29/12/2021

Eu tenho problemas com médicos # 26

Logo havia de me sair à rifa um oncologista giro. Ou melhor, assim como o dentista, com uns olhos bonitos. O resto, enfim, a máscara mascara, mas não há-de piorar o todo. Ainda por cima, gosta de mim: acredita na minha cura, exulta quando vem um exame bom — o resultado do PET deu direito a um meio abraço (desses em que cada pessoa dá só um braço, portanto, um abrá), o que, no meu caso, foi difícil corresponder, já que o humano goza para aí de 1,90 metros de lonjura e não me pareceu bem trepar por ali acima —, que se ri das minhas piadas estafadas e quase inconvenientes (e sim, utilizei a imagem do “parto da vaca” para descrever a resolução da obstipação), enfim, só falta mesmo tratar-me de graça. Hah, não quero. Basta que me trate com graça. Ave Maria.

Recebeu-me na véspera de Natal em consulta, exactamente como se fosse o dia mais vulgar do ano. Vesti um vestido preto de flores cor-de-rosa, zero elastano (este pormenor interessa lá mais para a frente), com um pequeno fecho a apertar de lado, sapatos de salto alto, e levava na cabeça o ainda meu cabelo, lavado e encaracolado como um pufe. Era a minha roupa de Natal, não para ir fazer análises (em jejum…), teste de covid e ida ao médico. Mas ia vaidosa, apesar de esfomeada, uma vez que não tive tempo de tomar o pequeno-almoço entre tantas démarches. 

Só nunca imaginava eu ouvi-lo dizer “Sente-se ali”, apontando com a cabeça para a marquesa, “que eu quero vê-la”. Era a segunda consulta pré-tratamento, na primeira não tinha havido mais do que diálogo, então achei que aquela iria ser igual. Bem mandada, sentei-me na dita e fiquei a sorrir, quietinha. Pode ter sido da hipoglicémia. O médico a olhar para mim e eu sentada na marquesa, a sorrir atrás de uma máscara cor-de-rosa. Devo ser parva.

Teve, então, que apontar para o peito e explicar que tinha que mo observar. Foi aí que me fiz cara, explicando que tinha que despir o vestido todo, uma vez que não era desses de baixar pelo decote até à cintura. Em suma, não tive outro remédio senão ficar de collants, sentada na marquesa, estúpida e nesnudada. Nunca acerto com a merda da indumentária, já para as festas é o mesmo desassossego. 

Hei-de experimentar o fato-macaco, fecho eclair à frente e tudo. Festas incluídas.


27/12/2021

Despedi-me do meu cabelo, sabes?

É para ti que escrevo hoje, que entendes da importância que tem — tinha, teve, terá — o meu cabelo para mim, e não consideras a peruca uma futilidade,

como me cansam as pessoas da “solução” que são “as soluções tão giras que há hoje em dia, com lenços, turbantes, toucas”, mas eu lá sou mulher de turbante? Ainda ninguém me sugeriu um hijab, um nikab, não sei como não, se essa é que seria a fórmula certa que me levaria à rua, sem medo do preconceito — enfrentando outro? — da doença, as pessoas estigmatizam e rotulam quem tem cancro, eu sei porque sou pessoa. Nunca o fiz por maldade — e que mais maldade se pode fazer a quem já carrega uma assim? —, mas por pena, por Deus-me-livre, por condenação à vista.

Foi ontem, durante a manhã tocava no cabelo e saíam fios aos dez e dez — não que os tenha contado um a um, mas, se não eram dez, eram onze —, sei que larguei umas lágrimas, talvez também umas dez — podem ter sido onze, um dos meus olhos chora sempre mais do que o outro, deve ser o do lado adquirido, porque o do lado inato sorri mais bonito, estou em crer que choro sempre em número ímpar, eu, que não gosto de ímpares e agora vou estar praticamente um ano com idade ímpar, é que me dá transtorno obsessivo a desigualdade —, e então liguei para uma espécie de anjo que tem um cabeleireiro e exerce a profissão, não queria que a mutilação fosse operada em casa, por uma das crianças — que, entretanto, se fizeram mulheres e homem e se ofereceram —, queria o egoísmo meu a um domingo, salão fechado a abrir só para mim, e o mimo todo da minha Sandra (tenho várias Sandras na minha vida, e são-me todas tão preciosas, que, caramba, só pode ter a ver com o nome) para aquele momento que auspiciava de terror e a acabar em desmaio meu.

Fui encontrá-la mais nervosa do que eu, queria cortar curto, “Rape, Sandra”, e ela começou a cortar, não cortou madeixas grandes, não vi as minhas ondas no chão, vi a minha vida em retrospectiva, eu aos vinte e poucos na faculdade, com o cabelo pelos ombros, eu aos onze anos, com o cabelo à tolinha, eu aos quatro anos, quando cortámos, a mana e eu, rente à cabeça, e, finalmente, eu. Hoje.

Tenho uma cabeça muito bonita: lisa, sem marcas — porque tive sempre o cuidado de “partir a cabeça” em zonas visíveis, na cara —, sem ondas, sem uma borbulha. Só mais um ou dois rubis, sinais vermelhos minúsculos que também tenho no corpo (três? Talvez quatro, para não ser ímpar). 

Quando saí, abracei a minha Sandra, ela em lágrimas a garantir-me, quem sabe se não cientificamente, que eu vou ficar boa, eu seca dos olhos, porque já tinha deitado aquelas dez. Não devem ter chegado a onze.



22/12/2021

Sedação e obstipação

A razão das minhas histórias, actualmente, é sempre a mesma: estou embrenhada num admirável mundo novo, em que, lá está, tudo é uma novidade.

Outro dia fui pôr um cateter permanente, a ver se as veias não fritam com os tratamentos. Ia convencida de que era chegar, abrir, mete lá o plástico e cose. Quando me mandaram ir em jejum, comecei a desconfiar que ia passar o dia com os ritmos biológicos todos baralhados. Mas pronto, lá fui. Um aparato de despe e veste só uma bata (e umas cuecas que nem a minha avó algum dia), bloco, anestesista, “vamos só dar-lhe uma sedação, não é anestesia geral” (eles temem-me, porque a quantidade das que já fiz não cabe nas linhas todas dos relatórios deles), gente de touca e coisas metálicas nas mãos, todo um cenário de cozinha que me dizia “Olha agora…”. Mas ainda bem que sempre fui, mal me espetaram a agulha na mão, já a veia espichava e foi chato. Vá, fizeram aquilo, ou melhor, isto (que é só horroroso, vê-se perfeitamente uma peça de plástico entre o seio e o ombro), a mim a sedação deu-me para a moca, que nunca mais os ouvi, mas, pelo menos, deu para levar um elogio, “Dona Maria, portou-se muito bem”. Se calhar até ressonei, de tão bem comportada fui. Os outros operados da sala de recobro foram todos marchando, um a um, todos intervencionados depois de mim, mas eu sou de aproveitar as lanzeirices até à última gota e xonei-as ali três horas, que foi um regalo e, convenhamos, uma aflição para a minha família. É não me drogarem.

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Nessa mesma tarde, indigitaram-me a estar num outro serviço, para colocar um clipe no tumor, não vá ele tornar-se invisível e o cirurgião, aquando da operação que virá para o ano, já não o encontrar. Então, fui, sem saber se havia de me pôr outra vez em jejum, mas, à cautela, com um naco de tofu mais couscous para aconchegar. Esperei educadamente na sala de espera, isto passou-se uma hora, ele passaram-se duas e nunca mais chegava a minha vez. Lembro que estava drogada, por isso precisava de curtir a minha trip sem que ninguém me moesse o espírito. E tinha um senhor já com idade para ser irmão mais novo do meu pai com os olhos pregados em mim. Certo que podia estar apenas interessado em verificar se eu adormeceria efectivamente — dada a evidência de que o ia fazer —, ou a apostar consigo mesmo quantas vezes o faria no espaço de um minuto, por exemplo. Experimentei mudar de lugar, até mesmo para me recatar melhor, e lá veio o homenzinho atrás de mim, para se pôr exactamente à minha frente, olha o paradoxo. Entretanto, ao telefone com a respectiva sponge. Um clássico, quem não sonha uma adolescência inteira com este exemplar? Estimo que ela o chifre na mesma medida. 


De todo o modo, adormeci. Que bom é termos que usar máscara em locais públicos fechados: dá para, caso seja o caso, dormirmos de boca aberta e tudo. Até o fiozinho de saliva pode aflorar num canto, ou mesmo nos dois, pois aquilo há-de absorver. Bom, assim que me chamaram, fui para o gabinete do médico, ainda me encontrava naquele mesmo transe, e fui até um pouco contrariada de não me darem mais um par de horas para descansar na sala de espera. Não entendi por que é que chamam clipe àquilo, podia perfeitamente ser agrafo ou pionés, ou até anzol, uma vez que o médico nos espeta um agulhão arpão na mama para lá o colocar. Se tive medo/ dores/ puns mentais? Oh, filhos, eu apanhei-me numa horizontal e já só acordei ao som de “Acorde, Maria. Ou quer ficar aqui a dormir?”. Sim. A resposta era sim.

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Ainda estou indecisa se um destes dias aqui explico, da forma menos gráfica que conseguir, a verdadeira acepção do termo “obstipação”, que é outra das alegrias oferecidas de borla pela quimioterapia. Adianto apenas que agora sei o que sente uma bovina nos segundos imediatos do pós-parto: orgulho. Muito orgulho. E uma breve dúvida, no que serão os possíveis pensamentos da puérpera em questão: “Olá… Será que isto ainda me vai dar uma marrada?”.


14/12/2021

A sorte ou a luta protege ou ataca os audazes ou os valentes?

