gratuitamente ao segundo os seus produtos/serviços, a troco de nada, ou de promessas de divulgação [seja lá o que isso for].
Entretanto, comprei uma máquina de costura nova, porque a minha Rabugenta deu o peido mestre. Agora sou a feliz possuidora de Belinda, a Escrava do Silêncio. Continuo, portanto, a atribuir nomes próprios às minhas coisas. Eu sei que se chama personificação, também andei à escola e estudei Português (atentamente, acrescente-se). Deve ter uma explicação qualquer, que não encontro nem quero saber qual é.
Tenho ido a concertos (Mark Knopfler - afinal a acústica do Altice Arena não é má, os técnicos de som de Eltoninho é que não prestam - e Barclay James Harvest) e também ao cinema (destaques para o novo "O Rei Leão" e "Adeus, Professor", apesar de este último ter sido um tudo-nada desilusão, porque eu ia para me emocionar e não aconteceu. Sou uma pedra. Tenho uma pedra no lugar do coração, melhor dizendo).
Agora corro e já não detesto correr. Faço cinco quilómetros uma vez por semana, sempre no mesmo dia, sempre à mesma hora, sempre no mesmo lugar (Estádio Universitário). Em querendo assistir à paródia, é passarem ali 24/24 durante 7, e é possível que, se virem passar uma obesa velha, seja eu. A verdade é que me custa cada vez menos correr, sinto-me muito mais toni, mas acho que não estou. O importante é o sentir, como diria Francineide Carandiru.
Também tenho dançado bastante. Pela primeira vez em vários meses, consegui acertar todas as coreografias de uma aula de Aeróbica, e isso desacertou-me o relógio mental para a grande dúvida que ainda persiste: foi uma aula mais simples ou passei o patamar dos passos pedidos?
Quanto a férias, são uma realidade que não revelo se ainda para lá vou, se já cá estou, se já lá fui. Desculpem, tenho que ter o meu espaço reservado uma vez na vida, e acontece que esta posta já está de bom tamanho.

07/08/2019

Livro de reclamações

Só faltava o pequeno cartaz mandar-nos sorrir [está a ser filmado], mas dizia qualquer coisa como "aqui pode elogiar". Já estávamos na sala de espera há duas horas, e eu, obviamente, já tinha ido reclamar. Isto, ao fim de meia-hora sem termos sido atendidas. Falei em desorganização e falta de respeito, fiz saber que sei que a profissão de médico é a única que pode incumprir com horários, e também aquela em que esse incumprimento sai sempre impune de todas as contravenções. A funcionária que me escutou fez que sim com a cabeça, mais para me mandar calar do que por concordância, e, de propósito ou por distracção, ainda aumentou o volume à minha pequena ira, quando me mostrou o painel com as consultas da tarde, onde facilmente constatei que a pessoa das 14:30 estava a ser atendida naquele momento, isto eram 16:30, mais minuto, menos segundo. Concluindo, pelo menos esta parte, a doutora obviamente não havia chegado às 14:30 e nós iríamos - como, efectivamente, fomos - ser atendidas com duas horas de atraso. Só a mim não me saem empregos destes. A ver se na próxima encarnação não me esqueço de me meter na Faculdade de Medicina. (Estudasses.)
Quando entrámos, a dita doutora balbuciou umas desculpas mal enjorcadas, atirando para cima dos doentes anteriores o motivo do próprio atraso, É que sabe, as pessoas vêm para aqui desabafar, isto uma médica de músculos, ainda que fosse psiquiatra ou oncologista. Ou veterinária.
Então, a consulta demorou vinte minutos, nos quais couberam dois telefonemas das filhas da médica, porque uma se encontrava à porta de casa sem chave para entrar, a narração das maleitas do pai da senhora e uma declaração à boca cheia de que "Eu não sei ler ecografias porque não sou radiologista". 
Ai dela que se tenha lamentado ao doente seguinte do atraso dos anteriores, incluindo-nos, assim, na sua desarrumação mental. Estimo que lhe caia um dente da frente de cada vez que faltar à verdade de forma tão vil. E leviana.
E sim, pagámos a consulta, mas mais porque já passava da hora de lanche e queríamos sair dali para fora rapidamente. 
E não, esta não foi a pior médica que consultei na vida. [Palmarés para uma que também nos fez esperar duas horas - há aqui um padrão? - e, para além de me cheirar a suor - dela - quando entrei no gabinete, fiquei com a sensação de que nem à porta da tal faculdade passou, tamanho era o adormecimento em cima do teclado e a hipnose diante do monitor. Facebook? Pornografia? Desenhos animados? Valium? Nunca saberei. Mas também nunca teria sabido a solução para o que nos levava ali, se dependesse dela.]

22/07/2019

Não me deixe, por favor, eu gosto tanto de si!

Assim me rogou aos céus, como se eu fosse Maria ou então a mãe dela, a minha manicure, Filipinha do meu coração, olhos mais lindos, mais azuis, perdidos no enorme corpo de muito farinácio composto. Diz que até chorou.
Dá-se que Filipa me descobre espigões nas unhas, ou melhor, naquela linha de fronteira que separa a unha do dedo, e arranca-mos impiedosamente até - literalmente - sangrar. Pergunto, já antevendo a dor excruciante e consequente consequência, se tenho assim tantos, ai que sim, que é tudo para arrancar, enquanto me convence a pintar as unhas de cores sempre antes impensáveis, num pantone que vai do rosa-cerise-a-fazer-pandan-com-os-calções-do-ginásio ao laranja-detergente, ao qual também já ouvi chamar laranja-utilitário. A última vez que dei as mãos a Filipa, sangrei de, pelo menos, seis fontes, e saí de lá com talvez nove feridas (donde se conclui facilmente que, matematicamente falando, nem todas deitaram sangue). Ainda por cima, ela é sensível à imagem do sangramento, começa a desmaiar cada vez que vê uma gota do fluido a brotar. Que faria se não fosse.
Eu sou uma pessoa com sentimentos, e fiquei magoada. Assim como pus a massagista da drenagem a andar de carrinho fast-fast, mandei sms de despedimento a Filipa, explicando-lhe os motivos, acompanhado ao violino de fotografias, para que a coisa ficasse mais gráfica, oh, pá, e ela desmaiasse de uma vez, mas percebesse os meus porque sins e os meus porque nãos.
Minha querida, meu amor, não me deixe, por favor, eu gosto tanto de si!, assim começou o lacrimejante telefonema que foi a nossa reconciliação, porque vá, eu sou uma pessoa com sentimentos, não sei se já disse, e também porque nunca ninguém me disse, na mesma frase, tantas coisas bonitas e a puxar ao sentimentalóide, embora reconheça que grande parte da inspiração de semelhante cantilena adveio de razões economico-financeiras, que são as que acabam sendo, parecendo que não, as mais pungentes. No entanto, sei - porque me conheço de ginjeira -, que estou nesta situação como estão as pessoas traídas: dou-lhe mais esta chance, mas não dou mais nenhuma. É magoar-me uma única vez e terá pela frente as minhas costas, não havendo então quaisquer rogos, nem aos céus, nem à Terra, que lhe possam valer. Eu, implacável, a ir fazer as unhas a outra qualquer, que, convenhamos, são às mãos cheias num raio de quase nada, neste raio deste maravilhoso bairro que é o meu.

