26/02/2018

Os anjos não dão quedas

Quando a conheci, já estava e já era assim, estática e volátil, o olhar branco, opaco e perdido, o sorriso preso no último rasgo, quem sabe se no momento anterior àquele em que a doença lhe levou a vida sob a forma de viço. De todas as vezes que nos cruzámos, porém, respondeu ao meu "boa tarde" com um igual, embora não lhe tenha ouvido, para mim ou para quem fosse, mais do que isso. Ali a vi sempre, no café do marido, que há-de ter sido construído pelos dois, e onde, agora que as células lhe morrem na cabeça uma após a outra, formando tranças indissolúveis, lhe restou reservado o papel de estátua, de estátua de papel.
Naquele dia, vi-a sair, etérea, passo miudinho após passo miudinho, o corpo pequenino abrigado por calças e casaquinho de malha. Foi em direcção a sabe-se lá, em busca ou em fuga, ou então nada de coisa nenhuma destas, quem pode saber o que se passa num cérebro que deixou de processar da mesma forma que os outros? Não que me tenha feito diferença vê-la sair, não que tenha ao menos pensado que não estava certo e corria riscos — como é dramático o regresso à infância sendo assim —, não pensei mesmo nada, foi como se um anjo tivesse passado por mim e eu estivesse demasiado absorta no meu café, porque estava.
Momentos depois, vi-a surgir pelo braço de outra mulher, que chamou dali o marido e lhe narrou que a havia ido "apanhar já ao fundo da rua, na ponta do passeio, e não pode, e é perigoso".
Ele era todo grisalho de sobrancelhas carrancudas e bigode espesso quando a segurou, agarrando-a por um braço, e vociferou o imperdoável: "É só para a maldade, não é? Já não serves para nada, mas lá para a maldade estás sempre pronta!". E, de olhos besuntados em mim, continuou o horror: "Nem esse corpo já serve para alguma coisa, só serves para a maldade!".
Ela com o mesmo olhar branco e o sorriso preso no último rasgo.
Não me perdoo a incredulidade, o nojo, o choque, a inacção. Titubeei ridiculamente uma espécie de axioma, "Isso é violência doméstica, deve saber que é crime", e saí dali. Fui em direcção a sabe-se lá, em busca ou em fuga, cheia daquelas dores da impotência, da raiva e da certeza de não mais voltar.


4 comentários:

  1. Anónimo27/2/18

    Doeu até às entranhas, bolas...
    Quanta maldade poderá albergar um ser humano?
    Não tem um limite?
    Ainda bem que não presenciei tal...
    Tenho tendência para ser demasiado impetuosa quando em presença da maldade humana em todo o seu esplendor.
    Grace

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    1. O que mais me impressionou foi pensar que estas duas pessoas já foram um par, um uno, já tiveram um amor.
      Nunca sabemos para o que estamos guardados, Grace...

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    2. Anónimo28/2/18

      É precisamente o facto de pensar que essas pessoas poderão ter partilhado momentos de amor e ternura, que me impressiona. Como é possível passar do amor para a maldade (nem indiferença é)? Efetivamente, nunca poderemos afirmar com segurança que connosco vai ser diferente.
      Grace

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    3. É tudo o que me ocorre quando vejo um casal desavindo, ou estas manifestações de desamor, Grace.
      Nunca temos nada garantido, não.

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