23/02/2021

Ela fala tanto # 30

E, desde que veio lá da quarentena - e depois fez mais não sei quantas, à custa de um filho covidado, uma irmã covidada, o papagaio covidado, tudo e todos menos ela, mas que remédio senão aturar os diversos timings de recato e recolha ao lar -, mas, e sobretudo, após ter levado a desanda da vida laboral dela (porque, ó pá, passei-me de lavar, passar, esfregar e cozinhar e encontrar tufos de sujidade em tooodos os recantos cá do lar), agora está irónica. Diz-me merdas. Do género: pergunta-me por uma coisa qualquer, "Chegou a comprar a alface?"

Note-se que não me trata por nada, e trabalha na minha casa há vinte e três anos. Não sou "senhora dona", não sou "senhora doutora", não sou "senhora", não sou "ó tu". Deixei de ser "Olhe" porque lhe acabei com isso num dia de tempestade gástrica, e também tive que lhe cortar com o "você" (com o qual ela, respeitosamente, trata a mãe e tratava a avó) porque tudo tem os seus limites e aquilo arranhava-me os tímpanos. 

Vai que eu respondo: "Não sabia que era preciso comprar, a Sandra não me disse."

"Eu disse-lhe ontem, se calhar não ouviu ou esqueceu-se."

"Acho que nem uma coisa nem outra."

"Não faz mal."


Ou eu digo: "Ainda não pus a máquina a trabalhar porque estou à espera que a Sandra tire os lençóis das camas."

"Não faz mal."

Ou então: "Isto está tão desarrumado, nunca há tempo para arrumar."

"Não faz mal." - Porque talvez seja como os homens, lá terá aquela costela sobresselente e não entende indirectas subtis e delicadas, tens que lhe dizer "Arruma, pá, porra!". 

Não faz mal? Então e se eu a puser a andar, com a desculpa de que já não dá mais para aguentar esta relação, também me diz que não faz mal?


01/02/2021

Quando os teus sonhos se tornam realidade. Ou não, oh não.

Uma destas noites, deitei-me convencida de que já não tinha, na abarrotante gaveta dos collants, qualquer par cor de pele, ou melhor, da cor da minha pele, pois o conceito abrange todo um pantone, desde a alvura nórdica ao castanho africano, entenda-se. 

Fazem-me falta collants "transparentes", principalmente para os colocar debaixo das calças mais curtas, para que aquele bocadinho de pele que fica à mostra não ande ali à vela e não rape um frio dos ananases e, por consequência, não seja responsável pelo arrefecimento de todo o resto dos 95 % do meu corpo.

Os dois pares que tinha encontravam-se no processo vai e vem para e de lavar, de modo que, angustiada com a impossibilidade de, no dia seguinte, não ter meias para tapar os artelhos, até dormi mal. Sonhei que só tinha collants pretos para os tapar, e que, considerando a hipótese de ir à loja comprar da cor pretendida, logo tive que a desconsiderar, pois se encontrava encerrada, à espera de melhores dias. Tudo muito realista, portanto. 

Pela madrugada, que é quando afasto as pestanas superiores das inferiores pela primeira vez após escasso repouso, quantas vezes ainda nem o sol deu sinais, eis que me agarrei a Ai-fostes, abri a página da loja de collants, encomendei logo três pares, para que nunca me faltassem, paguei-os e, se não o corpo, pelo menos sosseguei o espírito. Porém, só até ao momento em que, ao abrir a dita gaveta no intuito de procurar alternativa aos da cor da minha pele (bege vulgar sul da Europa, nem alva nem castanha), me deparei com mais dois pares da pretendida cor, dobradinhos e limpinhos.

Conclusão, retirada de um ditado chinês: não sonhes nada aos dezoito, que aos trinta terás realizado. (Ai não é assim? Não se aplica? Aplica, sim senhora, mutatis mutandis.)