No domingo passado, apanhei-a de surpresa, à entrada da aula de dança, estava ela baixada a apertar os atacadores aos ténis — já lhe ensinei mil vezes o truque de molhar os atacadores, mas parece que não há nada que resulte com os dela —, baixei-me um pouco e disse-lhe ao ouvido: “Amanhã vou começar a fazer quimioterapia”. Ela ergueu-se, esqueceu os ténis, abraçou-me, enorme, depois olhou-me bem dentro dos meus, com os dela igualmente marejados, e disse: “Sabes, querida, essas coisas só acontecem aos valentes porque são os únicos que são capazes de lutar”. E, por aqueles breves instantes, eu acreditei nas que me pareceram sábias palavras, vindas de uma mulher tão grande quanto delicada.


Não deixes de vir dançar.”

“Não deixo. Só mesmo se tiver muita vergonha da peruca ou de vir de lenço. Mas queria que soubesses que, se desaparecer por uns tempos, não foi por me ter enjoado das tuas aulas.”


E dançámos durante uma hora, numa sala, embora cheia, sozinhas, cúmplices e em sintonia afectiva.


10/12/2021

Qual é que foi o momento em que soubeste?

Não foi na mamografia — embora o “entalão” das placas da máquina (que é um torno, ninguém se iluda), daquele lado, fosse mais desagradável do que do outro; não foi na ecografia, quando o médico viu nas imagens algo demasiado espesso; não foi quando a médica olhou para os exames e disse que, já agora, fazíamos uma ressonância.

Eu fui. Calhou-me um técnico alegre e bem disposto, que me avisou que ia ouvir um concerto de heavy metal. Eu ai que prefiro música dos anos 80, mas isso não havia, então lá lhe fiz a vontade e esparramei-me de barriga para baixo, braços ao longo das orelhas, “Ponha-me o botão de pânico longe de mim, que eu sou aquela que o espreme sem querer e aborta a missão por um lapso de distracção”, e a festa começou: martelos, apitos, sirenes, pancadas metálicas, centrifugadora em acção, intervalados pela desagradável gravação de uma voz feminina, “não respire”, “não se mexa”, “a próxima etapa do seu exame tem a duração de quatro minutos”. Supostos vinte minutos que passaram largamente dos trinta, eu dentro do cilindro, assustada e quieta, nunca na vida pensei sobreviver a tamanha merda toda junta.

Foi quando me levantei dali e me sentei na marquesa, que vi os olhos de riso dele cheios de sombras e tempestade, que percebi. Não perguntei nada, por respeito, inutilidade e cobardia. “Desejo que lhe corra tudo bem”, como quem diz, “Eu vi o teu cancro, ele está aí dentro”.


06/12/2021

Cancro

Sei agora que “visionamos” a nossa própria morte numa linha do horizonte ténue e indefinida, na qual há-de, um dia, longínquo e incógnito, surgir um barco, primeiramente com o tamanho de um grão de areia, invisível à distância, depois aumentando de dimensão — para uns, à velocidade de uma lancha, para outros ao ritmo de um barquinho sem remos, apenas à deriva da corrente —, até ter-nos chegado perto o suficiente para que nos leve na viagem sem retorno àquela praia.

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Não hesitei um segundo em escrever este texto. Não porque necessite de piedade, comiseração ou orações — que necessito, não vale a pena camuflar este pânico que me toma inteira de dia e de noite há demasiadas semanas —, mas porque escrever é a minha catarse, e não me alivia fazê-lo só para mim. De todas as vezes que o fiz anteriormente, rasguei ou apaguei, e, desta vez, preciso do meu testemunho como testemunha, gravado a ferro e sangue, para um dia ler e, quem sabe, pensar “Ainda bem que passei por tudo aquilo”. Porque a vida é isto, um mar de rosas cheias de espinhos, da qual é fundamental retirar o bom odor, e quem sabe também sofrer as dores das picadas.

Já agora, também não vim à procura de mais seguidores nem de um boom nas leituras diárias aqui do coiso. O blog tem quase nove anos, pouco passa dos cem seguidores há talvez uns sete, um ou dois deles sou eu própria, talvez metade já nem “exista” na blogosfera. 

Acho que vim só para avisar que, se calhar, vou perder por uns tempos o meu sentido de humor, ou aquilo que considero como tal. 

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Outro dia, estava tão descoordenada das ideias, que fui correr e fiz dez quilómetros. Devagarinho, uma vergonha de 8,5 minutos por quilómetro, mas fiz. Fiz e farei tantos dez mil metros quantas as vezes que esta nova alma me permita.

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O que mais me lixa? Ficar sem o meu cabelo. Mesmo quando anda desvitalizado, espigado, multicolorido derivado às tintas e ao sol, com a raiz branca porque está na altura de ir pintar, com um ondulado estúpido e desconexo, é o meu cabelo. E não me adianta que me digam que “é só cabelo” — não, não é: é uma parte de mim que me é tão cara como o nariz lindo que os meus pais me fizeram —, ou então que “depois cresce outra vez, ainda mais forte”, eu não quero isso, eu quero o meu cabelo, este cabelo, o de hoje. Sou fútil, pois sou. Alguém tem que ser. Não há pessoas burras também? Então, é a mesma coisa.

O que mais me consola? Tudo isto se passar comigo e não com um dos meus pintainhos. Não existe maior dor do que ter um filho doente, sem se saber quando e como é que aquilo vai acabar.

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Como se já não bastasse, apanhei uma pulga, que me tem consumido as carnes sem dó nem piedade. Tenho dentadas dos pés à cabeça.


Eu sei que sou gira, não precisam de mo dizer. E que desperdício, agora ficar sem cabelo e inchada. Pode ser que depois fique ainda melhor. (Como se isso fosse possível.)

Vou cortar o acesso a comentários porque “vai tudo correr bem” e “força!”, já deito pelos olhos. Peço desculpas. Começo logo a cantar mentalmente aquela música italiana na época do início da quarentena. E a merda toda é que não correu nada tudo bem. 


23/11/2021

Eu, tu, ele, nós

Hoje encontrei-me num desconhecido. Era eu, noutro corpo. Estava parada diante do dispensador de senhas daquela loja parafarmácia, perfumaria, óptica, cosmética, estética, dietética e ortopédica, tudo a um tempo, tentando em vão perceber qual a senha mais indicada para uma pobre mortal que apenas pretende adquirir um lápis para pintar os olhos — e, assim, obter um olhar entre o enigmático e o ó-pá-deixem-me —, e, uma vez que nenhuma das várias possibilidades que a máquina me apresentava se afigurava a correcta (saúde, estética, óptica, outra qualquer tipo banha da cobra e prioritários), ali me pus um bocadinho da minha vida a decidir, quando ele se acercou e perguntou se podia ajudar-me. “Sabe, estou aqui confusa, porque só quero um lápis para os olhos e nenhuma destas senhas serve para a minha necessidade.” Um ondular lateral da cabeça, ombros e anca, “Escolha uma qualquer, isso vai tudo dar ao mesmo” — devia referir-se ao balcão, onde ninguém verifica o papelinho que levamos na mão —, e eu logo a pensar, “Este era eu, se fosse homem”. Acompanhou-me, então, até ao expositor dos lápis, onde, após aturada busca com recurso a uma fotografia que eu levava comigo para facilitar o achado (sou uma pessoa absolutamente incapaz de decorar nomes de frascos, bisnagas e caixas, só não vou à farmácia com os recortezinhos dos medicamentos porque existem telemóveis), encontrámos o almejado. Reparei nessa altura que, em vez de anunciar que se aguenta agarrado ao olho por dezoito horas, este agora diz que são vinte. “Pergunto-me quem é que quer ter os olhos pintados durante vinte horas.”, “Quem só dorme quatro.” Era eu, não tenho dúvidas. O Criador também pode ter fases de crise de criatividade, passe o pleonasmo.


16/11/2021

Bonita, bonita, era que este dom me servisse para alguma coisa

Estou necessitada de um golpe de sorte. A minha estabilidade, o meu equilíbrio e até a minha felicidade dependem, neste momento, de uma resposta que está para me ser dada nos próximos dias. Ando numa pilha de nervos, num credo, num ai Jesus de dar gosto ao diabo. Não fora ser uma senhora e não fazer essas coisas, e já estaria desintegrada em estrume daquele altamente fertilizante, pardonnez-moi o grafismo e a gráfica desta singela e escatológica imagem.

Hah. 

Sempre fiz apostas comigo mesma, desde que me lembro de existir como gente. Sei que não sou a única, o que me conforta, pois, embora isso signifique que não sou nenhuma pérola irrepetível, dá-me também a ilusão de não ser uma bela aberração. Lembro-me, por exemplo, da Dolly do Hello, que pediu um sinal ao falecido para que lhe desse a anuência quanto ao casamento com o Horácio. Percebem o raciocínio?

Assim, estava eu na fila única do hipermercado, e, sem ter olhado para as caixas — isto é fundamental para se entender o contexto —, apostei assim: “Se eu for chamada para a caixa 21, é sinal de que a notícia que aguardo será boa”. [As caixas são para aí trinta e cinco.] Eu gosto do vinte e um por egocentrismo e superstição, nasci num dos doze do ano, e deixem-me. Deu-se então a minha chegada ao primeiro lugar da fila, e, ao olhar para a 21, verifiquei que a operadora ainda estava a receber o pagamento de uma pessoa e havia uma outra à espera de ser atendida, com as compras já no tapete. Arrependida, um pouco zangada comigo mesma, quase furiosa — porque tanto acredito nas minhas perguntas como nas respostas que o cosmos me dá —, ainda pensei em desfazer a aposta, “agora não vale”, à pita da escola, “não vale salvar todos” no jogo das escondidas. (De resto, nunca percebi essa cena de salvar todos, uma batota como outra qualquer.) Estava eu mergulhada nestes pensamentos, prestes a afogar-me neles, quando o altifalante chama: “Caixa número vinte e um”.

