Estou tranquila, a fazer o meu pagamento nas caixas de self-service,
(não é verdade, estou sempre a mil, simulando tragicamente mal uma calma que não possuo nem me possui a mim)
quando a senhora encarregue daquela área engraça comigo, vá-se lá perceber porquê,
(uma pobre mulherzinha, cheia de nervos e pressa para ir sabe-se lá onde, tipo coelho da Alice, as compras pic-pic-pic na leitura óptica, a máquina a encravar, "Por favor, aguarde pela assistente", "Olhe, por favor, diz aqui para aguardar, não sei o que é que esta tem hoje, acho que embirra comigo, talvez devesse mudar de máquina, esta minha vida é um desassossego, mais valia ter ido para a fila, que era capaz de me despachar mais depressa", a assistente a vir em socorro, a tocar numas quantas teclas e a máquina a respirar fundo)
(ou sou eu?)
"Por favor, continue a sua compra"
(Tão educada, a máquina, começa todas as frases por "por favor")
"Por favor, insira o seu cartão"
("Por favor, não saia sem pagar")
e vai a assistente e oferece-me uma garrafa de um litro e meio de água, daquela marca que devemos evitar nos velórios [a piada não é minha], porque "um senhor pagou-a e não a quis levar, tem aqui um pequeno defeito na tampa", "Ai, dê cá, a cavalo dado não se olha o dente", mal eu ainda sabia o quanto havia de me arrepender desta mania de seguir os ditames dos ditados.
Saco cheio até transbordar, na outra mão mais uns itens - dois sacos de Doritos (don't ask), uma embalagem de postas de salmão para o jantarinho do lar, um saco de cenouras (que eu até parece que tenho coelhos em casa, vão-se aos quilos, mais valia ter uma horta na varanda) -, e a garrafa grátis sob um dos braços, vulgo na axila.
Havia percorrido o quê? Cerca de quatro metros e meio, mais centímetro, menos centímetro, quando me apercebo de que estou a tomar um duche em público, apesar e sobretudo de ter um sobretudo vestido sobre o vestido. A garrafa jorrava placida e candidamente algumas gotículas sobre a minha manga, e eu, incapaz de parar, pousar as tralhas e deitar fora a magana, desci toda a rampa de acesso ao carro com a estúpida a cuspir-me o casaco todo, tendo lá chegado com a manga encharcada, porém a garrafa inteira. Coloquei-a de pé no chão da viatura, mas ela desmaiou logo ao primeiro arranque, e babou-me o tapete de Rosinha. Então, pu-la no encaixe próprio para garrafas, copos e sei lá mais que cilindros que minha Rosinha tem, só que ela deu uma pirueta nos ares numa curva acentuada, e atirou-se para a parte de trás do carro, tendo-me então molhado um dos tapetes traseiros. Foi quando decidi não lhe mexer mais até chegar ao lar, não fosse ela inundar-me o vidro da frente por dentro, e o limpa pára-brisas não ser capaz de me resolver o assunto, uma vez que acho que está colocado do lado de fora.
Enfim, cheguei com menos meio litro de água dentro da garrafa, poças por todo o lado e a manga do casaco molhada.
Moral da história: quando leres ou ouvires "grátis" em algum lado, foge a sete pés. Esse cavalo não tem dentes, e ainda te morde o rabo.
Detesto essas máquinas. Enervam-me.
ResponderEliminarEu também devia detestar, Ana, mas volto lá sempre, com a ilusão de que me despacho mais depressa. Das dezenas de vezes que as utilizo por ano, contam-se pelos dedos de uma mão aquelas em que a máquina não encravou vez nenhuma. Não sei se o problema é ela ou sou eu...
EliminarServiram essa água no velório e funeral do meu pai. Não conhecia a marca. O meu pai morreu de ataque cardíaco fulminante... foi muito chocante e inesperado, estavamos todos muito abananados, eu vim a correr do UK, os amigos de todo o mundo tb... enfim. Estava eu e a minha irmã sentadas lado a lado num degrau ao lado do caixão, um grupo íntimo de amigos ao lado, muito aparvalhadas, estavam umas beatas quase a pegar-se à pancada sobre quem ia liderar as rezas do terço, quando eu reparo na água que bebia da garrafa e exclamo: "olha, tiveram o cuidado de servir água pé na cova, ao menos!" Foi ali uma risota pegada, um desanuvio completo de nervos e um esvaziar de tensão que fez bem. Chocamos as beatas mas ainda hoje lembramos esse momento com ternura.
ResponderEliminarPelo menos, serviu para desanuviar. Nessas horas, uma pessoa está tão triste, que qualquer input positivo assume uma dimensão e uma graça desmesuradas. A tristeza não se põe em causa, mas precisa dessas lufadas.
EliminarMuito bonita, a tua história. Obrigada.