26/06/2019

Baila bachata

Em plenos treinos, aprendendo uma dança nova: la bachata. 
Então, não atinava com o passo do refrão. Toca no chão com o pé direito, um-dois-três enquanto vira, toca no chão com o pé esquerdo e repete. Toda eu era trocas no toca, acertando o passo no resto da música, chegada ao refrão - só a parte principal da dança, convenhamos - e troca e troca.
Até que. Ainda a música não soava no ar, e aquilo saiu-me assim, como se já soubesse o passo do refrão há que tempos. Estava na cabeça, não me chegava aos pés. Ontem foi o clic, da cabeça aos pés.


Faz-me isto lembrar um problema social que vivi na infância que, como todos os pequenos traumas, ficou para sempre a bailar-me na cabeça, isto quase literalmente: quando eu era uma criança, havia música de fundo nos supermercados (também se fumava lá dentro, eram outros tempos de país em vias de desenvolvimento, mas nem por isso menos feliz). Eu ia, ou melhor, era levada, e fazia um imenso esforço para não desatar a dançar nos corredores, entre latas e pacotes de detergente. (Eram aos pacotes de papelão, nada cá do malfadado plástico.) Normalmente, não conseguia levar adiante os meus intentos, porque bastava distrair-me, e lá ia eu a esvoaçar, rodopiante, até à outra ponta do sector, ou até encontrar uma barreira física qualquer. (De fraldas, não havia de ser com certeza, pois as fraldas, naquele tempo, eram de pano, cá nada destes químicos que mais tarde impingimos aos nossos filhos e à atmosfera.) Depois houve ali um tempo em que não fui ao supermercado, por coincidência, ou decisão materna, que havia de estar farta de ir apanhar a bailareca ao fundo do estabelecimento, envergonhada por, mais uma vez, ter perdido o controle derivados à música. (Não foi isso de certeza, a minha mãe era a pessoa mais low profile para essas coisas, o mais certo seria até achar graça.) Acredito que foi mesmo porque não calhou. Quando lá voltei, já naquela fase espigadota em que somos uma crisálida, ou lá o que é (nem lagarta nem borboleta), sentindo-me senhora do meu nariz e da minha vontade, percorri a distância que distava entre a minha casa e o dito mercado, a debitar mentalmente um mantra, "Não vou dançar, não vou dançar, não vou dançar", entrei, toda eu convicções e autodeterminação, ouvi a música, toda eu mãos e pés juntos, parecia uma louva-a-Deus concentradíssima, aguentei o impulso sabe aquele a quem louvava a que penas, até que. 
...
Não sei como foi aquilo, devo ter-me distraído da promessa, posso ter tido uma branca, sei lá.
Sei que "acordei", e, enquanto a minha mãe e a minha irmã escolhiam coisas numa prateleira, já eu rodopiava por ali, tolhida de vergonha, achincalhada pela minha própria fraqueza e incapacidade de resistir a um passinho de dança. 
Isto até pode ser uma doença psiquiátrica com um nome estrambólico e eu não sei.

24/06/2019

A estagiária

O lobby do hotel, de um luxo simples e alegre - um smiley gigante em 3D pousado no canto de um aparador -, abarca a recepção, o restaurante e a saída para a piscina que, por sua vez, fica a cinquenta metros da praia, talvez oitenta do mar. É esta a minha noção de paraíso. Ainda estou a dar o último suspiro urbano, quando somos abordados por três funcionárias, que nos cumprimentam quase em coro com um "Olá! Sejam bem vindos!", e reparo que todas têm a boca pintada num vermelho vivo, que me pergunto se saiu do mesmo bâton, ou se será cortesia e imposição da entidade empregadora. Estou nestes dilemas quando a mais faladora pergunta por qual o pacote de boas vindas, de um de três, queremos optar: uma bebida que não fixei e uma massagem às mãos, uma bebida que não fixei e uma massagem completa, ou uma bebida que só fixei porque a bebi, mas calculo que fosse sempre a mesma, e o sorriso das recepcionistas. Como já tinha levado com eles, assim como assim achei melhor a última opção, porque possuo issues com a cena das massagens, de mais a mais sendo nas mãos, zona tão íntima onde não mexe quem quer, essa agora. A bebida era um gin tónico, e lá me baixou a pelintra que não lhe podem acenar com um grátis, que nem que fosse um prato de iscas regado a absinto, dizia logo que sim sem sequer bater as pestanas. Foi então que a menos faladora, mas aparentemente mais segura de si e, quem sabe, de mim, com uma placa ao peito a dizer "trainee", começou a preparar as bebidas, atirando com uns cubos de gelo para dentro dos copos. E disse bem, "atirando", uma vez que não acertou com dois dos malandros no alvo traçado, tendo um deles caído no chão e o outro em cima dos papéis que ali estavam pousados ao lado. E Mariana, assim se chamava a trainee, sem quaisquer pudores ou hesitações, agarrou assim mesmo à mão e à maluca no cubo fujão que aterrara nos papéis e atirou-o para dentro de um dos copos, desta vez acertando, toda ela sorriso maroto, "Hoje sinto-me mamaluca". Já eu ia lembrar-lhe o cubo caído no chão, não fora querer juntá-lo ao outro evadido, quando uma das outras duas ralhou, "Mariana, isso nunca se faz!", e depois lembrei-me que também já fui estagiária, e foram tantas as vezes que meti os pés pelas mãos, que surfei no mar da minha ignorância, umas vezes a rir, outras chorando-as a sangue, que esperei apenas que me servissem outro copo, para ir beber o meu gin já instalada de pernas para o ar. Isto chama-se maturidade, brlá-brlá-brlá.


22/06/2019

Quão intencional/desastrada/aleatória

consegue ser a oferta de uma revista relativamente ao seu título de capa?


E um picador de gelo, não?

19/06/2019

Aprendam comigo, que eu não duro sempre. Só mole.