(Foi uma alegria tão grande que paguei a despesa de um rim que lá deixo praticamente todos os dias sem um pestanejar de rímel, toda eu risos e simpatias para a funcionária. Não presto para nada.)

Desculpem, mas isto não é altamente científico?


08/11/2021

Leave me breathless

Já aqui me insurgi, não contra, mas a propósito do despropósito que constituem as campanhas daquele hipermercado que responde por um nome começado por Conti e terminado por nente, e que nem foi capaz de adaptar o nome ao estaminé quando se instalou nas nossas ilhas.
Cá vai mais uma, que, como sempre, não passa de um exercício de matemática simples, tipo quarta classe, como se dizia no meu tempo.
Agora são facas. Diz que são de cortar a respiração, o que é credível pelo aspecto dos retratos: as naifas são perfeitas para talhar uma jugular, quiçá uma boa carótida.


Uma delas, por ter o mimoso nome de santoku, há-de estar destinada ao golpe na veia femural. (Pareço uma cirurgiã — ou uma talhante — a falar, mas é que fui estudar.)
(Esta m. está a centrar-me o texto, derivados às imagens, mas defequei. Sei muito bem que, se for à html, posso alterar, mas não vou.)


Mas o que me traz aqui, efectivamente, são aqueles cálculos esdrúxulos a que sinto que tudo isto me compele. Então, imaginemos que eu quero uma faca multiusos, como outro dia me apeteceu: junto vinte selos, sendo que cada um corresponde a vinte paus de compras, logo, a minha faca custa-me quatrocentas mocas, em não me falhando a calculadora (nhé, fiz de cabeça, sou um crânio). E depois, vou à caixa trocar os selos pela faca, e passam-me um recibo de quarenta e quatro e noventa e nove dele — que há-de ser o valor de mercado da coisa —, mas a zeros.


Ou seja, o cutelo custou-me quatrocentos, ou quarenta e quatro e noventa e nove, ou zero? 
Agora que pus isto assim, nestes termos, já não consigo dormir sem uma resposta. Às vezes (raramente!), mais valia estar calada.


07/11/2021

Ouço coisas

As pessoas não percebem que têm que fechar o tampo da sanita, mas isto é para homens e mulheres. Porque, quando puxam o autoclismo com a tampa aberta, as bactérias vêm todas cá para fora e espalham-se por todo o lado, e vão até às escovas de dentes, se for preciso.

[No cabeleireiro, aquele espaço onde, conforme se sabe, as mulheres vão relaxar e tratar da cabeça, mas eu, em constante contramão, vou apanhar camadorras de nervos e saio sempre mais velha. A sério, fico com mais dez anos em cima, ou seja, com a minha idade biológica, se me esticarem a franja, ou lá o que é isto.]

Se ela for uma abusadora para o bem, tudo bem. Se for para o mal, é que já não.

[Aleatoriamente, de passagem pelos passeios desta cidade. Não, meu jovem. Não existe o conceito de “abusadora para o bem”. Nem mesmo esse da palhaçada em vale de lençóis, que devia ser no que as tuas hormonas estavam a mandar-te pensar. Se é abusadora, é sempre para o mal. Pode é ser uma boa maluca na hora da potrilha, mas não chames abusadora à criança. Isso é crime.]

Adirem… adirem… adirem… Fazem a aderência…

[Numa Loja do Cidadão perto da pessoa humana. Vais para trocar um selo de residente de um carro para outro — a frota sofreu uma pequena alteração, na verdade bastante grande: o camião que transportava sete finou-se por avaria fatal (daquelas de ficarem mais dispendiosas do que o valor de mercado da coisa), de modos que foi substituído por um de cinco almas, visto que está a dar-se a debandada do ninho e já não necessitamos de levar a filharada toda mais a criada, hah, era a gozar, a filharada toda mais as gatas, mas esta última parte também nunca aconteceu —, e ficas diante do senhor que te atende, à espera não só do selo novo, como também que ele decida em que tempo vai conjugar o verbo. Pronto, depois lá opta pela aderência no lugar da adesão, pois cada um sabe com que linhas é que se cola.]


02/11/2021

Gente que não sabe estar

O homem entrou-me porta adentro, óculos de sol agarrados à cara — que nunca tirou —, suspeito que para ajudar a namorada a desnegociar um contrato que tinha connosco, coisa simples, apenas uma assinatura de denúncia e ala. Ambos na faixa da quarta década, ela muito enfiada, não sei se tímida, insegura, ou medrosa, mas de quê, de quem, valham-lhe os santinhos? Não percebi a presença do mânfio, será que para segurar por ela na caneta assinante, caso tudo — nomeadamente o punho — falhasse? Ela na sombra dele, um murmúrio de boa tarde, eu curiosa para conhecer a maníaca das limpezas, que tudo desinfecta com lixívia, mas deixou o espaço que ocupou num esterco de dar gosto ao aspirador e ao esfregão, nem cheguei a tirar-lhe as devidas medidas, já o macho alfa me dirigia um 

Atão,  jovem, tá-se?

Eu parva, sem perceber para quem se dirigia tal dislate, pondo a máscara sem jeito nenhum,

Olha, ficas mais confortável se eu também puser a máscara?

Talvez ficasse mais confortável se te pusesses nas p., pensava a jovem, gradualmente mais exangue — e também burra, a perceber que ok, aquele despropósito era todo para mim, mas a filha da minha mãe já foi muito melhor em charadas, reacções imediatas e respostas prontas, e então esperei que o magano ajudasse a maníaca a escrever o nome no papel e se eclipsassem rapidamente, o que fizeram ao cabo de escassos minutos — felizmente, ela tem um daqueles nomes curtinhos, se fosse aqui o da senhora marquesa ainda lá estávamos —, saindo, ela na cola da silhueta dele, ele a acenar,

Jovem, fica. É preciso é saúde e alegria.


Lamento profundamente ter-me tornado nesta ameba proteus, incapaz de arrumar o coiso com a lapidar frase “Olhe, não seja parolo”, dirigida certa vez por alguém das minhas relações próximas a uma deslocada social deste calibre, aniquilando-lhe qualquer intenção de protagonismo escandaleiro. 



01/11/2021

Leve cruz

Somos vizinhas há para lá de duas décadas, ela é dessas que fazem falta, que dá revistas cor-de-rosa quando acaba de as “ler” — se é que chega a pôr-lhes os olhos em cima —, mas agora anda a morar numa ilha, desde que o vírus veio e o casamento começou a desmoronar-se, levou o homem com ela, como se não arranjasse melhor do que um careca esquálido e choninhas, que, disse-me ela certa vez, andava embeiçado por uma “fulana” que vivia três prédios adiante, nem para trair foi capaz de ir longe, mas o amor tem destas porcarias, e quem sou eu, que sou só vizinha, para avaliar o que se passava entre quatro paredes e um tecto e agora rodeados de oceano por todos os lados, a céu descoberto?

Nunca lhe conheci mãe, pai sim, zeloso e dedicado ao único irmão, deficiente grave de uma maleita que não sei identificar, atrasos e incapacidades a todos os níveis, só não é deslocado numa cadeira de rodas por, acredito fervorosamente, teimosia de pai e irmã. Vi-o passar outro dia, naquela espécie de andar de pernas arrastadas, apoiado, de um lado, no pai — que nunca vi envelhecer —, do outro numa das filhas dela, ambos carregando, a pequeníssimos passos, o corpo a cada dia mais deformado e sofrido, como uma cruz que, por motivos que quem, como eu, assiste só da bancada, não compreende o quanto, muito mais do que lhes pesar, os faz felizes. Não por esse motivo, mas por todos os outros, nada mais me veio à cabeça, que não fosse, “Que sorte que tu tens, Ester, que ainda tens o teu pai”.


31/10/2021

A Contabilidade não é o meu forte

Disso, nada sei, só sei que há pessoas que ficam nervosas com os relatos dos exercícios físicos das outras, e eu sou uma delas. Existem mesmo memes — não confundir com memés — a homenagear esse enfado, declarando “no one cares” para as conquistas musculares de cada qual. É verdade, concordo e assino por baixo. Ou por cima, tanto faz. No entanto, mais confusão a mim me fazem os atletas de sofá, que a sabem toda (a teoria) e não a fazem nada. Cruzo-me (salvo seja) com vários quando vou correr. Equipam-se, caminham e aterram na esplanadinha a descansar os ossos. Mas também não levo muito à paciência os profissionais do atletismo, que têm aquilo tudo contabilizado até ao cagagésimo de segundo e participam em provas e ganham medalhas e diplomas e pernas para que te quero. Chatos.

Mas, chiça penico, impossível não vir aqui babar que, pesem-me embora as carnes, a três semanas de entrar na contagem decrescente para sair da segunda idade — já só faltam dez anos, há-de ser rápido a passar —, o que é certo é que ontem palmilhei oito quilómetros e meio, não me cansei extraordinariamente, e hoje não estou falecida. Aconteceu que disparei lá para um parque, que sei que tem quinhentos metros de perímetro, determinei-me a fazer seis voltas, para já ficar com três dos sete quilómetros que pretendia fazer feitos, e não ter que andar feita alucinada às voltas ao meu prédio e aos dos outros, mas deu-se que me perdi na contagem das voltas, e aí pela quinta?, sexta?, já não sabia a quantas ia (Dori no seu melhor), 

resolvi então fazer mais uma?, duas?, olhem, não sei quantas fiz, só sei que deu 8,560, pernas ok, pulmões e coração até a aguentarem mais um bocadinho. 

