23/08/2023

Sutiãs chineses

A loja do chinês do meu bairro já pertenceu a vários donos — tanto quanto me lembro, os primeiros foram o casal Zhu e Jy —, e, de há uns bons anos para cá, está à frente do negócio um outro casal, de quem desconheço os nomes, porque não os oiço conversar. Ele percebe e fala um Português cheio de LL, mas corrente. (Fico sempre a pensar o que será da vida de um chinês que não consegue dizer os LL, como Feuisberto Uorenço Uauande. Em vez de “Não estlague”, se calhar diz “não estuague”.) Já ela, é uma verdadeira desgraça, tanto a entender como a falar. Mas ri muito, com os olhos em linha, o seu carrapito e o metro e meio de altura, acha divertido tudo o que eu digo. Há-de ser porque não entende. Encontra-me na rua, eu digo “Bom dia” e é vê-la toda grisada.

Vou lá muito, à loja deles. Têm sempre mil merdinhas que, se não fazem falta, passam imediatamente a fazer. Outro dia, andava eu a deambular pelo espaço comercial asiático quando me deparei com os sutiãs da minha vida: sem aros, sem copas, sem elásticos, sem costuras. Vi os tamanhos e, dos que havia, só me servia o preto. Vai de preto nas meninas, que bem precisam de ser bem tratadas.

Gostámos tanto da peça de lingerie, que vai de comprar as duas outras cores básicas: bege e branco. Entro na loja, faço sinal à chinesa que venha comigo e ela hi-hi-hi, lá me acompanha até ao recanto das intimidades. Pergunto pelas cores, ela hi-hi-hi, apercebo-me de que não há o meu tamanho, aproveito para perguntar se dá para tirar as duas almofadas, e ela, como não percebe um boi, apesar de eu ter gesticulado, grita, enquanto simula com as duas mãos dois enormes peitos: “Glande!”. E mais dez hi-hi-his, os ombros encolhidos até lhe desaparecer o pescoço, um toque solidário no meu braço e eu: “Gostaria ao máximo de não ter que discutir sutiãs com o seu marido, mas apercebo-me de que tal é impossível”. O que a doida riu.

Foi só chegar ao balcão, dizer o que queria e, passados dias, já lá, e depois cá cantavam os ditos suportes. O homem não se riu vez nenhuma, mas, em compensação, também não chorou.

21/08/2023

Chico-espertice

Entro na farmácia do hospital convencida de que vai ser canja de galinha despachar-me num instante: Agosto, toda a gente fora, só peregrinos pelos passeios, nenhum iria ali tomar a vez de ninguém. Afinal, foi fígado. Com ossos e espinhas e nervos: sessenta pessoas à minha frente. Esquecera-me que a doença não mete férias. Mas não posso ir-me dali, que é a vontade que tenho, porque preciso mesmo daqueles comprimidos para sobreviver: são os que evitam que o cancro desate a passear pelo meu corpo. Prescrição de mínimo cinco anos, máximo dez. Se sobreviver até à última toma, já dou por ganha esta coisa, sei lá que nome lhe dar. 