Pois, fui à Feira do Livro, e acabou por acontecer duas vezes: a primeira já estava assim mentalmente programada desde que o evento abrira as portas que não tem: à noite, rápido, rápido, direitinha à Dom Quixote para adquirir todos os meus Antónios* que pudesse carregar sem sobrecarregar a conta bancária, essa grande meretriz que emagrece sem grande esforço de forma absolutamente invejável. Trouxe apenas dois, não porque me faltassem as forças para mais, mas porque já expliquei. Ainda por cima, a casa onde habito habitualmente, ao contrário da alma que me habita a mim, não é grande, e qualquer dia estou deitada sobre livros, qual místico da cama de pregos, só que sem dor. A segunda vez que lá fui, fi-lo com tempo, apesar de o da Feira se estar a esgotar, pois fui no último dia. Percorri aquilo tudo de lés a lés, que é como quem diz, de cima a baixo e depois de baixo a cima. (Hã? Muita bom, não ter dado aquele enganozinho do "acima" e "abaixo". São muitos anos, isto.) Ora, conforme é sabido, a Feira admite apenas dois climas: ou chuva, ou um sol a pino que não dá para perceber. Deve ser da inclinação, ou então sou só eu que sofro. Como naquele dia estava calor e eu hei-de ter achado uma ideia brilhante ir de t-shirt preta e calças de ganga escuras, levei com a chapa grelhadeira todo o caminho, principalmente nas duas vezes que subi, tipo em escala ascendente, aquele passeio dos alegres intelectuais assim como eu. Portanto, enchi-me da canícula. 
Isto tudo para explicar um fenómeno da Química, que é praticamente uma metáfora da minha vida toda.
Acerquei-me ali de uma roulote que vendia beberagens, apercebi-me, enquanto esperava a minha vez, que havia umas palhinhas feitas de massa crua, e vai de pedir uma para enfiar na lata do Seven Up, isto tudo armada em ecológica da pegada verde. Vi a senhora tirar a dita lata do frigorífico, pelo que não foi agitada, sequer estava deitada (a lata, não a senhora), entregou-ma, e eu zás na argola daquilo. Abri a lata, tudo igual ao litro, e então meti a palhinha pelo buraco da coisa. E fssssssh, um vulcão de espuma sobre mim, que me atingiu a mala, os sapatos (o cinto não, porque não levava), o chão e um nico o orgulho. Era eu na Feira, onde todos se vão cultivar e pavonear, a segurar uma lata que cuspia espuma. Parecia do circo Chen, eu.
Portanto, recapitulando: massa fresca mais bebida com gás, é igual a festa da espuma.
Há uns anos, alguém descobriu um fenómeno semelhante com a Coca-Cola e os Mentos. Agora descobri eu este. Quase de certeza que o resultado é igual com qualquer bebida gaseificada e qualquer tipo de massa. Quando estiver aborrecida e sem nada para fazer, hei-de experimentar com massa de letrinhas e champanhe. Depois ponho-me no Youtube e fico rica, para poder ir à Feira para o ano, comprar todos os Antónios que ainda me faltam. 

* Lobo Antunes (claro).

17/06/2019

E os boomeranggers? ∞

Uma pessoa instagrama-se e descobre todo um novo mundo de possibilidades de estudos antropológicos associadas. Vocês não sei, mas eu, assim como nos blogs e na vida, tenho os meus guilty pleasures mais ou menos assumidos, pelo menos de mim para comigo: aqueles locais que frequento só para me irritar/ ver até onde é que o patético consegue esticar/ surpreender-me a níveis que desnecessitem de botox, pois o elevar de sobrancelhas e o abrir do olhar que tais publicações provocam, são coisas para perdurar por horas.
Assim, esquecendo agora as inenarráveis - que eu, apesar disso, tentarei descrever em poucas palavras apenas - imagens da tipa que acabou de se maquilhar na casa de banho do shopping e se fotografa ao espelho com as cabines de retrete e as ditas cujas abertas lá atrás, hoje apetece-me vir debruçar sobre a cena do boomerang com que o povo entope as suas stories. 
Eu já fiz boomerang. Fiz, e fiz, e hei-de voltar a fazer, de todas as vezes que o boomerang se justifique, ou seja, em que o micro-filme fique mais engraçado/ ilustrativo/ lógico usando essa "técnica". Se filmar alguém a subir três degraus, se filmar um movimento que se repete num sentido e no contrário (tipo passar a ferro), se filmar um salto de um gato, pode ficar com mais piada se recorrer ao boomerang. 
Mas eu quero, aliás, eu exijo perceber o que é que passa na mona das gajas (são quase sempre, não é? Ou sou só eu que não conheço instragrammers masculinos que se dediquem à tonta do infinito?) que filmam um prédio, aleatoriamente, e depois a gente fica a pensar se elas assistiram a um terramoto ou se é só o boomerang delas do dia? Ou a manita delas com um copo de cerveja, em plenos santos populares, a gente na dúvida se lhes está a dar um espasmo, e por que genitais não se lhes verte a bebida do copo. Ou as gajas a deitarem a língua de fora, aquilo numa cadência ritmada, não sei se sugestiva, mas em que uma pessoa até tem medo de deixar o seu gelado por perto, não vá aquilo chlep e lá se vai o dito coiso.
Olhem, todo um manancial de dúvidas, cuja única resposta há-de ser que já não tenho idade para estas coisas. Estou quase uma senhora.

16/06/2019

Foi tão blogger da minha parte, nem posso dizer que corri, só que curry

Tendo-me baldado ao ginásio, e como auto-penitência, fui correr. Sábado de manhã, cafeína na veia, nada de pesos extra, excepção feita a Ai-fostes e um leve mp 3 (sim, sou desse tempo, com a agravante de ter a playlist toda desactualizada), lá fui para o Estádio dar à perna, considerando a possibilidade de dar uma volta, caso conseguisse, e depois logo se veria se não daria a segunda já a andar. E deu-se o milagre: uma volta percorrida, confirmado que, efectivamente, o que custa são os primeiros quinhentos metros, iniciei a segunda, pensando que ó pá, mal sinta dor de burro/ cansaço extremo/ palpitações, páro mas é, que ainda me sinto demasiado jovem para faleceri e seria uma ironia sem ponta de pinta fazê-lo nesta circunstância em específico. Prescindi da música, para não me enervar, tendo preferido o som dos passarinhos e também dos carros da Segunda Circular, tive uma sorte imensa porque não havia mil mamãs empenhadas em ensinar os seus pequenos piratas a andar de bicicleta com rodinhas, nem outros entraves do género ao meu endurance, a não ser uma ou outra poia de cavalo deixada aleatoriamente pela G.N.R. Ainda assim, e apesar disso, fui-me dando alento, “Vai, gorda, tu consegues”, estou a gozar, dizia-me, “Não te esqueças que estás a menos de uma semana do Verão. Gorda”, sempre achando que a meio da segunda volta ia parar, mas é que as forças não me falharam e pronto, era preciso chegar a esta provecta idade para cumprir 5 quilómetros e 300 metros sem pausa em pouco mais de meia hora. 