Bendita atmosfera húmida. Porém, os mosquitos. A humana acaba as corridas com as pernas a parecer o vidro da frente de um carro depois de atravessar o Alentejo. Vêm atraídos pelo protector solar, ficam irremediavelmente colados (e, antes de se finarem, ainda mas picam). Acho que não comi nenhum.


30/10/2021

A mulher que podia ser minha mãe # 5

abre a porta para eu entrar, verifico que já estão duas pessoas sentadas, pergunta-me se quero um café, agradeço e digo que não, mas ela começou agora o espectáculo, precisa de interagir, precisa de uma explicação: “A sua tensão arterial, como é que está?”, pois não lhe chega um mero “Já tomei”, “Não me apetece”, “Por hoje já chega”, para o que, de resto, nem me deu tempo. Respondo que está boa, agora que só tomo um café por dia — a minha grua —, talvez um destes dias nem isso, assim como assim já só como relva, capaz de me meter na meditação e abraçar uma religião alternativa. Entro para o gabinete e ainda a ouço dizer para as duas sentadas: “Esta [e diz a minha profissão oficial, que, aliás, não exerço, mas que, para o caso, é indiferente: ela sofre de dependência de falar, sobretudo necessita de se engrandecer através do poleiro social a que considera ter ascendido por se dar com. Estou profundamente convicta de que, se suspeitasse que eu era operária numa fábrica de bonés ou costureira, não só me ignoraria olimpicamente, como também não me apresentaria a todas as pessoas que ali entram como se eu fosse distintíssima em alguma coisa, criando-me embaraços irrecuperáveis, ou fosse a única pessoa do mundo que tirou aquela m. daquele curso — ainda se fosse Física Quântica, ou Engenharia Aeroespacial —, que nem a mudar uma fralda me ensinou] anda muito nervosa, e, por isso, agora só toma um café por dia”. 

Não ando, mas fico.



28/10/2021

And that awkward moment # 67

E é destes petits riens que é feita a minha vida, o que explica de antemão dois relatos seguidos de momentos peculiares. 

Imagina que vais pela rua, e que ainda estás constipada (ou sei lá o que é que se passa com as minhas fossas, pois é uma profusão mucosa que pondero mesmo mudar-me para aquela localidade que responde pelo belo nome de Ranholas. Juro que não deve haver dia que passe em que o meu primeiro pensamento não seja um agradecimento ao cosmos por não ter um sítio com um nome desse género no meu cartão de cidadona como local de nascimento. Pior do que Ranholas, só A-da-Gorda.) (Ao invés, fui nascer no Bairro de São Miguel, spé estupendaço.) Subitamente, entra-te um mosquito pela narina adentro, acima, ao léu, olé. Instinto imediato: expirar fortemente pelo nariz, como se estivesses a assoar-te. Só que sem lenço. E com o canal carregado daquela nhanha, que nunca vou perceber — nem estudar no Google, não se incomodem — onde é que se localiza a fábrica. Suspeito que algures nos entrefolhos das sinapses. Aqui a humana, pelo menos, não possui espaço para alojar a central de produção noutro local que não esse. Já estou farta de dizer que o meu nariz é pequeno, com canais estreitos (e, já agora que ninguém perguntou, também lindo. Imagine-se que, mesmo não sendo ruiva, longe vá o agoiro, tenho sardas. Umas quantas sardinhas, vá, um pequeno cardume delas, mas estão cá e são só minhas).

Já me perdi. Onde é que eu ia?

Ah, funguei no sentido do exterior, a ver se dava à luz o bicho. E foi a tragédia, o muco a assomar-se na direcção do bigode, a mulher a lutar na diálise entre inspirar o animal para a pulmoneira, ou esvair-se em ranho no meio da calçada. Ah, e sem lenço, pois actualmente utilizo uma mala de mão que cabe na palma da dita e onde, obviamente, não transporto esses extras. Então, fungava e ai Jesus, que o povo vai perceber que este naco, afinal, também segrega secreções. Inspirava e nada de paz interior, era toda uma turbulência, que quase ouvia os gritos de agonia da pequena criatura. 

Pus a máscara. Quero lá saber se já não é obrigatória na rua. 

Na primeira oportunidade, assoei-me violentamente. Mas não olhei “lá para dentro”. Prefiro viver o resto dos meus dias na ilusão de que o coisinho saiu a voar alegremente numa das minhas tentativas de o expulsar. Tudo, menos ter-se afogado em pasta nasal, ou, pior, ter ido morrer/ viver num pulmão dos meus e até se reproduzir cá dentro, caso fosse uma fêmea prenhe. Nunca se sabe.

(Diz o site onde fui ver que o nome colectivo para mosquito é nuvem ou praga. É fazermos a imagem mental do que poderia sair do meu nariz após reprodução da mosquita: uma nuvem de mosquitinhos, e todos temos assegurado um bom resto de dia, como diz o povo que se despede com um “fica”. Parece agradável.)


26/10/2021

And that awkward moment # 66

em que a aula está prestes a começar, a instrutora pergunta ao grupo se é a primeira vez de alguém — por indiscrição ou curiosidade estatística, já que não faz nada com a informação, sequer pergunta se a pessoa sofre de lesões a ter em conta —, há uma que levanta o braço e logo é confrontada com a questão seguinte, que é meramente retórica: “Gostas de dançar?”, ao que ela responde: “Não”.


Ora, este tipo de atitude levanta-me a mim uma série de dúvidas:

1. Existem mais pessoas que, tal como eu, sistemática e matematicamente se enganam na porta?

2. A mulher ouviu mal/ não percebeu a pergunta, tendo pensado que era um daqueles inquéritos chatos a que uma pessoa responde o primeiro desvario que (não) lhe vem à cabeça, ou uma micro-sessão de psicoterapia pré-esforço para descontrair?

3. Terá julgado que estava a responder a um Trivial, e, desconhecendo a resposta para Camembert, pensou que a certa era a mais improvável?

4. Será uma daquelas pessoas que nunca saem/ gabam-se de que nunca saíram da p. da adolescência, e consideram que toda a gente tem que achar piada/ aturar as suas irreverências?

5. Será apenas e tão só genuína e ingenuamente mal educada?

Já nem dancei convenientemente, tal foi o rodopio cerebral que isto me provocou. (Ultimamente, tenho sempre uma boa desculpa para os meus desacertos de passo. Esta foi a deste dia.)

(Uma pessoa desgasta-se.)


22/10/2021

Andar, caminhar, correr

Um dia, disse aqui e aos sete ventos (ou são quatro? Os véus é que são sete, não é?) que detestava correr. Agora, não é que adore, que uma humana também não muda assim da noite para o dia, mas, vá, tolero. Cheguei a uma idade e a um ponto da minha vida em que, se quero, já não digo perder peso, mas não o ganhar, é dar à sola com alma, caso contrário, mais ou menos rapidamente, transformar-me-ei numa senhora estabelecida na vida. E isso preocupa-me, logo, combato. 

O aquecimento estafa-me, mas é-me absolutamente necessário, se não quiser andar nos dias seguintes agarrada a um andarilho. Os primeiros duzentos metros — porque os faço numa subida — esgotam-me. O primeiro quilómetro é-me penoso. Depois entro num roulement até ao primeiro suspiro, que é aquele momento em que o peito se transforma numa caixa de ar frio, e há que deitá-lo todo fora. A partir daí, é lutar contra a secura da garganta (shame on me, corro de boca aberta, só falta deitar a língua de fora, como os cães. Mas acho que tenho fossas nasais demasiado estreitas para conseguir respirar exclusivamente pelo nariz estando em esforço) e pouco mais, porque as pernas aguentam-se bem até ao fim. Os meus piores tempos são sempre nos quilómetros ímpares: primeiro, terceiro, quinto e sétimo. Desmoralizo, aborreço-me, a minha playlist — que me pareceu um conjunto de boas ideias quando a construí — enfada-me. Don't leave me now e If you leave me now, por exemplo, são odes à deprimência, que, ao invés de animarem a mulher, convidam-na antes a parar num beco em posição fetal, a babar-se e aos urros. Tenho que repensar este pormenor.

(Alguém conhece um bom programa pirata, como foi o finado Songr, que dê para importar as músicas e depois passá-las para o mp3? Sim, sou assim tão arcaica, deixem-me. E não me sugiram o Spotify, que não serve para o que eu quero. Agradecida.)

Já corri, sem mérito, prémio ou pompa alguns, contra o cancro da mama, as doenças raríssimas, e, com alguma circunstância, contra o vento, o sol, a chuva (épica molha já este ano, em que regressei ao lar uma lamentável amálgama de carne molhada com cabelos colados, rímel borrado — deixem-me ser como eu sou, o rímel faz parte da minha aerodinâmica — e ténis em galocha improvisada), os ciclistas, os outros corredores (não me atrevo a autoproclamar-me atleta, mas apenas por ser assim destas modéstias absurdas) e as gajas da caminhada, que calçam um par de sapatilhas (eh, condescendi!) e lá vão elas, cheias de gás (gaseificadas!), braços dobrados encostados ao tronco, todas convictas. Aprecio sinceramente o esforço delas, dá para perceber que a grande maioria são senhoras que se obrigaram, a duras penas, a desalapar o quadril do sofá/ fogão/ corda da roupa, e o que estão a fazer é melhor para a saúde delas do que nada. Eu só não faço o mesmo porque fico nervosa por levar o dobro do tempo a percorrer do ponto A ao ponto B, quando posso levar metade. E porque o sofá, o fogão e a corda da roupa — não necessariamente por esta ordem — também estão carinhosamente à minha espera e tenho pavor de os desiludir. 


