21/06/2023

Quem não sabe o que dizer | Quem devia ficar calado

Caminhava eu a passos estreitos pela ladeira, rodeada de arbustos e flores exageradamente aromáticas — madressilvas, lavanda —, quando ela se cruza no meu caminho e me prega o susto do dia: conheço-a há décadas, mas não me lembro do nome dela. Já era, ao tempo do início da primária da minha primogénita, e ainda é, auxiliar. Agora tem um nome mais pomposo, tipo hospedeira de solo infantil, ou técnica superior de pim-pam-pum, mas não me lembro de qual é. Acho-a sempre igual, só muda a cor do pêlo — cabelos, sobrancelhas e pestanas branco-branco, aquele da neve e da cal. Abre-me os braços, muito espalhafatosa — sempre me deu a ideia de que ia desatar a cantar o fado a todo o momento, aquela inclinação da cabecita para trás enquanto fala dois tons acima do necessário, é algo sugestiva —, prega-me dois beijos, pergunta pelos meus e queixa-se que não me vê há muito tempo. Digo-lhe porquê sem entrar em pormenores sórdidos — o de ter arranjado caminhos alternativos no bairro para que ninguém me visse, por exemplo —, e então ela sai-se com esta:

- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — E nisto, aquele gesto polegar-indicador, que percorre da cabeça à pança.

Devo ter ficado tão atónita, que ela repetiu, agora com mais ênfase:

- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — Juro que a vi empunhar um par de bandarilhas, que me enterrou no cachaço e até gritou “Olé!”, a bater os pezinhos no chão.

Lá acabei de subir a ladeira, sangrando do pescoço e rindo não sei de quem, se dela, se de mim, que nunca na minha vida fui uma fortaleza, nem nunca me fui abaixo. Acontece que adoeci. Sei que vou deparar-me com estas pessoas para o resto da vida. Quando menos esperar. Quando estiver, como estou, cada vez mais forte. Não tenho vergonha de dizer que à custa de muita terapia.

Balas perdidas? Apanho-as com a palma da mão. Não me atingem a cabeça, enterro-as com um pé.



13/06/2023

Ricardo

Uma febre que não cedia há oito dias, acompanhada de outros prazeres semelhantes, levou-me ao hospital, consulta de urgência de oncologia. Fui atendida por uma médica que era de uma exímia antipatia, tendo começado a esgrimir argumentos de que eu deveria ter aposta a máscara, uma vez que tinha uma infecção respiratória — que ela deve ter cheirado no ar, pois não era isso que me levava ali —, ao que respondi: “Não tenho dores no peito, dificuldade em respirar, tosse, ranho e espirros”. Mas a teimosa insistiu que eu não podia andar a atravessar um corredor cheio de doentes a fazer quimioterapia sem a máscara — ela pode, porque o diploma lhe conferiu uma assépsia jamais discutível — e, assim, a consulta decorreu entre uma pessoa que claramente devia dedicar-se à silvicultura e um pato de bico verde.
Havia um grande alarido no corredor, que se estendia às salas de espera e à sala de tratamentos, cujo denominador comum era “Ricardo”. Eu já vira, de costas, numa cadeira de rodas, menos cabelo ainda, alguém que me pareceu ser o meu menino aflito daquela vez, a quem menti com os olhos, dizendo-lhe que todos saímos disto. Andava uma rapariga a correr de um lado para o outro, agora é preciso um papel, agora o carimbo é lá ao fundo, e ela incansável, “Eu sou a irmã do Ricardo”. Desta vez, o corpo da mãe ia numa derrota, a cabeça caída para um lado, os dois braços a crescerem até ao chão. Pareceu-me que, mais uns dias, e aqueles dois braços se abririam em cruz e assim ficariam para sempre.
A meio da consulta, uma enfermeira foi lembrar a médica que me atendia de que o Ricardo estava lá fora à espera de vez. Pedrada da bruta, mas extremamente esclarecedora: “Pois, trazem-nos dos paliativos…”
Saí do gabinete e encarei imediatamente com o Ricardo. Os olhos dele, desta vez, não pousaram nos meus: cravaram-se. Os meus dizendo “Menti-te. Fossem quais fossem os meus motivos, menti-te”. Ouvi-lhe um ronco, os olhos: “Mentiste. Já não vou ver-te com o cabelo comprido”.

