13/06/2023

Ricardo

Uma febre que não cedia há oito dias, acompanhada de outros prazeres semelhantes, levou-me ao hospital, consulta de urgência de oncologia. Fui atendida por uma médica que era de uma exímia antipatia, tendo começado a esgrimir argumentos de que eu deveria ter aposta a máscara, uma vez que tinha uma infecção respiratória — que ela deve ter cheirado no ar, pois não era isso que me levava ali —, ao que respondi: “Não tenho dores no peito, dificuldade em respirar, tosse, ranho e espirros”. Mas a teimosa insistiu que eu não podia andar a atravessar um corredor cheio de doentes a fazer quimioterapia sem a máscara — ela pode, porque o diploma lhe conferiu uma assépsia jamais discutível — e, assim, a consulta decorreu entre uma pessoa que claramente devia dedicar-se à silvicultura e um pato de bico verde.
Havia um grande alarido no corredor, que se estendia às salas de espera e à sala de tratamentos, cujo denominador comum era “Ricardo”. Eu já vira, de costas, numa cadeira de rodas, menos cabelo ainda, alguém que me pareceu ser o meu menino aflito daquela vez, a quem menti com os olhos, dizendo-lhe que todos saímos disto. Andava uma rapariga a correr de um lado para o outro, agora é preciso um papel, agora o carimbo é lá ao fundo, e ela incansável, “Eu sou a irmã do Ricardo”. Desta vez, o corpo da mãe ia numa derrota, a cabeça caída para um lado, os dois braços a crescerem até ao chão. Pareceu-me que, mais uns dias, e aqueles dois braços se abririam em cruz e assim ficariam para sempre.
A meio da consulta, uma enfermeira foi lembrar a médica que me atendia de que o Ricardo estava lá fora à espera de vez. Pedrada da bruta, mas extremamente esclarecedora: “Pois, trazem-nos dos paliativos…”
Saí do gabinete e encarei imediatamente com o Ricardo. Os olhos dele, desta vez, não pousaram nos meus: cravaram-se. Os meus dizendo “Menti-te. Fossem quais fossem os meus motivos, menti-te”. Ouvi-lhe um ronco, os olhos: “Mentiste. Já não vou ver-te com o cabelo comprido”.