20/10/2021

A libertação da máscara

A mim, está a correr-me extremamente mal. Abaixo a via respiratória ao léu, viva o véu! (Quem rima sem querer…)

Estou a transformar-me num homem. É só queixas, chiliques e espasmos. Hoje acordei com febre. O termómetro apontava 37,4º, o que, para mim, significa um grau acima do normal, ou seja, dez décimos. (Ou dez décimas, como diz o pessoal das gramas.) Tenho uma tosse cava e funda, daquelas de cuspir os brônquios nos próximos cinco segundos, algo parecido com dor de cabeça (que, longe vá, é coisa que não sei o que é há anos) e ranho, embora discreto. Claro que o meu primeiro pensamento foi dedicado ao covid, aquele vírus, apesar de os sintomas que tive quando o tive terem sido outros. Tomei antipirético, tomei xarope, e depois fiz o teste, a hiperventilar de medo. A sério, vou arrastar-me outra vez para o hospital? De novo TACs, análises, gasimetrias, o oxigénio, o oxímetro!, mas, sobretudo, e em primeiro lugar, aquele auxiliar com vinte e poucos anos que me dizia que eu podia estar à vontade à frente dele porque estava “farto de ver corpos nus”? Gostei de saber, sobretudo apreciei que o petiz dissesse uma coisa destas a uma mulher com idade para ser mãe dele, vestida com um pijama de cadeia feminina e com cara e cabelo de atropelada por um camião cisterna. E será desta que entro para as estatísticas que rebatem todas as certezas científicas? Socorro, não quero morrer, pelo menos não agora, pelo menos não assim! Ai, Lurdes, Lurdinhas!

Deu negativo, não estou grávido. 



19/10/2021

Gostaria muito de ser diferente, e não esta troca-o-passo que sou

Um bocadinho também troca-tintas, mas isso agora não é para aqui chamado.
Tudo começou porque tinha o cartão de entrada no ginásio no porta-luvas de Rosinha e não me lembrei de o meter no saco quando saí do carro. Estava a uns bons cento e cinquenta metros do recinto, saltos altos, eu toda proa a abanar a popa até lá. Só à porta me apercebi da falta do cartão, pedi à entrada um de empréstimo, lá o jovem foi imediato na prestação, mas também naquilo que entendi como uma praticamente óbvia ameaça, elucidando-me de que iria ficar “penalizada” por não sei quanto tempo, impossibilitada de marcar aulas, atirada para a valeta dos utentes de segunda categoria, só faltou dizer-me que teria que ser praxada na sala de treino, encher flexões com um gorilão suado e tatuado às cavalitas até suspirar os pulmões para um tapete. Eu ai que não gosto de ameaças, sei inclusive que configuram um crime p.p. no Código dos Cães (assim conhecido porque todas as normas começam pela palavra “quem”), olho para o relógio e restam-me uns impossíveis (sobretudo com aquelas tamancas calçadas) doze minutos para chegar ao carro e voltar. Acometida por uma luminária, calço meus ténis (ou sapatilhas, chiu), arranco o vestido mesmo à super-herói, dou graças ao Senhor por já ir equipada por baixo, isto tudo a um tempo, fecho o cacifo com o cartão do ginásio e dou corda aos sapatos, que é como quem diz, saí e voltei como se tivesse tomado aquela bebida do boi encarnado: velocíssima. No regresso, de tal qualidade fora o sprint, ainda me sobravam quatro minutos até a aula começar, que aloquei mentalmente para ir fazer um bom chichi, encher a garrafa de água e ir aquecer os tornozelos e as nalgas para a sala. 
Entreguei o cartão ao balcão, e foi aqui que me forniquei. Não sei o que é que me passou pelo presunto, mas achei, com certeza, que o cacifo ia adivinhar que o meu cartão era o correcto para o abrir, apesar de o ter fechado com um outro. E é claro que não abriu. 
Lá corri de volta à portaria, pedi que me devolvessem o cartão emprestado, mas a azeda que estava de plantão naquele momento mostrou-me onde o tinha posto: numa caixa cheia de cartões, todos iguaizinhos uns aos outros, como filhos da mesma mãe. Entrementes, o meu tempo, forças, paciência e nervos a esvairem-se-me poros afora.
E foi assim que fiz uma aula de dança apertadinha para fazer chichi, porém, e em compensação, sem uma gota de água para beber. 

(Como é que abri o cacifo? Fácil: com as pestanas. No fim da aula, fui ao balcão expor o assunto que ali me levava, e o rapaz que me atendeu deu-me uma chave-mestra. Coisa que a azeda não podia ter feito, está bem de ver. Porquê? Vamos lá todos sentar aqui no chão um bocadinho a meditar nas razões dela.)

17/10/2021

A vizinha lá do fundo

é — ou foi — actriz das telenovelas, designadamente aquela dos morangos sem chantilly, pormenor do qual muito me confrange lembrar, uma vez que, quando se mudou para o caixote com telhado comum que passou a partilhar com a gente, deslocou-se propositadamente à minha porta com o intuito de se apresentar, e era ela de olhos esbugalhados e eu sem perceber o motivo de tanto escancaranço, tendo compreendido mais tarde que a explicação era apenas que aqui a xanxa não sabia quem era a vedeta. Não pude — nem posso agora — explicar-lhe que não assisto a semelhantes enredos radiotelevisivos, pois despendo as minhas horas livres com outro telelixo, uns furos abaixo daquele que a vizinha protagonizou. Também não guardo mágoa desse episódio, já que ela se fartou de me mentir, por exemplo quando disse ser mãe de três, quando afinal é de apenas dois (o terceiro é do companheiro e saiu de outra barriga, ou seja, matematicamente, a pessoa estava a considerar os meus, os teus e os nossos, dado que um dos dela também não saiu daquele peny com o qual coabita), claramente a tentar medir pilas comigo, só porque eu sou mãe de quatro (chiu, respeito).

Acontece que esta mamã de todos deixa sacos de cinquenta litros cheios de fraldas de cocó — que eu presumo pertencerem ao mais novo, com coisa de três anos e cerca de um metro e trinta e quatro de altura — na conduta do lixo, que fica exactamente junto à porta cá do lar, algo longínqua da dela, já que habita nos fundilhos do patamar. Portanto, a enorme cria defeca, imagino que tarolos olímpicos, ela guarda aquilo uns dias dentro de casa, e depois vem despejar sacos cheios de calhaus putrefeitos à minha porta. 

Ora, vamos lá a ver: a conduta destina-se apenas a lixo reciclável. Todo o restante deve ser metido cano abaixo, lá naquela portinhola fedorenta. Então, a vizinha, de duas, uma: ou considera a possibilidade de as fraldas do seu pimpolhão serem recicladas (para adubo de plantações de cápsulas de café), ou teme que os sacos entupam a conduta comum. A mim, deixa-me de mãos e pés atados, não me restando alternativa senão enfiar eu mesma cada saco cano abaixo, se não quiser ter meu lar a feder a ETAR. Porque devolvê-los para a porta dela seria a solução para este imbróglio, só que, lá está, eu sou uma senhora, não faço essas coisas. Mais depressa lhe deixo um bacio à porta, a ver se incentivo o desfralde à criança. Que já virá tarde, ainda assim.


14/10/2021

Beijinhos e bumps

Já aqui o disse e reafirmo-o: se há coisa mai boa que a virose nos ofertou, foi acabar com a mania dos dois beijinhos à chegada e à partida, dados de mão beijada — não literalmente — a todo o bicho careta que se cruzava em nossas vidas, às vezes (felizmente) uma única vez. Éramos apresentados a alguém, conhecido de amigo de amigo, e zás, chuac-chuac. Por vezes até nos calhava uma daquelas almas que davam duas cabeçadas, enquanto. Ou duas babadelas, de caminho. Ou que nem davam beijos, era só um menear de cabeça para a esquerda e outro para a direita e nós a ouvirmos apenas o som dos nossos beijinhos, a meio do nada, uma coisa muito triste e solitária. Qual agora, isso acabou. 

No entanto, também não concordo com estes novos cumprimentos, ao murro e à cotovelada — chamam “fist bump” ao primeiro, se calhar o outro é “elbow bump” —, pois prevejo que, em breve, haverá abusos ao nível da intensidade, assim como havia nos apertos de mão, que, já agora, a menina detestava: ora molhados, ora moles, ora só as pontinhas das unhas, ora quebra-ossos, sempre fui muito dada a evitar esses contactos, sabia lá eu onde é que cada qual tinha andado com as mãos, sobretudo depois de ter ido fazer chichi. E cocó.

Então, sugiro, como alternativa a beijos e murros, por exemplo, a vénia das artes marciais. Uma coisa discreta e com distanciamento suficiente para que não soframos um traumatismo craniano cada vez que. Nada de vénias parvas à rainha, não que não as mereça, porém acontece que, no momento da retribuição, muito haveria de me desagradar ter que repuxar as bainhas das saias para os lados e fazer um lunge, correndo o risco de me desequilibrar (e ainda ter que justificar-me ou soprar para algum balão). Pode igualmente ser um aceno ao de leve, um saravá, um aloha, um namasté, um oi, um hei, um oléééé!, o que calhar, até mesmo um tá-se, embora este me ponha um nico exangue das têmporas porque já não sou dessa época. Mas aguento, muito melhor do que chuac-chuac.