Pode ser que nunca mais repita esta façanha, daí a necessidade e alguma urgência de a registar.
Para comemorar a minha micro-maratona, na qual fui a única participante, hoje abracei e beijei estes amores, com os quais pretendo, se não palmilhar milhas, pelo menos dançar muito e fazê-los fazerem-me muito feliz. 


(Na verdade, o meu amor ia para estes, mas o meu pé chato e parvo decidiu pelos outros.)




13/06/2019

Notícias do meu fungo

Está que é uma maravilha. 
Aguentei estoicamente duas idas à praia com ele à vela, eu toda maravilhosa da cabeça aos tornozelos, mas umas unhas dos pés que nem o Shrek. No entanto, isso também me fez descobrir o truque para o esconder, que é passar o verniz anti-fungo nas unhas antes da praia, que uma pessoa chega lá e as unhas ficam imediatamente cobertas de areia, qual glitter. Mas é chato, eu queria-as carmim sanguinário como toda a gente. Porque eu sou toda a gente. (Pelo menos, quando me interessa.)
Entretanto, liga-me a da farmácia, a avisar que a podóloga astróloga da unha do pé desistiu, não percebi se da profissão, se de mim, se do quê: não vem mais a Lisboa, uma vez que, desde que o bebé nasceu, tem muita dificuldade em vir uma vez por mês do Porto, e eu parva, "Mas então que idade é que tem o bebé?", isto por não me ter apercebido de a criatura ter dado à luz recentemente, não que tenha examinado mais do que a aparência que a coisa dá, mas por mera porém olímpica curiosidade, e diz-me a outra assim: "Sete anos". Ai, que estranha me sinto, que aos sete anos dos meus já fazia as contas aos netos, aos sete anos da mais velha já o mais novo tinha um ano e andava e tudo, mas há umas assim e outras assado. Directa para a categoria só-a-mim-não-me-saem-empregos-destes. 
Entretanto, fui à minha Filipa, mani e pedicure que sabe tudo acerca de funguices, e que me arranjou o pé, por assim dizer, pois, na realidade, pôs os dois num brinco, não propriamente. Fiquei tão feliz que ando desde aí com o pezinho à mostra, quer faça chuva, quer vente, quer façam temperaturas negativas, que é só o que falta por estes dias. A conselho de Filipa, devo esguichar lixívia para o dedo afectado das micoses. 
Já o médico das pernas, oráculo que consulto todos os meses vai para vinte e um anos (ou pensam que uma fêmea carrega quatro ventres de nove meses cada um sem sequelas vasculares?), receitou-me vinagre de vinho tinto. Espero que não seja para beber. Lá nos entrefolhos da consulta, perguntou-me o dia, a hora e o local exacto do meu nascimento, porque anda muito excitado a fazer cartas astrais das pessoas. Pergunto-me que mania esdrúxula terei quando chegar à idade dele. Eu, chique como sempre, sei tudo menos a hora ao certo, sei até coisas que não interessam, como o local exacto onde fui concebida - Avenida de Roma rules! - disse-lhe "uma hora qualquer entre o meio-dia e a uma, sei que nasci para almoçar", e, passadas umas horas, recebi por mail a minha carta astral, seja lá o que isso for. Ainda não abri, mais por desinteresse do que por medo, mas que las hay.
Em suma, caguei no fungo, isto não de forma literal, até por impossibilidade contorcionista, pelo que decidi escutar as doces palavras de Filipinha: "Os fungos tratam-se no Inverno". Boa, Pips, you rock. Estou contigo e não abro mão. Nem pé.


09/06/2019

estou de Junho

Trouxe-me há muitos anos o pai, que me nasceu neste mês, alguns antes de eu própria conhecer o mundo.
Trouxe-me o mar de Junho, os dias longos e as noites quentes de luar eterno.
Trouxe-me a confirmação de ser, para todo e qualquer efeito, uma mulher.
Trouxe-me, se puxar bem pela memória, o primeiro amor, tão fugaz que não o soube saborear na tonteira dos catorze anos. 
(Não sei como não nasci em Junho, eu. Nem sequer fui nele concebida.)
Depois levou-me o pai, assim como mo tinha trazido. Levou-me a mãe, não satisfeito, cravando-me uma orfandade permanente e defeituosa. 
Ainda tenho comigo guardados os olhos azuis do enorme bombeiro, feições cheias e rudes, tisnadas do sol e do fogo, cheios de mar de Junho para mim, A senhora sabe, a gente vê muita coisa todos os dias, mas isto... E a mão grossa dele sobre os bracinhos da minha mãe, chamando mansinho, quem sabe se também ele cheio dessa orfandade defeituosa que me veste desde aí, Avozinha...
Enquanto não purgar Junho, não saberei estar.

30/05/2019

Ela fala tanto # 27

A sem-nocite não tem limites.
Procurava eu um recipiente de loiça tipo pyrex, para aquecer comida no forno, e lembrei-me que tinha dois iguais, com desenhos diferentes, mas que havia um deles que já não avistava há bastante, pelo que perguntei por ele, olha a loucura. 
- Então, esse foi o que me bateu na cara e se partiu.
Pronto, o verbo partir conjugado na forma pronominal nunca é bom augúrio. 
Sinto no ar um cheiro a acusação.
- Como assim?
- Então, estava mal arrumado...
Um pivete a segunda acusação. Mal arrumado por quem?
- ... e caiu-me na cara.
Terceira acusação, um enxofre que não se pode.
- Ainda andei aí uns dias com a cara marcada. Não deu por isso?
Quarta? Fede.


Pá, não. Cansei de levar na corneta.
- Não, não dei por nada. Fiquei sem pyrex, portanto. 
[Olha a velhaca, que uma pessoa quase faz um traumatismo craniano, acidente grave de trabalho, por uma porcaria de loiça que não vale um c. e que ela há-de ter arrumado mal de propósito, amarga aqui as dores em silêncio e a gaja, além de não dar por nada, ainda lamenta o tareco, em vez de se preocupar com a pessoa, dar-lhe a baixa ou então pagar-lhe uma indemnização.]

