Em plenos treinos, aprendendo uma dança nova: la bachata.
Então, não atinava com o passo do refrão. Toca no chão com o pé direito, um-dois-três enquanto vira, toca no chão com o pé esquerdo e repete. Toda eu era trocas no toca, acertando o passo no resto da música, chegada ao refrão - só a parte principal da dança, convenhamos - e troca e troca.
Até que. Ainda a música não soava no ar, e aquilo saiu-me assim, como se já soubesse o passo do refrão há que tempos. Estava na cabeça, não me chegava aos pés. Ontem foi o clic, da cabeça aos pés.
Faz-me isto lembrar um problema social que vivi na infância que, como todos os pequenos traumas, ficou para sempre a bailar-me na cabeça, isto quase literalmente: quando eu era uma criança, havia música de fundo nos supermercados (também se fumava lá dentro, eram outros tempos de país em vias de desenvolvimento, mas nem por isso menos feliz). Eu ia, ou melhor, era levada, e fazia um imenso esforço para não desatar a dançar nos corredores, entre latas e pacotes de detergente. (Eram aos pacotes de papelão, nada cá do malfadado plástico.) Normalmente, não conseguia levar adiante os meus intentos, porque bastava distrair-me, e lá ia eu a esvoaçar, rodopiante, até à outra ponta do sector, ou até encontrar uma barreira física qualquer. (De fraldas, não havia de ser com certeza, pois as fraldas, naquele tempo, eram de pano, cá nada destes químicos que mais tarde impingimos aos nossos filhos e à atmosfera.) Depois houve ali um tempo em que não fui ao supermercado, por coincidência, ou decisão materna, que havia de estar farta de ir apanhar a bailareca ao fundo do estabelecimento, envergonhada por, mais uma vez, ter perdido o controle derivados à música. (Não foi isso de certeza, a minha mãe era a pessoa mais low profile para essas coisas, o mais certo seria até achar graça.) Acredito que foi mesmo porque não calhou. Quando lá voltei, já naquela fase espigadota em que somos uma crisálida, ou lá o que é (nem lagarta nem borboleta), sentindo-me senhora do meu nariz e da minha vontade, percorri a distância que distava entre a minha casa e o dito mercado, a debitar mentalmente um mantra, "Não vou dançar, não vou dançar, não vou dançar", entrei, toda eu convicções e autodeterminação, ouvi a música, toda eu mãos e pés juntos, parecia uma louva-a-Deus concentradíssima, aguentei o impulso sabe aquele a quem louvava a que penas, até que.
...
Não sei como foi aquilo, devo ter-me distraído da promessa, posso ter tido uma branca, sei lá.
Sei que "acordei", e, enquanto a minha mãe e a minha irmã escolhiam coisas numa prateleira, já eu rodopiava por ali, tolhida de vergonha, achincalhada pela minha própria fraqueza e incapacidade de resistir a um passinho de dança.
Isto até pode ser uma doença psiquiátrica com um nome estrambólico e eu não sei.