11/10/2021

Os animais falam connosco

Molly, registada Pequena Molly num momento de clara incapacidade de antevisão — pois veio a tornar-se um animal enorme —, iniciou um ritual mictório nos lavatórios das casas de banho, dando uso à caixa de areia apenas para a defecação, valha-nos isso. Assim, disse-me ela: “Olha para mim, estou doente.” Pela frequência e quantidades mínimas, rapidamente percebi que se tratava de algo parecido com (ou no mau caminho para) uma infecção urinária. Não precisa de me dizer que é inútil tentar metê-la na gateira para a levar ao vet, a menos que não me importe de ser mordida e arranhada a ponto de ficar sem as veias dos braços e, vá, um olho, com a garantia porém de que, ainda assim, não vou conseguir enfiá-la lá dentro. Compreendo, porque eu própria não o permitiria: aquilo é claustrofóbico e aterrorizador, além do que, o que se segue é uma (curta, é certo) viagem de carro, que ela detesta, e um ambiente estranho com gente igualmente estranha a mexer-lhe no corpo e a fazer-lhe “maldades” — tirar sangue, recolher urina, dar-lhe injecções, quando não — cúmulo dos cúmulos — cortar-lhe as unhas. Da última vez que lá esteve, após épico enclausuramento na caixa de transporte, em que saíram pessoas magoadas (ensanguentadas!) daquela relação, teve que ser metida na jaula das feras (don’t ask). Isto, apenas para ser vacinada.

Posto isto, dirigi-me à clínica, sem gata, expus o problema e trouxe para o lar um anti-inflamatório para senhora dona Molly tomar durante cinco dias, e ainda a marcação de uma consulta para análises e exames para amanhã, terça-feira, às 11:00 horas da madrugada. Já lá vamos.

Diz-me a gata, através de gesto e modo, que não toma medicamento algum, seja em cápsulas (mesmo que abertas e misturadas, nem que seja com filet mignon), em comprimidos desfeitos, ou em líquido. É óbvio que me grita, “Estás louca, queres envenenar-me?”. E então, por pesquisas nos meus já escassos e desgastados neurónios, cheguei à conclusão de que a única “guloseima” à qual ela não resiste de todo, é azeite. Portanto, agora toma todo e qualquer medicamento, desde que desfeito numas gotinhas desse ouro alimentar. Um dos amores da minha vida é, em suma, azeiteira.

A veterinária deu-me uma cápsula de calmante para dar à gata uma hora e meia antes de a levar à consulta. Resta-me apenas a dúvida se efectivamente lha dou, ou se a tomo eu. Melhor, talvez, será abri-la, misturá-la em azeite, e vai metade para cada uma. A minha parte também pode levar vinagre e orégãos, so help me God.


09/10/2021

Conclusões mais ou menos lógicas a que vou chegando com o passar do tempo

1. Quando estou parada num sinal vermelho e, na perpendicular, passa um carro em excesso de velocidade, é certo e sabido que vai abrir o verde para mim, em cerca de quase um segundo.
2. A minha empregada está há nove dias de férias, e agora percebo porquê: o lar esgota-me. É um trabalho que nunca está terminado, e ao qual ninguém bate palminhas. Apesar de tudo isto, apetece-me despedi-la e auto-contratar-me, e logo de imediato tomar a medida de me aumentar salarialmente.
3. Por falar nela, ainda não percebi muito bem por que é que ela diz engives e cólon do útero, mas também é capaz de dizer Inesstagraam e Cronoposst. Da falta de oportunidades ninguém é culpado, mas então também não me esbugalhe os globos quando eu digo Instagrâme, só falta corrigir-me no seu melhor estrangeiro.
4. Os meus chás preferidos foram com os porcos, derivados ao Brexit. Existe um resto em algumas lojas, mas a maior parte dos sabores — designadamente aqueles que eu posso tomar (nada de preto, verde ou branco, se não quiser faleceri) — sumiu do radar. Passaram, imagine-se, a ser considerados artigo importado. Isto é do mais chique que me ocorre dizer hoje.
5. Ao fim de cinco meses de covid, consegui voltar a correr seis quilómetros. Talvez ainda volte aos sete, até mesmo porque pretendo fazer dez (hahahahahaha) para o ano. Porém, estou piamente convicta de que o cansaço nada tem a ver com a esponja em que se tornaram os pulmões, nem com a hora do dia, a idade (até parece mentira, mas arrisco afirmar que estou mais velha um dia todos os dias), a falta de treino, as horas de (falta de) sono, a mood, os ténis, as moscas e o caneco. O (meu) cansaço resume-se a uma coisa tão simples como o tempo, ou seja, o clima. Acima de 23 graus Celsius, ide vossemecês corrê-las por mim, que eu cá vou mas é meter as carnes a assar ao solinho.
6. Fiz a importação do meu certificado de vacinação no dia em que deixou de ser obrigatório apresentá-los no acesso à maior parte dos espaços. Registei. Estou a pensar adquirir uma máscara de ouro cravejadinha de diamantes, topam a ideia?
7. Não me apetece estender mais este lençol, embora tivesse mais três coisas para dizer. Fica para uma próxima.

06/10/2021

And that awkward moment # 65

em que te diriges para a marquesa do senhor doutor, já conformada de que vais exibir-lhe as belezas vergonhas todas, naquela saleta que também podia pertencer a Freud, o psicanalisador — e talvez só essa ligeira, porém aceitável semelhança, é que, eventualmente, explicará a resposta absurda com que o brindaste —, deitas-te desconfortavelmente (as senhoras marquesas, primas das marquises?, são sempre excessivamente estreitas, estão forradas com um papel deslizante, uma pessoa deita-se e parece que vai praticar surf invertido, ou slide & splash, algo assim aquático-marítimo), o homem besunta-te as raparigas com um gel gelado, e então questiona, curioso/ apreensivo/ negacionista (?):

- Fez uma reacção muito exuberante à vacina, não fez? — Isto, enquanto te passa o coiso óptico pela sovaca.

É assim, uma humana vai amedrontada. Venha de lá o primeiro calhau se alguma foi mostrar miudezas e grandezas de ânimo leve, cantando e rindo, sem se lembrar de todas as irmãs que, num exame de mera rotina, ficaram a saber que, afinal. Ainda mais sendo uma ansiosa certificada como esta aqui. Além disso, parecendo que não, a mulher tem os seus pudores. Custa-lhe a ideia de se exibir assim à toa a um estranho qualquer. Quero lá saber se é médico, se tirou diploma, se está careca de ver corpos despidos, se eu não sou a última bolacha do pacote (até sempre sem entender esta expressão, a última não é a esmigalhada/ passada da validade/ gorgulhenta/ demasiado seca/ demasiado mole?), se a sala está numa penumbra calmante. A mim, tudo me enerva. Apetece-me bater as palmas e comandar em voz máscula: “Vamo lá a despachar a coisa, que eu não tenho o dia todo para estas mariquices”. 

Mas não. Ao invés, fiquei tão nervosa com a pergunta, que respondi:

- Não, correu tudo bem. Acontece que eu uso um desodorizante de pedra de alúmen, só que outro dia passei um com álcool e ficou-me a arder muito.

- [O agonizante silêncio de quem, simultaneamente, ignora o que acabou de ouvir, enquanto vasculha na axila alheia à procura de cenas.]

Pronto, era só isto. Vergonha não-alheia. Auto-própria.

04/10/2021

Novas medidas e medições

Matemática, não me falhes agora, também tu!
Fazíamos a nossa dança num lugar marcado no chão, que media três por três, nove quadrados. Eram dezoito lugares na sala.
Com a terceira fase do desconfinamento, reduziram-nos o espaço individual, disse a instrutora, para dois por dois. Eu, por acaso, estou farta de olhar para aquele quadradinho, e sinto que não é maior do que a minha fita métrica da costura: um metro e meio.
De qualquer modo, dois por dois é menos de metade de três por três, e desta aqui é que ninguém me arreda.
De qualquer modo ainda, se antes eram dezoito lugares e agora são trinta e seis, como é que passaram de três para dois metros?
Ainda de qualquer modo, se, efectivamente, os lugares passaram para um metro e meio por um metro e meio, temos agora, nada menos do que uma quarta parte do espaço que tínhamos antes. Qualquer dia, só conseguimos dançar slow, muito agarradinh@s. Nem uma boa lambada.
Talvez deva antes voltar para os bancos da escolinha, ora com licença.


01/10/2021

Mudança cosmética

Alta madrugada, levanto-me da cama, faço o que tenho a fazer para o copo esterilizado, guardo-o no plástico da embalagem, depois na caixa, ponho num saco opaco, visto umas calças de ganga e camiseiro branco, calço umas sabrinas e ala para a rua, ainda o dia é apenas um recém-nascido de bem com a vida, satisfeito e apaziguado. Percorro cem metros e chego ao centro de análises, onde já estão duas pessoas: uma mulher, que pousou o boião da urina no balcão de atendimento, envolto num plástico com uma quantidade tal de fita adesiva, que antevejo a necessidade de utilização de uma motosserra para descartar semelhante embalamento; e um homem, cujo frasco para análise há-de ter contido em tempos o pó de cevada, chicória e centeio do pequeno-almoço de uma família inteira, imagem que me põe a especular por que diabos as detentoras de anatomia que mais complica a urinação para um micro-copo, são precisamente as que cumprem a função, ao passo que aqueles que podiam urinar para uma carica à distância de três metros, o fazem para um jerrican de vidro.

Enquanto a funcionária processa os meus dados — mais uma incrédula perante o nome que consta do meu cartão de beneficiária do seguro, nada menos do que o da zebra do filme infantil “Madagáscar”, não adianta escondê-lo: procurai por Maria Marti, e achais-me —, entra uma rapariguinha apavorada, com o potezinho do chichi na mão, o líquido orgânico visível à transparência. Lembro-me de ter a idade dela e de as agulhas me causarem um frio na barriga, que se estendia pelo corpo e ficava alojado impiedosamente nas extremidades todas. Depois tive filhos.

