14/11/2019

lágrimas de suor

Começou a corrida e eu levava os olhos cheios de água, vinda não sei de que esforço, ou seria da alma que se arrasta por estes dias, que até nem chovia.
Carcinoma das maminhas, tinha dito a veterinária há um ano. E ela bem, recuperada das duas cirurgias quase seguidas, magra, silenciosa como só um gato sabe ser. De um dia para o outro, ainda mais magra, ainda mais silenciosa, o ser gato levado a um extremo insuportável. 
Está maior, o tumor dela. Por isso, também por ela, fomos correr no domingo. Quando a Ciência avançar para umas, terá igualmente um braço que alcance as outras. Fiz o melhor tempo de sempre, não parei para andar, para descansar, para pensar - mais ainda -, sequer para chorar. A alegria de ter concluído a corrida sem percalços nem dores no corpo esteve sempre atravessada por aquela farpa que transporto no coração, eu no meu e os outros cinco nos deles. Ainda assim, não adianta camuflar com demais explicações: estou velha, estou extremamente velha, sou aquela ridícula que adoece cada vez que lhe morre ou adoece um animal de estimação. Diz agora a veterinária que devemos - como se se tratasse de um dever tout court, e não de algo que, implícita e naturalmente, sairia de nós - dar-lhe todo o mimo, todas as guloseimas que ela aceite. E também que devemos - esse, sim, um dever a cumprir ninguém sabe muito bem como - preparar-nos para a deixar partir
Não sei fazer essas preparações, e recuso-me a tentar, sequer. Não considero nem quero fazer mais nenhum luto, seja ele antecipado ou em tempo real. Ao invés, encho-lhe a boca com a cortisona receitada, o corpinho com festas, a cabecinha com beijos. E, contra tudo o que é normal - ou não fosse eu - rejubilo com todos os pequenos progressos, quando come bem, quando dorme tranquila, quando esgatanha alguma coisa, desconsiderando a evidente reacção à medicação, subestimando que o tempo corre implacável, numa corrida cuja meta será toda ela de lágrimas, enchendo-me de uma coisa qualquer a que nem admito chamar esperança.

12 comentários:

  1. Nem sei o que lhe diga. Tenho uma labradora com 10 anos, por duas vezes esteve já com a morte por perto, venceu/vencemos, mas sei que um dia vou estar como a senhora, e não irei, nunca, estar preparada para aceitar.

    Boa tarde

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    1. A minha gata Mel morreu há 4 anos e eu ainda não aceitei. Como não aceitei morte nenhuma das minhas. Recuso-me :(

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  2. Anónimo14/11/19

    lamento muito. ainda não passei por uma situação dessas, os meus dois gatos têm sido saudáveis, mas fico com um nó na garganta só de maginar essa dor tão profunda e duradoura. é difícil imaginar a nossa vida sem eles, não é?

    desejo-lhe muita força. um beijinho, Linda Blue.

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    1. É muito difícil, sim, Paula. A Mel tinha 4 anos e morreu a dormir. Eu levei meses a “encaixar”, e, se pensar bem, acho que ainda hoje não aceito, não entendo, às vezes nem acredito.
      Muito obrigada, um beijinho também para si

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  3. É impossível preparar-nos para "o deixar partir". Quando acontece esse momento, é sempre terrível.
    Acho que não se pode fazer um luto antecipado.
    Confesso que já me morreram muitos gatos, e a dor é sempre a mesma e angustia-me pensar que o fim do meu gato mais velho que já tem 13 anos, se aproxima. Mas, acho que acabo por aceitar a morte deles. Se calhar é uma questão de fé, ainda que às vezes com muitas dúvidas e poucas certezas.
    Que a Menina Gata esteja o mais confortável e feliz possível, acho que é isso que agora mais importa.
    Um beijinho

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    1. Assim como também, se bem percebi as tuas palavras, é impossível habituarmo-nos à ideia, ser algo que custa menos com as experiências anteriores.
      Menina Gata (que maravilha de nome que lhe criaste, Ana) está ultra bem no que diz respeito a conforto e atenção. Por mim, ficava neste registo por muitos anos.
      Obrigada por toda a tua amizade.
      Um grande beijinho

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    2. É isso mesmo. Nunca nos habituamos.
      Uma festinha para a Menina Gata
      Um beijinho

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    3. Está dada, Ana. Obrigada.
      Um beijinho também

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  4. (Não sei o que faço mas quando comento no tlm às vezes "puff", evaporam-se os comentários.)
    Vim aqui para te dizer que agora que temos um gato, logo nós que somos todos apaixonados por cães, consigo perceber o que sentes. Este peste, que em cada 10 coisas que faz, 10 são disparate, deu-me volta ao coração, conquistou macaquito que até já lhe pega ao colo (ele não mexia em animais) e parece filho de Macaquita, andam sempre colados e "enbeijocados".
    Por muita asneira que possa fazer, já faz parte da família.
    Abraço apertado a ti e que seja feliz e muito mimada essa menina no tempo que ainda tem.

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    1. Eu dei biberons a esta menina, Be. Ela chegou-nos com 3 semanas de vida. Até banho na torneira tive que lhe dar, porque uma vez sujou-se até ao pescoço (ainda não sabia ir à caixa de areia). Agora cuidei dela até ao fim. Às vezes é tanta dor que nem sei o que fazer ao tamanho da falta que ela me faz.

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  5. Deixa que volte contigo aqui:
    https://agaffeeasavenidas.blogs.sapo.pt/a-gaffe-sem-luar-348084
    https://agaffeeasavenidas.blogs.sapo.pt/a-gaffe-nocturna-822804


    Nunca passa.

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    1. Não, nunca passa.
      Tenho o coração num luto só.
      Precisava mesmo de ler aqueles teus dois textos.
      Obrigada, Gaffe. Muito e sempre.

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