29/05/2019

Agora o meu cartão de cidadão é uma folha A4

Então, lá fui ao serviço público da capital de distrito mais próxima da minha residência, suficientemente longínqua para que nem com binóculos visse as bichas que contornam quarteirões com vista à renovação do cartão de cidadão. Cheguei às 9 em ponto da madrugada, hora a que as portas se abriam de par em par. Porém, já entrei atrás de outros sete, julgo que regionais, que devem ter ali aterrado antes do nascer do astro: quase todos senhores de muitíssima idade, naquela faixa em que ainda levam bilhete de identidade (perpétuo) e só vão mudar porque algo na identificação se alterou, tipo o estado civil. Curiosamente, nenhum deles tirou senha prioritária. Mesmo o primeiro, e apesar de o ser, podia. E a terceira, bem mais velha do que a segunda, amorosa, de sapatinhos de fivela, a fazerem lembrar as sandalinhas inglesas das minhas meninas, quando era eu a decidir o que é que elas calçavam. 
Bom. Eu era a 8, portanto. Fiquei ali, cotovelos em cima do balcão, a assumir o semblante de sala de espera, enquanto apreciava o redor: pregado na parede, um calendário de uma funerária com a imagem de um pássaro a alimentar as crias no ninho; um homem de mangas arregaçadas, do casaco incluído, calças de ganga largas com um autocolante colado no rabo, mãos nos bolsos, falando alto, andando para lá e para cá e eu a começar a ficar nervosa; oito secretárias para os funcionários, seis que foram sendo ocupadas aos poucos, cinco mulheres, um homem, só dois a atender, as outras quatro extremamente ocupadas com o computador e papéis, todos da mesma idade, todos iguais: vários quilos acima do peso para o índice, todos de óculos, todos de uma concentração coordenada e pouco simpática. 
Fui atendida por uma das cinco, que não gostou de mim. Eu sei que ia num dia de bad hair, com cara de agarrada a precisar de cafeína, mas, essencialmente, acho que a endémica ficou azeda porque eu era uma forasteira. Pronunciou a bold sublinhado a palavra "Lisboa" e suspirou quando lhe disse que preferia ir ali buscar o cartão de cidadão do que ter que me meter nas filas da capital - e pronunciei a bold sublinhado "capital". Perguntou-me se queria ficar com a mesma fotografia (que tem nada menos que cinco anos) e eu respondi que Isso não me parece muito honesto, daqui a dez anos tenho na minha identificação uma fotografia com uma décalage de quinze anos, e ela, nauseada, mandou-me meter atrás de uma barraca de ferro e olhar lá para um óculo, só faltou gritar Não respire. À primeira chapa fiquei horrível, para além de descentrada, só se via uma parte do meu ombro esquerdo. Ela que isso não interessa, eu ai que era o que faltava, quero tirar outra, e lá reiniciei a sessão fotográfica. Contudo, não havia modo de ficar bem na fotografia, literalmente, pois o óculo ficava uns centímetros acima da minha testa, e, convenhamos, ninguém fica bonito a olhar de baixo para cima, com aquela subserviência, ainda mais se estiver aterrorizado, como era o caso, pela semelhança entre o cubículo e umas máquinas de RX com as quais fui confrontada em pequena, que ainda hoje me assusto só de me lembrar daquilo a espalmar-me contra a parede e não haver chinfrineira da minha parte que cessasse o processo. 
Depois a seca que me saiu na rifa não me quis medir, o que achei mal. É que foi a minha última esperança de entrar na velhice com alguma dignidade. Isto, porque tenho assente nos meus documentos identificativos desde para aí os dezassete anos, que meço 1,68 metros. É o que, efectivamente, acho que meço, mas existe a possibilidade de ter um dia dado a volta à cabeça a um funcionário do Arquivo, ter sido medida de saltos altos e lhe ter dito que não me retirava nem um centímetro por conta das andas. Bom, isto era segredo até hoje. Mas vamos acreditar que são 168 centímetros e que serão até daqui a dez anos. 
Às tantas, a pessoa desapareceu, foi lá dentro fazer não sei o quê, até pode ter sido cocó. Cônjuge entra na sala e pergunta-me qual era a senhora que me tinha atendido, e eu, sincera, que Não sei, hás-de reparar que têm um denominador comum, ainda não percebi se é sempre a mesma que vai mudando de roupa e de secretária. Penso que era uma destas. 
Então, uma lá do fundo da sala, grita na nossa direcção: Os senhores, é para divórcio?
Olha se fosse.
E, mesmo não sendo, não foi chato?
Não. Não me parece, pelo menos... Nos próximos cinco minutos, não de certeza.

27/05/2019

Ando indocumentada

É verdade: de há duas semanas para cá, ando ilegal. Tenho o meu bilhete de identidade de cidadão nacional, vulgo cartão de cidadão europeu, caducado. Passado da validade, mais ainda do que eu. Expirou (Santinho!). Tem sido a minha pequena irreverência, a minha rebeldia à maluca, o eu sentir-me um nico marginal, quase uma delinquente.
Aconteceu que a pessoa humana, tal como milhares de concidadãos e concidadãs, tinha uma data de apodrecimento do coiso para os meses de Março, Abril e Maio de 2019. As notícias que de lá vinham - provindas de quem tentou a renovação antes de mim - eram de algo de semelhante ao apocalipse elevado ao serviço público. Coisas com senhas que, afinal, não garantem a vez aos humanos, chusmas de gentes que se faz valer de prioridades muita malucas (ainda vou escrever um post sobre o trio que empurra o carrinho da criança elevador adentro e gozam todos da prioridade), funcionários que vão tomar café de meia em meia hora, tempos de atendimento para lá da morte lenta, filas gigantescas em caracol, em espiral e em linha recta, a darem a volta ao bilhar grande. 
E porque não me apetece baixar a varina três vezes (mínimo) no mesmo dia, ora porque vejo um velho com um latagão de 18 anos ao colo, ora porque me passo com o do balcão derivados à quantidade de vezes que ele interrompe o serviço para ir defecar, ora porque tenho um ataque de pernas inquietas e já ninguém me segura sentada, eu sei lá, toda uma vida de transtornos que só eu sei, decidi que amanhã madrugo, atiro-me da cama abaixo ainda quase de noite e percorro oitenta quilómetros de estrada, mas vou fazer o meu cartão novo a outra cidade deste país. 
(É claro que me preocupa o facto de chegar lá ensonada e depois andar dez anos - serão dez, sinto-o - com a mesma cara de bêbada olheirenta no meu documento. Mas tudo por deslargar a vida boémia em que ando há duas semanas.)
(E preocupa-me se me mandarem sorrir. Ainda tenho o meu aparelho, do qual não rezará a história daqui a dez anos.)
(E também me preocupa se me quiserem medir. E se encolhi?) (E se cresci?) (Não saberei lidar com tais mudanças.)
(E aquela cena da assinatura com a caneta óptica. Pareço uma analfabeta a assinar.) (Talvez assine de cruz.)
(Não vou ter tempo de lavar o cabelo antes de ir. Vai assim, deslavado, que se fornique.)
Era capaz de ser melhor dormir até à hora de sempre e depois enfrentar as bichas no sossego da minha cidade.