Duas horas volvidas, regresso ao mesmo local por me ter esquecido de (mais) um papel, nesta que deveria ser a época da informatização. Levo já o pequeno-almoço e o banho tomados, a maquilhagem pregada à cara, o vestido de ganga da minha predilecção e umas sandálias de salto. A mesma funcionária que me atendeu antes não me reconhece. Aponto para as pestanas, agora com o dobro do tamanho, e digo-lhe: “Eu sou a outra que aqui esteve há bocado, ou melhor, eu sou eu, mas em edição revista e melhorada”.

A camuflagem cosmética, como qualquer outra, permite-nos sermos duas, criando um trompe l’oeil (não traduzível aqui para “ilusão de óptica”, pardon mon portugais) aos outros e, sobretudo, a nós mesmas. É um crime perfeito, sem castigo, cometido sucessivamente ao longo de anos.


29/09/2021

A mulher que podia ser minha mãe #4

chega, visivelmente nervosa, à entrada de um dos quatro elevadores do edifício. Na cabeça dela, vem atrasada, como o senhor coelho da Alice maravilhosa, sempre com pressa sabe-se lá para quê. Estou acompanhada por duas filhas, já somos três no elevador — cuja capacidade é de oito almas despenadas —, em não me falhando a matemática da contagem pelos olhos, adquirida ainda anteriormente à efectuada pelos dedos. Hesita se entra connosco, 

Já estão três, comigo quatro —, o miolinho a começar a fritar.

Sim, mas a capacidade é de oito, ainda que vá com metade, quatro é razoável.

Três mais um, é igual a quatro; oito a dividir por dois, é igual a quatro —, claramente que se trata de um raciocínio paralelo com uma qualquer fórmula utilizada na Física Quântica, percebo no pestanejar miudinho, nas reviravoltas dos globos oculares, no murmúrio quatro, somos quatro, que toda ela é combustão, enquanto seguro a porta, entre o incrédula e o expectante. Põe um pé dentro do elevador, Podemos ir juntas, já nos conhecemos há tantos anos, e é no momento em que liberto a célula que ela bate em retirada, Não, é melhor não, e se dirige para outro elevador.

Pareceu-me daquelas situações em que alguém vai apanhar um avião e, por alguma razão, não embarca, e depois a coisa despenha-se. Só não percebi muito bem se era suposto, para que todo aquele episódio fizesse alguma lógica, qual dos elevadores despencar-se, o nosso ou o dela. 

E depois o maluco sou eu.


28/09/2021

Relação de causa-efeito?

Creio que vai sair-me um volátil, porém guinchado, desabafo.

A miúda do andar de cima continua a gritar. Está aos berros desde o início da pandemia. Passou do ano e meio de vida para os três anos, sempre aos guinchos. Gostaria de saber se são as crianças-covid, chamemos-lhes assim — então não há as crianças-galinha e as crianças-lobo? —, que são mais irascíveis do que as de gerações anteriores, ou se sou eu que estou mais intolerante. Desde a praia, ao campo, à montanha, à cidade, à aldeia, para onde quer que me volte, há uma criança aos brados, ou aos silvos,  atingindo agudos insuportáveis ao fino tímpano da comum mortal. Já considerei mesmo se não será antes a minha cabeça que fabrica estes ruídos, só para me irritar a mim. 

Mas não era isto que vinha hoje partilhar. Até comecei bem, contudo a pluma leva-me por caminhos. 

A criança do andar de cima. 

Julgo, não percebendo grande coisa de materiais de construção, menos ainda de Física, que, sendo a água boa condutora do som, as casas de banho, sejam na Buraca ou na Lapa, são “excelentes” locais para — em querendo, e daí as aspas, ou mesmo que não —conhecer um pouco da vida íntima dos vizinhos.

A miúda do andar acima do meu. E o pai da miúda.

Há largos meses que começo os meus dias brindada pelo chinfrim que fazem as cordas vocais da filha e o intestino grosso do pai. Pronto, já disse, agora não posso desdizer. 

Resta-me saber, já que os dois ruídos me entram paredes — chão com tecto — adentro enquanto me maquilho, se existe uma relação de causa-efeito entre o silvo da filha e o flato do pai. Qual provoca qual?, é a enorme questão. A filha desvaria quando o pai se deslarga, ou o homem tem um acesso flatulento quando a criança guincha? Eventualmente, nunca saberei. Ou se, simplesmente, se trata de mera coincidência, por simbiose biológica?

Pergunto-me amiúde, mas (ainda) não me respondo, em que estado estarão os nervos daquela mãe. Imagine-se, se eu, que só moro umas quantas vigas + pladures abaixo, sinto que corro o risco de errar o risco e enfiar o lápis de olhos num olho, que direi dela? Será menos arriscado se não se maquilhar, concluo. 



26/09/2021

26 de Setembro

Muitos, muitos anos no corpo miudinho de pele escura, apoiado na canadiana, cabelo branco como algodão, há-de ter sido por tudo isso que o encarregado da Junta lhe soprou ao ouvido que podia passar à frente na fila para votar. Outra Maria, fico sempre com as Marias, e há sempre muitas, de todas as idades, tamanhos e feitios. Não quis exercer a prioridade, e, no entanto, por não me ter visto — demasiado grande, de calças vermelhas, invisível a esse ponto —, colocou-se à minha frente, e eu permiti, em silêncio. Amarga, a mulher Maria que lhe calhou à frente, virou a cabeça penteada com rolos postos em casa, óculos de aros dourados, nariz pontiagudo e boca desaparecida na ruga da contrariedade, também ela próxima do mesmo motivo de prioridade, Tem que manter a distância de segurança, mas Maria boa — Mariazinha —, não entendeu ou não ouviu o que disse Maria má, pois as pessoas boas vivem noutro comprimento de onda e não escutam, por não captarem, o ruído, ora sicioso, ora num silvo, da maldade. Assim, deixou-se estar, encostada à muleta, a muleta apoiada à parede, enquanto Maria má, sacudindo os ombros e estalando saliva, se afastava o suficiente para não respirar o mesmo ar que a Mariazinha — tanto, mas tanto, que foi ficar quase colada a Maria neutra, que esperava vez à sua frente. 

E eu, Maria inútil, para ali fiquei, calada, desconhecendo-me, toldada de raiva e mágoa, encostada à mesma parede, sem muleta, Mariazinha, podia ser a minha mãe, podia ser a minha mãe.


23/09/2021

Com amigas assim, quem precisa de... (outras) amigas?

Enquanto me hospitalizaram e eu não tinha mais nada para fazer, a não ser, aparentemente, arranjar modos vários de não me darem alta, dei-me a um estudo antropológico das minhas amizades, através das mensagens SMS que recebia, nalguns casos bi-diariamente, noutros penta-diariamente, ou até ad-nauseum-diariamente, tendo chegado à conclusão que sim, talvez, quem sabe, é possível que seja verdade que atrais aquilo que és. (Enfim, isto não pode ser levado ao rigor rigoroso, caso contrário seríamos todas belíssimas, e não somos. Percebem?) Bom, em primeiro lugar, apercebi-me de que tenho muito mais amigas mulheres do que homens. Vá-se lá perceber porquê, os homens não costumam ser meus amiguinhos. Olhem, ide-vos encher de moscardos, já não vão aos meus anos.

Quase posso afirmar que saí do hospital com uma carrada de stress pós-traumático digna de ir directa para a Psiquiatria. As pessoas não têm consciência da profusão de mensagens (e não telefonemas porque cortei o canal logo pela raiz) que uma humana recebe quando internada, às quais não consegue dar vazão, só lhe restando uma de duas alternativas: ou responde, ou ignora. E acontece que grande parte das mensagens contém trinta perguntas, não se contentando o emissor, depois receptor, com um simples: "Estou melhor". É um "Já falaste com o médico?", "Já comeste?", "Já cagaste?", “O que é que surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?”. A sério, pessoas? 

Não consigo, assim de cabeça(da), eleger a best friend forever of das minhas mensageiras, sem que me sinta mal-agradecida ou malévola. Ou injusta, pois a verdade é que tal nem é possível, já que houve duas que ficaram ex aequo na capacidade de serem, como dizer…? Um ferro. Uma mala. Uma sarna.

1. A amiga que todos os dias me mandou mensagem de como estás, à qual respondi, imaginem o que quiserem, pois, indiferentemente do que dissesse, contra-respondia: “É uma recuperação muito lenta”. Imagine-se que a minha resposta à primeira abordagem do dia era: “Estou excelente, aos pulos na cama, já ensaiei o triplo mortal encapado à retaguarda com dupla pirueta”, que sim, lá vinha a contra-resposta pré-fabricada. Um dia enviou-me um longo texto a relatar que ficou presa na varanda e teve que chamar quem passava na rua, mas quem se passou fui eu, e então não dei resposta. Esperava-me uma recuperação muito lenta, nomeadamente deste tipo de interacção;

2. A amiga que todos os dias quis saber notícias, e, tal como a outra, tinha uma contra-resposta-tipo: “O que é que disse o médico?”, porque, convenhamos, ninguém melhor do que o médico — que, por vezes, ainda nem tinha feito a ronda e, quando já, tinha estado comigo, na loucura (não nessa loucura), dez minutos por dia —, sabia como é que eu me sentia. Um dia, à laia de solidariedade na saúde e na doença, disse-me que o marido estava com uma prostatite, e eu, impossibilitada de esgrimir de igual para igual esta espécie de argumento, já que nasci sem próstata, não respondi.

Para elas — se me lessem, mas felizmente que não, pois esta revolta sem reviravolta mágoa há-de passar-me (a tal recuperação muito lenta?) —, mas especialmente para mim, vale o lema: “Se não tens nada de útil ou agradável para dizer, simplesmente mantém-te calado”.


