21/02/2018

A temática da pipoca

ou

De como ser civilizadamente incivilizado

Em relação à pipoca, mesmo ninguém tendo perguntado qual é a minha sensibilidade, acordei hoje com uma imperiosa e irreprimível ânsia de explicá-la, para que não restem dúvidas. 
A pessoa é, como todo o Humano, condicionável, embora não chegue aos pés às patitas do canito de Pavlov. Derivados que vai ao cinema, ainda está metida na bichona para comprar bilhetes, e já as glândulas lhe gritam "Ó pchhht, ó! Não te esqueças da pipocada!". Tanto que, portanto, quando alcança a caixa de pagamento, já nem se lembra de qual o filme que pretende visionar, nem tão pouco o horário dele, mas sabe que quer um pacotinho, um pacote ou um pacotão das doces ou das salgadas.
(Não existe frase nenhuma na língua portuguesa que fique chique com a palavra "pacote" à mistura, daí que ainda meti ali à pressão o diminutivo e o aumentativo, a ver se disfarçava, mas nem sei se não piorei. Siga.)

O verdadeiro e real problema da coexistência pipocas/ sala de cinema começa desde logo: o próprio pacote (mau) está preparado para fazer de nós equilibristas, cujo desafio é flutuar sobre o soalho, entrar na estreita porta, subir a escadaria do anfiteatro, na penumbra (ou já às escuras, para os mais destemidos), acertar com uma fila de cadeiras cuja letra está (temporariamente?) invisível, passar por dois ou três cidadãos que já se encontravam sentados sem tropeçar em nenhum deles, e sentar-se no lugar certo, que tem o número — onde? onde? — nas costas das cadeiras da fila em frente (!), tudo isto sem deixar cair uma única pipoca. Para os mais arrojados, o nível acima é passar toda esta agrura sem-comer-nenhuma-pipoca-pelo-caminho. Isto, sob pena de, ao deixar cair uma delas, sermos sujeitos ao olhar da total rejeição do povo em geral. E nada de tentar apanhar essa que caiu, pois potenciareis a cascata de metade do pacote (errr) em direcção ao solo, que é o que acontece desde que aquele senhor descobriu que os corpos têm atracção para lá.

Caso estejamos num cinema NOS, e a seguir àquele spot que nos ordena que deixemos a sala limpa — numa altura em que o nosso calçado já contactou com uma cama de milho estalado, profundamente soldado às nossas solas, e que fará as delícias dos insectos quando dali sairmos —, prossegue então a saga da pessoa que se quer civilizada, porém gulosa (e, como já vimos, condicionada), que é a de morfar uma embalagem (agora fui linda) de pipocas inteira sem um único com o mínimo ruído possível. Então, truques: 
1. Esperar pelos momentos em que o som está mais elevado, designadamente o do tal anúncio da NOS, emitido, conforme sabeis, em níveis decibélicos para lá de bélicos. Esse é o momento perfeito para, exactamente, meter pazadas de pipocas boca adentro, todas em simultâneo, prevenindo, assim, todos os momentos posteriores, em que é menos provável que consigamos fazê-lo (assumindo desde já que não estou sozinha neste flagelo);
2. Aproveitar os momentos musicais, de estrondos, de exterior (motas, carros, aviões, comboios, vale tudo, mesmo até tirar olhos) e gritos, para roer ruidosamente mais umas quantas. Atenção aos momentos de choradeira na tela, que ficam muito mal se acompanhados do rrr-rrr-rrr típico do processo ruminante. Já se a choradeira se der na plateia, é fartar, vilanagem, até mesmo porque os homens fazem sempre o favor de se assoarem (ruidozíssimamente) nessas alturas;
3. Tirar proveito dos breves instantes em que o povo tosse, o povo se engasga, o povo gargalha, o povo faz ruídos indistintos. Tudo se aproveita para mais uma pipoquinha na goela;
4. Chupar as pipocas como se fossem rebuçadinhos duros, duros. Não dá jeito? É verdade, mas tem a vantagem de o processo de ingestão de cada uma delas se tornar tão moroso que: a) É uma poupança; b) É uma dieta;
5. Assumir o intervalo como o momento áureo para tirar a barriga de misérias.
Se todos os anteriores falharem, e a fome enegrecer a níveis catastróficos, é sermos criativos, e provocarmos, nós próprios, o momento musical, o estrondo, o grito, o ataque de tosse, a sufocação, a choradeira, o assoar estrepitoso. Nos entrementes, é ruminar mais umas quantas das ditas.

Julgo ser meu dever ainda chamar aqui a atenção para o flagelo que é o som do esgatanhar das unhas no fundo do pacote (ai), que chega a ser mais enfartante do miocárdio do que o mastigar do milhinho em pufes. Digo isto porque ainda me ando a tratar de uma vez em que coincidi ao lado de uma mulher que passou exactamente toda a sessão — eu repito, TODA a sessão — a raspar nos fundilhos lá do pacote (hohoho) dela, coisa para fazer inveja a qualquer gato enfiado na sua própria caixa de areia. Desconheço se a escavação lhe trouxe a descoberta de algum tesouro, mas a mim deixou-me a comprimidos para os meus nervos até hoje. O que fazer, na circunstância de o nosso pacote (tão doce) chegar ao fim e ainda lá termos umas quantas pipocas? Olhem, esperem por chegar a casa, a ver se poupam o resto dos mortais a essa condição, evitando, assim, que faleçam. Geralmente, o que fica para o fim são bolas de milho não estalado, que vos partem os dentes, e é muito bem feita se isso acontecer, caso persistam em esgaravatar nas profundezas da embalagem (☺).