Faço o que é costume fazer quando tenho muita gente à frente: conto o número de guichets, o tempo médio de atendimento de cada um e faço a divisão, para calcular quanto tempo vou esperar. São seis, um deles não tem ninguém, conta cinco. Assim à queima-roupa, não consigo fazer cálculos: entra uma mulher com uma farda de auxiliar e fica quinze minutos a conversar com a farmacêutica do guichet 3. Depois sai, a outra abandona o local de trabalho e, ao cabo de cinco minutos, ambas voltam, para conversarem mais um quarto de hora. Começo então a desconfiar que o tereréu não é sobre trabalho, mas quem sou eu? A mulher sai de lá com um saco de plástico com seis caixas de magnésio e é aí que puxo as antenas para fora, uma vez que o contador das senhas não anda para a frente (nem para trás, vá lá). Entra um homem com uma menina no carrinho, aí pelos seus cinco anos, sem qualquer espécie de incapacidade para andar. Atrás dele, uma mulher cheia de saúde, mas agarrada aos rins e com uma expressão de sofrimento bastante circunstancial. Já cá ando há demasiado tempo e vi demasiadas caras em agonia para cair na daquela. Começo a sentir as tairocas a enfiarem-se-me nos pés, revejo mentalmente a lei - crianças ao colo com menos de três anos - e já pondero ir atrás dos três para lhes dar uma breve luz jurídica, qual fada Sininho falante, quando me lembro das doutas palavras de uma das minhas orientadoras espirituais (Respire fundo e conte até dez), respiro como se tivesse acabado a maratona, conto até dez saltando os ímpares e já vou levantar-me quando aparece um rapaz com meias cirúrgicas vestidas e um par de muletas, a cabeça até ao chão, todo ele um calvário que me dá para pensar que talvez seja primo daqueles pedintes dos semáforos da Praça de Espanha e de Sete Rios, que são demasiadamente deficientes e coxos para ser verdade. E então, ao cabo de uma hora disto, percebo que os prioritários são tantos que os outros vão ficando para trás e a m. do ecrã das senhas não avança nem à paulada. Calma, Maria Linda de Blue. Vai-te informar. Boa tarde. Pode informar-me se quem tem atestado de incapacidade também é prioritário? Voz de desenho animado: Sim, sim, a senhora exibe o atestado e é atendida com a senha de prioritária. Os cinquenta e dois que ainda faltavam para a minha vez transformaram-se em dez. 

Chico-espertice? No fundo, não. Uma, foi tomar meia-hora a quem estava à espera. Outros, foram com uma criança enorme no carrinho. O outro levava meias brancas e canadianas. 

Usei o atestado. Não gosto, não quero ser definida por uma doença ("Aquela que tem cancro", como dantes "Aquela que tem quatro filhos"), mas, já que tenho que a carregar e ela me confere pequenos alívios, que carregue o diabo os outros que vão para lá de meias e coisas assim parecidas.

(Já muitas vezes ponderei ir para os hospitais, repartições de finanças, centros de saúde e outros infernos que tais, a arrastar chinelos, de bata de nylon vestida - que, como se sabe, cheira a bedum -, o cabelo com um carrapito oleoso ao alto da cabeça, desmaquilhada, sem verniz e a chuchar nos dentes, aos berros para um telemóvel assuntos da vida da Lina e do Mário, porque acho que, assim, seria mais bem tratada nesses lugares.)

07/08/2023

É preciso tão pouco para me fazer feliz # 16

Não sei se as pessoas já repararam que os nadadores profissionais, que até concorrem em competições, assim como as bailarinas da natação sincronizada, colocam uma peça no nariz para que a água não lho penetre e não lhes atrapalhe as performances. 

A pessoa que digita estas coisinhas também é assim: não pode permitir que a água — seja do mar, seja do rio, seja do lago, seja do poço, seja da piscina, seja da torneira, seja do charco, seja da Fonte Luminosa (da chuva nunca experimentei) — lhe entre narinas acima, qual teste de covid, caso contrário aquele jacto faz uma ligação directa com a garganta e é ver-me à beira-mar ou a qualquer beira de água a jorrar água por todos os buracos da cabeça, excepção feita às orelhas, acho.

Então, há muitos anos, comprei uma mola de nadador. Pus aquilo — e atenção que o meu nariz é pequeno — e pensei, em pânico, que mais valia ir à água com uma mola da roupa no nariz (quem nunca?). Arrumei a tralha e voltei ao sistema antigo: mergulhos de mão no nariz e a outra à frente, não fosse ali a passar um golfinho e se esbarrasse com a estranha. Mais tarde, comprei outra mola, mas acho que a perdi logo na gaveta dos trajes veraneantes e, tanto quanto me lembro, também não era lá muito confortável. Isto foram-se passando os anos e, teimosa, comprei a terceira mola. Só que esquecia-me sempre dela em casa. Até ontem, dia em que empunhei a dita, coloquei-a no nariz, primeiro ao contrário, depois correctamente, e lá fui eu até ao mar, todos por quem passava a olharem curiosos (“A tia partiu o nariz”; “A tia fez uma rinoplastia que correu mal”; “O piercing da tia é fixe”; “A tia pôs uma argola do gado para se sentir estupendaça”), esperei pela primeira onda daquelas grossas, com para aí trinta centímetros de espuma e a velocidade de uma locomotiva, e brrrrruuuum, passou-me ela por cima e eu com os dois braços à frente da cabeça, como convém.

