Nesta altura das nossas vidas, creio que posso concluir sem grande margem de erro, mas com algum grau de certeza, que adoptámos, não uma gatinha, mas o diabo da Tasmânia.
A criatura dá-lhe o trotil, a filoxera e o vaipe, corre, salta, trepa, cai, bate com a cabeça, persegue a própria cauda afanosamente, esconde-se de tocaia e dispara a jacto, como um míssil, para (nos) atacar, arranha, esgatanha, morde, atira-se, já de boca aberta, aos móveis, às roupas, às nossas pernas, às mãos, a tudo. Numa simples regra de três simples, está para o tamanho da Mia assim como um gato adulto está para um puma, mas, mesmo assim, teve o atrevimento de bufar à outra e de lhe levantar a pata no ar — o que lhe valeu uma sapatada da Mia, e dez segundos de papo para o ar, após voo picado, que foi um regalo para a vista, mas que não lhe serviu de emenda: o objectivo da figurinha é brincar, alcançar, morder, ou sei lá o quê fazer com a cauda da Mia.
Isto é muito trágico.
Eu tenho inúmeros arranhões, desde o peito dos pés até às mãos, passando pelas pernas, que ela entende serem postes de arranhação. Ontem estava a passar o meu creminho pernas abaixo e acima, quando reparei que estava a passar creme encarnado, como que encarnado pelo diabo (que chalaça tão boa, quem sabe não estou já afectada dos nervos?). Só depois é que percebi que estava a espalhar uma amálgama de creme mais sangue, que brotava alegremente de mais um arranhão dos dela. Mais tarde, percebi que tinha os collants colados (pleonasmo bilingue, hoje estou imparável) à perna, mas essa cola mais não era do que sangue do meu sangue. Quando os despi, à noite, parecia uma mártir da pátria, toda eu era chagas encarnadas que escorriam para os pés, como os rios correm para o mar.
Entretanto, cortei-lhe as unhas. O rapaz segurou-a, enquanto eu procedi à manicure (ou paticure, pois). Ele ficou com uma rede de arranhões nas duas mãos.
Isto, só para terem uma ideia do que temos passado.
Não sei o que fazer.
Devolvo-a ao senhor que me chamava Maria Laranja?
Levo-a ao zoo e dou-a a conhecer aos primos?
Peço um sossega-leão à vet?
Compro mais Bepanthene?
Ofereço-lhe um mapa mundi, agrafo-lho ao lombo, e abro-lhe a porta de casa? (Nem preciso de lhe meter um foguete, que ela já o traz incorporado.)
Meto-a numa zona onde há muitos gatos de rua, a liderar aquilo tudo, porque ali está uma líder?
Compro material de dominação de leões e inauguro um número de circo com ela, quanto mais não seja para tirar algum provento disto tudo?
Arranjo-lhe um psicanalista/encantador de gatos/hipnotizador, e faço dela bibelot de psiché? (Ai, que giro, psicanalista-psiché. Eu hoje rebentei a escala, a tola e a bolha.)
O problema é que depois olho para ela, vejo o que ela realmente é — um gatinho bebé, de olhos azuis e ar manso —, e decido, pela enésima vez, adoptá-la.
Parva.