07/06/2023

Sósia

- Diz (?) que todos nós temos um sósia em qualquer parte do mundo,

diz-me a mulher que jantava comigo naquele dia.

Diante da minha incredulidade, disfarçada de curiosidade de ver até onde é que ia o delírio, balbuciei um “Ai sim?”, para que ela continuasse e desfizesse, antes de se fazer, o nó que a minha cabeça ameaçava formar, apertado. Cheia de si, continuou:

- Por acaso, gostava de conhecer a minha sósia.

Percebi, desolada, que não ia desenvolver a tese, que, embora não seja inovadora, sabe sempre bem ouvir novas versões, quanto mais não seja para atestar do QI que vai pelo planeta. Percebi também que a sósia a que ela se referia era apenas no plano físico. Logo eu, que nunca quis ter uma gémea, que nunca desejei ter filhos gémeos. Não pelo trabalho em dobro, sim porque não vivo bem com pequenas desigualdades (com grandes, nem se fala) e comparações constantes.

Vou fingir que acredito na teoria. Descontando (literalmente) o facto de que morrem milhares de pessoas por dia, será que a minha sósia ainda está viva? Que idade tem? Creio ainda que existe uma enorme parcela do globo onde ela não viverá com certeza, pois eu tenho exactamente zero de asiática e de africana.

Sou única. As minhas cicatrizes contam a história da minha vida, pelo menos desde os cinco anos. O meu corpo guarda-as todas, como a um tesouro que conquistei a pulso e é só meu. Quantas costuras tenho? Nunca contei, mas andarão próximo das de uma boneca de trapos. Não tenho sósia alguma, e, mesmo quanto ao carácter, igualmente cheio de cicatrizes, é irrepetível.



02/06/2023

Dona Isabel

Vi-a a caminhar à minha frente, ladeira abaixo em direcção à escola, de onde está oficialmente reformada, mas não emocionalmente desvinculada. É Dia Mundial da Criança e lá vai ela, certamente distribuir beijos, abraços e berros, os olhinhos muito pequenos e verdes, sempre em linha com o sorriso constante. Um dia disse-lhe que ouvia os berros dela de casa, a cinquenta metros da escola. Deu uma gargalhada, acompanhada de um soluço, como sempre faz, e gaguejou que já lhe tinham dito isso. Com a bata-bibe vestida, sempre rodeada de crianças, era ter outro porte e lembraria a Senhora da Conceição. Mas, sem romantismos nem lirismos, veio ao mundo pequenina e rechonchuda, quase quadrada, quase redonda, com um infinito e aposto que confortável colo. “Põe o chapéu, olha o sol!”, “Não ponhas os pés na poça que te constipas!”, “Ó Pedro, não voltas a bater no Miguel!”, voz de longo alcance, a tomar conta, a conhecer todos pelo nome, adorada por todos.

Agora aí vai ela, fatinho de calça e casaco preto “estilo Chanel”, com um debrum branco, a calça atrevidamente curta, a mostrar o tornozelo, sandálias rasas de inspiração inglesa, “Tem piada, esta mulher, destituída de um corpo bem feito — anos e anos de trabalho físico e má alimentação —, tem uma certa pinta a vestir-se. Não cai no ridículo da legging com a blusa leopardo”. Nunca a vi com outra idade, já a conheço há quase trinta anos e não lhe perscruto alteração alguma, e entretanto passou a bisavó. Quando me encontra, pergunta-me sempre pelos meus meninos, sabe-lhes os nomes e as gracinhas desde o jardim de infância. 

Deixo-me então ficar parada para que ela avance e se distancie o suficiente para que não nos encontremos à porta da escola. Seria demasiado doloroso para mim explicar a razão do meu cabelo curto e estragar aquele sol que raiava na ladeira quando visse os olhos pequeninos e verdes dela a perderem a luz e a encherem-se de água.