10/04/2025

Equação do coração

Cheguei ao balcão e esperei a minha vez. Percebi imediatamente que estaria demorada para chegar, pois havia apenas uma registadora para duas funcionárias, e um cliente que espalhara um rol de roupa a todo o comprimento e uma das senhoras registava peça a peça. Camisas de boa qualidade e trapos velhos. Uma toalha de banho esfarrapada em todo o rebordo, debotada ou só cansada da idade. Fiz um breve sinal com a cabeça à que iria atender-me, sussurrei, “Aquela toalha?”, ela olhou com o mesmo espanto para o pano, “Essa toalha é para quê?”. “Pra coser”, e depois um suspiro, quase um gemido infantil. Quem sou eu para julgar, se ainda guardo a minha toalha de praia do tempo que se perdeu pelos mares e muita dobrinha de carne me há-de ter secado?, quem sou eu, se ainda guardo a minha almofada do tempo da cama de grades? “Cada vez que estás doente, falas com mais sotaque. Porquê?”. Respondi por ela: “Saudades da mãe”, ela com os olhos molhados cravados nos meus, “Como é que ‘cê sabe?”, e logo um beicinho, “Faz três anos que não vejo minha mãe.”. “Fácil equação: começa a falar a língua materna cada vez que se sente fragilizada, criança de novo, a precisar de mãe”. 
“É isso mesmo, olha só…”, toda ela encolhida, de cabeça baixa, quando tive que virar costas e sair dali.

06/04/2025

Pode ter sido

por ir sozinha, sem a minha companheira destas estupendices, por estar em competições internacionais das suas danças — e já ter no papinho que eu fiz e me cheirou a bebé até que deixou de ser possível cheirá-lo, dois primeiros e um segundo prémios —, e essa ausência dela me imprimir a responsabilidade acrescida de correr pelas duas, ou por ter tomado magnésio e uma beberagem hidratante que sabia a Coca-Cola mas era doce e enjoativa como mel, ou terá sido aquele segundo café do dia que não tomo há anos e vai permitir que eu adormeça talvez depois de amanhã, ou então daquela ida à casa-de-banho fazer duas gotas de chichi, mas que me haviam convencido que iam transformar-se em dois litros, e ter estado dez minutos metida numa escada estreita com cada degrau, sua mulher, um cheiro contagioso a amoníaco das trezentas urinas já ali depositadas, mas um autoclismo corajoso e espadaúdo, gargalhadas escadas abaixo, ou se foi do cantil de dois litros que levei às costas e me dava um misterioso ar de fumadora de cachimbo de água, mas me manteve hidratada todo o caminho, não tivesse eu bebido três quartas partes do conteúdo, ou se foi da chuva, que não deu tréguas e soube tão bem, água no suor, hão-de experimentar, mas me obrigou a colocar o boné cor-de-rosa bordado com “Never give up” e o laço, porque o hijab que havia feito com a blusinha estava a permitir que a chuva me borrasse o rímel e então ia chegar à meta como um membro dos Kiss, ou se foi a gana de completar a corrida sem abrandamentos de passada larga, a verdade é que não desacelerei, não parei, e fiz o meu pior tempo de sempre, mas foi a primeira corrida feita de seguida no meu pós-guerra e pode ter sido a minha melhor corrida de toda a vida, sempre, para Sempre Mulher.