Nunca mais poderei encontrar um rochedo, um banco de areia, um coral, quanto muito, parto um braço, o que é certamente melhor do que ficar numa cama toda a vida. 

Tenho a teoria, que acho altamente científica, embora ainda por provar, que o fenómeno da entrada da água no nariz destapado é de quem se viu obrigado a arrancar os adenóides. A água entra até ao cérebro, faz lá uma centrifugação qualquer, depois sai e está a gente todas desmanchadas, que parece que não nos ensinaram a nadar. Isto é bastante nocivo para a dignidade de alguém que, ainda por cima, já não vai para nova.


03/08/2023

Vinde a mim os peregrininhos Editado

Post editado, que a pessoa também podia amandar para os rascunhos, ou então eliminar sem dó, mas que não sou feita dessa raça (nunca aqui contei que, só numa manhã, salvei a vida a cerca de quarenta mosquinhas da fruta, através do método copo + papel, e não o fiz porque sei que o Planeta berraria de troça de mim), mas (e aí vai mais uma oportunidade para o Mundo o fazer) é que juntei João Paulo II com Francisco num só, o que apenas denuncia a minha completa abstracção por estas lides, e não que já estou varrida, se acreditarmos nas dezenas de milhares de exames, análises e outros dói-dóis que me fizeram nos últimos vinte meses. 


Aqui fica um pedido aos milhões que já leram este coiso: tenham paciência e boa continuação.


A cidade está um veludo azul, só contrastando esta ventania enviada pelo Cão, aparentemente para fazer arredondar as saias do papinha e, eventualmente, fazer-lhe voar para parte incerta a tigela que ele usa na cabeça. Não se engane quem pense que eu sou contra a liberdade religiosa e blás, só estou um bocadinho danada, ratada e frenética com o preço daquele palco, a origem do capital para o construir e depois o destino do lucro com a festarola, sobretudo porque calculado por Moedinhas, aquele presidente autárquico com voz de pífaro que só percebe de cêntimos, a avaliar pelo modo como multiplicou o número de jovens, gastos diários e resultado final. Tenho mais coisas contra padrecos, mas agora não me apetece vomitar.

Como sempre em Agosto, Lisboa partiu para parte certa e ficam apenas os resistentes ao massacre dos supermercados pejados de pegajosos humanos de xnelo, óleo bronzeador (ou será dos fritos?) e vernáculo, das praias diminutas com colmos ao preço de um apartamento na capital, das filas para tudo, dos restaurantes de décima categoria a servirem-nos uma lasanha congelada às dez da noite, todo um pesadelo do qual fujo como do fogo do inferno. Normalmente, há menos de metade do trânsito, mas este ano está como o diabo gosta (e eu): quase não se vê uma alma viva na rua, apenas rapaziada de t-shirt amarela (isto mói-me: será que usam a mesma toda a semana?), chapéu e colar com a identificação, deambulando sem rumo (por exemplo, há bocado vi um grupo a atravessar entre o Hospital de Santa Maria e a Universidade Católica, ou seja, no sentido oposto ao do Parque Eduardo VII). Não incomodam, não estrilham, não se metem com ninguém. Tragam-nos de volta em todos os próximos Agostos, se faz favor.

Não fui ver Sua Santidade. E explico: já o vi duas vezes, ambas em Lisboa. Na primeira, era petite petiza, na segunda, já um pedaço de mau caminho. Referia-me a JP2.

(Quando fui a Roma, não o vi, mas, em compensação, ele também não me viu). Referia-me a Chico. No fundo, temi que El Papa dissesse, apontando para mim: “Olha-me aquela! O tempo não passa por ela!”, e ainda me ver na contingência de revelar o meu segredo, como fizeram à Lucy. Isto não poderia acontecer, já que o actual Papa nunca me pôs a vista em cima. Lamentável.

(Ponto mais awkward desta visita papal: aquele Marcelo a recebê-lo na pista, ele em cadeira de rodas e o outro resolve dançar o rock and roll com Francisco.)

Foi a terceira, mas está bem.