23/05/2019

Mensagens do cosmos # 2

Recebo-as eu amiúde. 
Por exemplo, outro dia fui à boutique ver em que é que paravam as modas - literalmente -, e deparei-me com uma blusa/t-shirt branca que eh, não era bonita nem era feia, mas, como estava cheia de tempo para perder, era fim-de-semana e nem sequer estava soalheiro, fui prová-la, isto em termos de vestir e remirar no espelho, que a fome não era assim tanta. Era uma rica peça de roupa, decote em V (eu costumo chamar-lhe decote em bico, mas há quem leve a peito) e um laçarote mais para o nó de marinheiro no vértice do V, passe a ventania deste pleonasmo que, não o sendo, já o parece. É importante dizer-se que ia acompanhada por uma das minhas crianças, que se dirigira a outro provador, pelo que ia salvaguardada pela possibilidade de solicitar uma opinião abalizada e, convenhamos, sincera. (Diz que é no fundo de uma garrafa que se encontra a verdade, mas eu continuo a defender que é na boca dos filhos.) Pois que acabara de vestir a blusa e tudo me parecia errado nela. Porém, como sou uma pessoa de uma modéstia retumbante, qual Carmelita Descalça, entendi que o problema era eu e não ela. Ainda assim e talvez por isso, saí do provador e perguntei, alto o suficiente para que a criança me ouvisse, "Olha lá, qual é que é o problema desta blusa?". Quem me deu a resposta foi a funcionária da loja, que ali se encontrava a dobrar roupas: "A senhora tem a blusa ao contrário, o laço é para trás". Então está bem, lá reentrei no provador e troquei a ordem à coisa. No entanto, troquei-a tão bem trocada, que a vesti do avesso, embora com o laço para as costas, toda contrariada e a sentir que algo estava muito errado naquela situação. Depois percebi: era o cosmos a dizer-me "Não leves isso, fica-te mal e é horrível."
- Então, não gostou da blusa?
- Ela é que não gostou de mim. Depois experimentei-a do avesso e ficava-me tão mal como com o laço para a frente.

19/05/2019

Eu tenho problemas com tudo # 38

Ultimamente só me acontecem coisas nojentas: já não bastava a caganeira, acompanhada ao violino por vomitório de jacto (haverá de outro tipo? Desconhecemos), depois a coccixada que, para além das dores, só me forneceu este neologismo, agora apareceu-me um fungo numa unha do pé. Isso, lestes bem: micose da unhaca, obviamente - porque Murphy é grande e a Karmen uma bitch - da unhona do polegar do pé. O que é pequeno e oponível na mão, e enorme e, vá, inoponível no pé. O "dedo gordo". (Sei lá, quem está em plena forma deve tê-lo fit.)
Há-de ter sido num daqueles dois banhos (não seguidos, enfim) que tomei no ginásio sem os chinelos, porque acho que há merdas que só acontecem aos outros. Not.
Vai daí, consultei uma podóloga (ainda a achar que o termo correcto é podologista, mas quem sou eu? Ninguém), qual astróloga do pé, que me escavacou a unha até mais não poder, pois encontrou a carne entretanto, caso contrário acho que ainda lá estava de pé em riste a assistir àquilo: pegou num instrumento eléctrico em tudo semelhante à broca do dentista, mas com uma lâmina na ponta, tipo mini moto-serra, e vai de desbastar até ao sabugo e até ao dedo propriamente dito. Se tivesse colocado um nico de dinamite sob a unha, o estrago não teria sido maior. E só não doeu porque eu ando a treinar para santa e não sinto as dores. Mas doeu até sangrar na alma: fui terminantemente proibida de pintar as unhas dos pés (pagam as nove por uma!) durante este Verão que se aproxima, ora tímida, ora alarvemente (parece um tango argentino, isto da metereologia), o que, de tão impensável que é, me coloca várias possibilidades de solução, a saber:
1. Ando o Verão todo de sandálias e meias, qual Maddie. Isto pode incluir as idas à praia. Aproveito e compro também uma daquelas t-shirts de ciclista todas em fibra e material reflector (que devem ser equivalentes a um escafandro, em termos de frescura), e ponho um daqueles bonés de abas nas orelhas, para disfarçar que não sou uma criança nórdica que não pode apanhar sol sem se grelhar toda;
2. Ando o Verão todo de sapatos fechados, a aguentar a tortura da prisão dos meus dez porquinhos, a grunhirem de agonia;
3. Ponho fita adesiva sobre a unha enferma e pinto tudo na mesma;
4. Compro unhas postiças para os pés (não há? Caramba, até sobrancelhas postiças deve haver, quanto mais unhas do dedão) e colo só aquela, porque o objectivo é poder sair à rua com a cabeça erguida;
5. Defeco (não literalmente) no assunto e adopto um estilo meio desleixado, meio wild, meio boho chic, forneço-me de sandálias daquelas que odeio e toda a gente adora e assumo a unha como um ponto positivo no meu outfit;
6. Defeco (não literalmente) no assunto, pinto as unhas todas, incluindo aquela, e saio para a rua com as minhas sandálias lindas e poderosas, eu própria Linda e poderosa, e amargo outro Inverno com umas dores que nem eu, santamaria Linda Blue, a trabalhar para santa desde 1900 e sabe Deus, consigo aguentar sem contorcer levemente o lábio inferior e denotar no semblante que chiça-penico.

12/05/2019

Chamando os bois pelo nome. Nespresso!