Mais um pormenor, de somais importância: os pacotes (é a última, juro) de pipocas têm uma espécie de fundo falso, que se desmancha se tentardes fazer do paralelepípedo um cilindro. (Sei isto, porque já tentei, e correu extremamente mal.) Não dá para brincar às formas geométricas com aquilo enquanto cheio, sob pena de despejardes todo o conteúdo rumo aos vossos próprios pés. Solução? Andar sempre com uma pá e uma vassoura na mala. Eu, pessoalmente, não ando, mas o pincel do blush também dá.
Estou farta de escrever, desculpem lá a extensão desta prelecção.

16 comentários:

  1. Olha, a mim só me apetece mandar os comedores de pipocas em sala de cinema apanhar no pacote! :p

    Beijos, Lindona :)

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    1. Ou arrefinfar-lhes um kick no pacote! :)
      Também eu, Mary, isto são tudo exageros de pessoa demasiadamente civilizada :)

      Beijinhos para ti :)

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  2. As pipocas no cinema causam-me sentimentos contraditórios.
    Não compro, porque não se deve comer durante o filme, porque é desagradável para as outras pessoas, porque os pacotes (não há outro termo) por muito pequenos que sejam são anormalmente grandes, e mais não sei quantas razões válidas.
    Resultado: passo o tempo todo com vontade de comer pipocas, com vontade de tirar disfarçadamente umas quantas do pacote que estiver mais próximo.

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    1. A mim também, Ana. A maior parte das vezes, não compro. Chego mesmo a escolher filmes a horas em que seja impossível apetecerem-me (a sessão das 6 é perfeita, depois de um lanche sem exageros). Mas, quando caio em tentação e as compro, tenho tantos cuidados para não incomodar ninguém, que nem as saboreio como deve ser. Chego ao fim do filme e nem a meio tenho o pacote (☺). E aquilo enfarta-me, não percebo muito bem a noção de "pequeno" de quem fabrica aquilo.
      Enfim, mas adoro. E adoro estar entretida enquanto vejo o filme. São as tais ambivalências :)

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    2. (ana, não há dúvidas, somos mesmos gémeas :b :b :b)

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  3. Não consigo aproximar-me de pipocas. Asfixio com o cheiro. Fico sem conseguir respirar e sei que morro se tentar desatar a correr dali para fora. Não vou ao cinema há tantos anos por causa disto! Tenho um medo que se sentem ao meu lado a comer pipocas e sei que não é bonito levar aquelas botijas de oxigénio apensas. Consigo cheirar pipocas a 500 metros (não disse gramas) de distância e começo a ficar roxa. Como sou ruiva, não me parece que sejam cores compatíveis. Odeio pipocas.

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    1. A ver se essa repulsa não se estende à blogosfera, onde são mais que muitos! :)
      Tem graça que nunca ouvi falar de um fenómeno semelhante em relação a pipocas. O meu mais próximo disso é com o cheiro do Mc. Mesmo evitando chegar mais perto do que quinhentAs :) gramas, digo, metros, basta que um vizinho transporte aquilo para casa, que já me cheira no elevador. Um grego.

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    2. Toino22/2/18

      Ó Gaffe. As pipocas são outras.
      Enjoam na mesma mas são de outra qualidade.
      :)

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  4. Não imaginas como é aflitivo. Nem a uma romaria consigo ir! Eu que gosto tanto da Ana Malhoa, fico sem poder turbinar, porque há sempre pipocas por perto.
    Fico mesmo sem conseguir respirar, toda sufocada e sem um pingo da compostura sofisticada que, como sabes (...) me caracteriza ... ... Então se forem quinhentAs gramas delas, morro ali logA.

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    1. :D hahahaha, desculpa estar a rir-me da tua infelicidade, mas é que, dito assim... :)
      Juro: nunca ouvi falar de caso semelhante. Isso não pode ser um fenómeno alérgico?
      (Bem, na verdade também não perdes nada...)

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  5. Partindo do princípio que as pessoas regra geral têm maneiras a comer, - não fazem barulho por aí além enquanto mastigam - não incomoda. E depois com o volume, do filme, altíssimo - às vezes chega a parecer que é para gente surda - nem se repara em quem está a comer pipocas. Digo eu :)

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    1. Bem gostaria de poder partir desse princípio, Té. A questão é que isso não é assim tão linear. Às vezes, e no caso concreto do cinema, até parece que fazem de propósito para darem mais nas vistas, ou lá para o que é.
      Mas sim, os momentos ruidosos são os mais indicados, porque comer pipocas em silêncio é quase o mesmo que comer batatas fritas de pacote :)

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    2. Linda, não leves a mal, mas vivemos actualmente na época da crítica, do apontar do dedo por tudo e por nada...É facto.

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    3. Não, Té, não levo a mal.
      E sim, Té, vivemos. E também na época de levar tudo muito a peitinho e de ficar perturbado por tudo e, especialmente, por nada.

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    4. Isso! Concordo contigo! :)

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    5. Coisas ditas e escritas com o propósito claro de fazer rir e passar um bom bocadinho, levadas a supremo tribunal, valha-nos o senhor (doutor, psiquiatra)! :)

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