Dou-me mal ali. Não há vez, ultimamente, em que não tenha um dezaguisado. E o problema está lá, não sou eu. 
Se a minha vida não dava para o argumento de um filme de terror surrealista pejado de bizarrias, então também não serve para mais nada.
Verifico pela hora de entrada impressa na minha senha de vez que estou ali há dez minutos sem que as três pessoas que ocupam os três balcões de atendimento abertos tenham acabado o seu aviamento: um casal em que ela é neutra e ele é daqueles carecas que não têm cabelo (Lili Caneças, és grande!), mas têm pêlo espesso a partir da traseira da cabeça, que lhes desce nuca abaixo e se enfia pelos colarinhos quero lá saber até onde; um estrangeiro que tem milhares de assuntos a tratar na Boutique, a avaliar pelo modo reunite que adoptou; uma senhora entradota, magra, seca, estilo senhora dona marquesa, que degusta um cafezinho no próprio balcão de atendimento, que isso do bar é para a plebe (como a compreendo, titi). Bem, sou apenas chamada ao décimo-quarto minuto, e porque, entretanto, aconteceram duas desistências (suponho que de duas pessoas assim mais normais como eu, que foram deprimir em posição fetal / praticar harakiri para baixo do balcão do bar). A registar que, entre o décimo e o décimo-quarto minuto, o casal neutra-careca cabeludo acabou de ser atendido, e aproveitou a saída do funcionário para lhes ir buscar a encomenda lá àquele buraco/ mina/ paiol/ poço onde agora vão buscar os saquinhos, e desatou aos linguados, como se estivessem na sua alegre casinha, tão modesta quanto eles, em tudo lembrando Ordralfabetix, o peixeiro; o estrangeiro agarrou em dois sacos, um contendo uma máquina nova e outro milhares de cápsulas, e deu um bacalhau à que o atendeu; a senhora dona marquesa acabou de sorver a beberagem e pirou-se sem levar nada nem coisa nenhuma, sequer um peixe.
Nos entrementes, aparecera por ali um casaleco daqueles em que ambos usam mochila, montes de sacos de lojas e um petiz de quatro anos ao colo dela, aquele bebé que justifica a ainda e para sempre proeminente barriga, que passa por gravidez para quem não sabe. Tiraram senha de prioritários, ela passou o rapaz para os braços dele e ele desandou dali para fora com a justificação da prioridade pelo mão e pelo seu próprio pé. Ela foi atendida e ainda se deu à lata de ir beber calmamente a bica ao balcão da degustação.
Olhem, eu ia-me dando uma coisa. É claro que quem levou comigo foi o desgraçado que me atendeu. Tudo em voz suave, para não doer tanto e não perder a razão (estou uma senhora, eu):
- Contei dez minutos sem que mudasse a vez das três pessoas que já estavam a ser atendidas quando aqui cheguei. E há também aquela senhora do bebé enorme, que está a ser atendida com uma prioridade da qual não pode fazer-se valer. Garanto-lhe que, para a próxima que aqui vier, tiro senha de prioritária e ai de quem duvide da minha doença. Vou fazer como as malucas, que dizem que "a minha doença não se vê".
Pronto, e saí, para aí ao cabo de quinze minutos de ali ter entrado (sim, porque o meu atendimento leva um escasso minuto). Fica o aviso.


05/05/2019

as pessoas nunca morrem

Tremiam-lhe os olhos enquanto as mãos, marejadas, retiravam e voltavam a colocar a capa do telemóvel, e me explicava que a China morria agora todos os dias, por conta de um carcinoma na pata dianteira. Vi-a ver partir a mãe, depois o pai, de seguida um irmão, saga que lhe veio de herança trágica da avó, que casou já órfã e com dois irmãos sepultados, e ficou viúva e grávida do segundo filho - que, efectivamente, era o quarto, ou não tivesse oferecido dois anjos aos céus - aos vinte e sete anos. Por alguma razão que não se explica mas eu alcanço, esmagam-na mais do que todas as outras as saudades do pai, e eu sei que é possível porque não sei o que fazer à desmesurada falta que me faz todos os dias a minha Titi e também a minha gata, logo eu, que me morro de saudades do meu pai e agora também da minha mãe. 
A cadela tem que ser abatida, inglório porém caridoso ponto final no sofrimento em que claramente já está. Passo-lhe a mão no focinho enorme e perfeito, dou-lhe um elogio à bela coleira cor-de-rosa e suspiro que também eu, “tenho uma menina lá em casa assim, que, mais tarde ou mais cedo...”, só que também se me mareja a garganta e afogo o final da frase com uma espécie de pensamento positivo: “Era a cadela do teu pai, vai para o pé dele, serem felizes”. A cadela afasta-se de mansinho, e ela então pergunta-me: “As pessoas nunca morrem, pois não?”. “Não.”
Não, as pessoas nunca morrem.


SEM AR MAR SEA SER MÃE


A combinação de letras, que forma a composição de palavras mais bonita de toda a cidade.


29/04/2019

Só hoje, já fui

A personificação da preguiça — aquele animal que sabe viver, designadamente porque o faz de cabeça para baixo, o que me parece lógico e acertado —, ao acordar, isto é, ao aperceber-me que, desta vez, que era para aí a enésima da noite, era para me levantar da cama;
Mãe: fui mãe, hoje. Mas mãe a sério, quando a ouvi chamar-me, aflita, Mãe... É que me trata pelo meu nome. Não que ache desrespeitoso, eu também não chamava mãe à minha mãe. Era mamã, ou então um petit nom cá nosso. Não que me faça diferença, mas é que me soube bem ouvir assim Mãe..., apesar de saber que foi na aflição, e, por isso, aquilo me ter disparado o coração como um tiro. E então fui mãe, num pé me pus ao pé dela. Sou tão egoísta ou tão desvalida, que hoje tenho andado todo o dia a ouvir aquela música Mãe...
Transportadora e entregadora de bens alimentares: estou farta de ir ao supermercado. Por maior que seja a encomenda do mês, passadas duas semanas já não-há-nada-para-comer;
Cozinheira: das minhas mãos têm que sair coisas que se possam comer;
Costureira: continuo a fazer coisas com as mãos e a máquina de costura;
Senhoria: e chata, também. Um aborrecimento, rendas atrasadas;
Prima: consolei a prima pela morte da cadela dela. Percebo-lhe a dor, a minha Mel faria hoje oito anos e já não faz. Nem fez cinco, nem seis, nem sete, assim como não fará nove nem dez. E continua a doer;
Profissional na minha área: apercebi-me de que fiz merda e até lágrimas me chegaram aos olhos. Nem o cansaço, nem o "só não acontece a quem não faz" — tangas de justificação para a incompetência — explicam um errozinho que é como um grão de areia numa engrenagem. 

Até ao final do dia, ainda serei mais não sei quantas pessoas, resta saber em quantas delas eu serei eu.


Dumbo

(Se acharem que é spoiler, é não lerem # 12)

(Assim se afere a quantidade de assuntos que sinto ter para tratar aqui no buraco ultimamente. Venho dar notícia - nem sequer spoilar - de que vi um filme infantil. Há mais de quatro semanas, ou por aí. Sei que ainda não tinha desmanchado o rabo.)

É que não é spoiler. Não venho cá fazer a sinopse, sob pena de afectar vossas excelsas sinapses. (Gostei de encafuar na mesma frase as palavras sinopse e sinapses, apesar de algo forçado.) (Também gostei de ter conseguido usar a palavra excelsas.) 
Venho cá mesmo só dar esta opinião muito pessoal: o mais extraordinário no Dumbo, não é o facto de ser um elefante que voa, e sim o de ter olhos azuis. Nada que não se tivesse visto já no boneco da Disney, mas que parece absolutamente fantástico quando transposto para um elefante "a sério". Lá voar, ainda vá que não vá, agora, olhos azuis num elefante!?
De resto, o filme é muito bonito. Podeis ir ver, à confiança. E levar crianças, se vos aprouver.

24/04/2019

O problema é se o verniz é recente e de má qualidade

Eu também acho que cada um deve fazer ao seu dinheiro aquilo que quiser. 
Aceito e acredito na liberdade de escolhas e sei que cada qual deve viver tranquilo com a defesa dos seus valores. 
Sou pessoa suficientemente crescida para acreditar que há coisas que tocam mais de perto uns do que outros: desde que fui mãe, fiquei mais sensível à causa das crianças; desde que tive uma mãe velhinha, fiquei mais sensível à causa dos velhinhos; desde que tenho gatas, fiquei mais sensível à causa dos animais. (Não me dêem flores. Por favor. Não aguento mais tanta sensibilidade.)
Também já sou adulta o suficiente para saber que o Mundo em que vivo só não é uma merda porque estou do lado bom, civilizado, com água potável a sair das torneiras e rodeada de gente que, mais ou menos, respeita as mulheres (quando não as mata). Mas também suspeito que vivo rodeada de patos-bravos, pois até ouço um grasnar de vez em quando. Só isso me explica que seja tão necessária a afirmação do valor Cultura (e História?) (e Tradição?) — que, efectivamente, não existe enquanto tal —, agigantando-o sobre o valor Vida. Deve ser por ser da vida dos outros que se trata. Pergunto-me o que seria de nós, pequeno país do sul da Europa à beira-mar plantado, se fossemos um destes dias brindados com um qualquer desses caprichos da Natureza. Quem nos acudiria? E que prioridades teria o tal mundo de gentes superiormente cultivadas sobre a nossa salvação?
Eu também acho que cada um deve fazer ao seu dinheiro aquilo que quiser. Reafirmo, a ver se me convenço disto. 
No limite, ou muito antes dele —, ainda que haja pessoas a morrer de fome, de sede, de frio, de epidemias —, pode sempre rasgá-lo, fumá-lo, metê-lo pelas veias, pelo nariz, ou num orifício qualquer que lhe apraza e lhe seja prazeroso. Ninguém tem nada a ver com isso. Porque, ao que parece, neste Mundo em que eu vivo, nenhum de nós tem uma obrigação Moral — e, antes dessa ainda, uma obrigação Afectiva — para com o próximo. 
Afinal, pensando melhor, não sei se estou do lado bom do Planeta. 



22/04/2019

Fardos de palhinhas

Foi giro, ter recebido, em plena festa regional, uma "palhinha ecológica". O Mundo preocupa-se com o flagelo do plástico, designadamente dos sacos de compras, cotonetes e palhinhas que, não num futuro próximo, mas num presente actual, poluem os oceanos, comprometendo a sobrevivência das espécies - e, convenhamos, a humana por arrastão.
A dita palhinha mais não é do que um tubo feito de uma guloseima com sabor a morango, que, na realidade, não poderá ser usada mais do que uma vez. Gaba-se de não transferir o sabor para a bebida, e imagino o que será beber água por ali: acredito que a água me saberá a água - apesar de inodora, incolor e, principalmente, insípida -, mas a palhinha que a transporta em direcção à minha boca me saberá a morango, ou outro gosto qualquer que lhe tenham injectado na fábrica de doces. Eu, por mim, confesso que comi a minha palhinha sem a ter experimentado numa bebida, por isso esta opinião vale o que vale: zero.
Então, solução para a palhinha reutilizável? 
A madeira ou o bambu não parecem ser. Sendo, como são, materiais naturais, são igualmente mais atreitos a fungos, e ponha o dedo no ar quem quer um fungo ao nível gengival, com todas as consequências que daí possam advir para a dentuça. 
Para quem não possa viver sem palhinha e lhe faça toda a diferença beber sem ela (designadamente as crianças e alguns adultos imaturos ou apenas desconfiados da higiene dos copos), tenho para mim que a solução está no alumínio (material cuja reutilização é infinita, para além de permitir a sua higiene a altas temperaturas), ou no cabo de uma caneta Bic. 
(Um dia, que não estará muito longe daqui, vamos todos parecer o tontinho da aldeia, sendo que o próprio terá um comportamento socialmente irrepreensível, por contraposição.)
Já agora, as palhinhas só se chamam assim porque quando eu era pequenina antigamente, nos primórdios, aquando da sua invenção, eram feitas... de palha! Se regressássemos a esses belos tempos, o problema das palhinhas desapareceria no acto, pois bastaria a cada restaurante/bar possuir um jerico nas traseiras, que ele tomaria conta dos fardos, ao fim do dia. Agora a sério: palhinhas de palha. Não são poluentes, são biodegradáveis, e, ainda que, por absurdo, vão parar aos oceanos, haverá um qualquer peixe-burro que aprecie aquilo. Isto, admitindo que não se desfazem e integram o ecossistema, passando a fazer parte da composição da areia. 
Isto hoje foi de génio.

21/04/2019

Diz que não há duas sem três

E isso é algo que pode gerar controvérsia e preocupação em meu âmago.
No espaço de uma semana, dei uma queda que por pouco não me fracturou o cóccix e tive uma gastroenterite. Sei agora que, pelo menos a primeira, me desalinhou os chakras, pois a pancada foi no primeiro deles e realmente sinto em mim todo o desequilíbrio que isso provocou. Senão, vejamos: ontem besuntei-me com condicionador capilar, julgando estar a fazê-lo com hidratante corporal. Pois, hoje foi a vez de me lavar com champô. Tudo por culpa e conta de embalagens iguais.
Pergunto-me o que pensará toda a minha - eventual, porém - pilosidade corporal que sobreviveu a depilações mais ou menos radicais. No mínimo estará... confusa...?
O que se segue?
Um inadvertido flic-flac à rectaguarda com dupla pirueta e triplo mortal encarpado (com óbvia e expectável aterragem forçada em decúbito dorsal)?
Uma lavagem dentária com supercola 3?