22/09/2021

Às vezes, também eu vivo no limite

Rosinha, minha canoa, transmutou-se, por motivos não óbvios, mas vários, num carro partilhado do lar que acolhe estes ossos que agora aqui escrevem. Meu boi envelheceu drasticamente, talvez nem seja possível arranjar-lhe novo dono, encontrando-se apenas à espera que um meteorito venha dar-lhe paz, o que pode nunca vir a acontecer, pois está jazendo na garagem.

Depois, acontecem episódios destes: pessoa humana liga a ignição de Rosinha, toda lampeira que vai dar um giro, e lê o sinal de falta de combustível. Havia emprestado a viatura a uma das crianças durante a manhã, ou melhor, um dos consortes havia feito uso do bem comum. Quando aquele sinal se ilumina, costuma carregar lá no botão que avisa quantos quilómetros ainda pode percorrer sem ficar apeada de colete reflector vestido e ar compungido numa qualquer estrada da vida. Digamos que deu 0. Zero. Dava para, tipo, minha gente, zero. Zero mais zero, é igual a zero. Podia, em suma, ligar o motor e ficar dentro do carro estacionado, à espera que ele se desligasse naquilo a que os antigos chamavam o peido mestre. 

Raciocinando soluções, ir buscar um jerrican de gasóleo era qualquer coisa de impensável: as quatro bombas mais próximas, equidistantes, todas a mil e quinhentos metros: uma a direito, duas a subir, outra a descer. Três mil metros de saltos altos não me pareceu fazível, pelo que se está mesmo a ver qual das quatro escolhi: se tudo falhasse, era destravar Rosinha e weeeee, lá vai disto. Pois, porque empurrar a coisa, lá está, de saltos altos, nem falecida, quanto mais a vender saúde. 

Enfim, ar condicionado desligado, vidros abertos, um quilómetro e meio de rezas e algumas promessas — nomeadamente, “Apagas-te agora e nunca mais levas Evologic” —, transgressão muito bem efectuada com vista a atalhar caminho, lá levei Rosinha até à manjedoura com tranquilidade. Para ela, porque a pessoa condutora ia nuns nervos tais, que desconhece ainda hoje como é que não entrou em auto-combustão, agravada pela profusão, no local, de combustível, passe o pleonasmo.

Ainda não foi desta que estreei o colete (tamanho XXL, não acho normal. Terei que lhe fazer uns ajustes e personalizá-lo com um cinto, ou assim), nem tive que adoptar aquele semblante de vítima do infortúnio.


20/09/2021

RESPECT

Se acharem que é spoiler, é não lerem # 15

Hum, não sei o que diga. Moí os ossos ao meu povo para que algum deles me acompanhasse a ver esta fita. Quase tive que ameaçar deslargar o lar para todo o sempre, cortar os pulsos (de um deles, não os meus) ou fazer greve de fome até ficar igual à Claudia Schiffer, mas em morena e bela. Está bem que podia bem ter ido sozinha, porém deu-me a birra e queria levar pessoas. Consegui convencer, através de suborno, uma única que se prestou e lá foi comigo. E, no final das contas feitas, apanhámos uma pastilha de duas horas e meia sem intervalo [carinho e amor para o legislador que permitiu o regresso do balde de pipoca à sala, pelo que pude permanecer desmascarada durante todo o filme, a chafurdar-me naquilo], a ponto de praticamente ter-me visto na contingência de ter que lhe pedir desculpas e de a indemnizar, para confirmar a óbvia conclusão de que, para se ter algum sucesso — e (consequente?) queda retumbante ao fim de meia dúzia de anos — no showbiz, há que abraçar as drogas ou ser-se naturalmente um bom borracholas. Parece que o plateau não é para sóbrios.



19/09/2021

Disparidades

Convocada para estar presente numa reunião com o homem do gabinete sem janelas, que toda a gente da minha família (a qual, conforme é sabido, é algo numerosa) — menos eu — já conhecia, entro e a primeira coisa em que reparo — fora o facto de não haver janelas, não sei se já disse —, é que ele tem um braço mais curto do que o outro. Terminada a reunião, comento com quem me acompanhou que não sabia que o homem tinha uma assimetria nos braços, e vá que não fiquei muito espantada que a minha companhia não tivesse em tal reparado, pois que é distraída, pois também que o assunto que nos levava ali era de maior absorção para ela do que para mim. Chegada ao lar, faço uma alusão ao facto, e não é que os restantes elementos da prole — um dos quais jogou à bola durante anos com o referido — me garantem que nunca deram por nada? Pessoas, eu estou a falar de uma diferença de vários centímetros, tendo em conta que o braço esquerdo do homem está em permanente ângulo de noventa graus. Qualquer coisa de evidente, que salta e pula à vista desarmada. Porém, explicações para semelhante mistério, já equacionei N:

1. Vi mal. Estive com ele à frente cerca de meia hora, mas foram trinta minutos de ilusão de óptica/ delírio/ alucinação;

2. Ele estava com uma cãibra ao nível do cotovelo, perfeitamente indisfarçável;

3. O homem comprou um fato num saldo, made in Tiroliro, e o molde de um dos braços era totalmente diferente do outro;

4. O homem teve um pequeno AVC assim que me viu, que basicamente disfarçou como pôde, ou seja, mal;

5. O homem já nasceu assim e eu estou rodeada de distraídos.


17/09/2021

Inoculada = chipada?

Aqui há coisa de dias submeti-me À vacina. [Eu digo vacina com o primeiro A fechado. Estimo que quem diz vácina pondere muito bem como é que pronuncia quando, em vez do C, está um G.] Ia assim meio a medo que demorasse, não a entrada do líquido na chicha, mas entre o ir e o voltar, recobro incluído. Uma desilusão, nada para contar: militares desde a entrada até à saída, parecia que tinha entrado em, sei lá, Cuba, ou então num quartel-general, tudo muito musculado, só faltou baterem continência aqui à idosa, era da maneira em como lhes fazia o mesmo. Logo à chegada, um militar giro, grisalho e vestido de camuflado — olhem, podia ter que se esconder, assim de repente, na mata adjacente ao pavilhão, e ficava logo invisível, enquanto mulher-coragem dava o corpo às balas —, disse-me que não podia deixar-me entrar, mas hahahaha, era só uma piada. Lá dentro, o chão de acesso ao pavilhão muito torto, claro que perguntei ao senhor que ali estava se era para verificarem quem é que chegava ali sóbrio. Preenchido um questionário (Tem febre? Tem caspa? Doem-lhe os rinzes?) num sitinho tipo sala de actividades do jardim de infância, fui encaminhada para o espaço dos leprosos das pessoas que já tiveram covid e, por conseguinte, só merecem uma dose, logo chamada para uma espécie de gabinete, onde uma belíssima e simpatiquérrima militar me inoculou/ me salvou a vida, ou, nas cabeças mais torturadas, me injectou o chip para Alguém me controlar (calma, que eu sou tão interessante, que haverá neste mundo quem o queira fazer), ou, no limite, me transformar num jacaré. Olhe, pode antes ser aquele lagarto da Lacoste?
(Passei vinte e quatro horas com dores no braço e a sensação de estar outra vez covidada, mas depois passou tudo. Estou como nova, tipo botox.) (O FBI ainda não me contactou, não se percebe esta lentidão nas merdas.)

15/09/2021

Eu tenho problemas com médicos # 25

Naquela consulta na médica das miudezas, que uma pessoa mulher só reza para que passe rápido, ou, em alternativa, que o tecto tenha uma réplica das imagens da Capela Sistina, mas que também podia ser um filme da Disney, ou qualquer outra forma de fuga em frente, dizia-me a querida doutora, olhos postos no ecrã e sorriso nos lábios atrás da máscara, que tenho um útero limpo, liso, sem irregularidades nem pólipos nem quistos (só faltou chamar-lhe lindo e maravilhoso, mas eu percebi), muito bem operado por quatro vezes, sem cicatrizes nem aberturas, ou seja, oco, vazio, como se quer, e então, amolecida derivado a tantos elogios uterinos, e um bocado para fazer conversa de circunstância — já que o tecto, ainda por cima, era branco e liso (ninguém merece) —, perguntei:

- Nem pessoas?

- Como?

- Não tem nenhuma pessoa lá dentro?

Não que pudesse ser ou de tal suspeitasse, mas nada como confirmar pela opinião do mecânico que as vielas estão on top.


14/09/2021

O novo anormal

Vamos imaginar que uma pessoa humana se dirige a uma filial do “seu” banco, ou daquele onde deposita, senão as suas esperanças, pelo menos as suas parcas economias, com vista a deixar lá umas notas e, assim, reforçar a possibilidade de a instituição bancária lhe abafar uma módica quantia mensal justificada por, vá, despesas de manutenção, seja lá o que isso for. Então, entra, dirige-se a algo que antes foi um balcão de atendimento ao público, mas que se transformou, num passe de mágica — ou terá sido doble? —, na secretária de quatro pernas de alguém que está supinamente aborrecido com a vida no seu geral e com a entrada de uma freguesa no seu particular, deseja bom dia e confessa que pretende efectuar um depósito em numerário. Que não, que já não fazem semelhante operação, que agora é ali naquelas máquinas. Plantada a dita coitada diante das mesmas, verifica, um nico atónita, que se trata de duas colunas siamesas, sendo a da esquerda muito parecida com um vulgar multibanco e a da direita com um triturador de papel, mas em grande. Pondera em que ranhura há-de enfiar o cartão, que descobre na coluna esquerda, mas não arrisca. Há um botão touch a dizer qualquer coisa como “fazer como na aplicação”, toucha aí e não acontece nada. Depois mira a trituradora, equaciona enfiar ali as notas e seja o que Deus Nosso Senhor quiser, mas debate-se interiormente com a possibilidade de a massa lhe sair feita em esparguete por algum buraco invisível, e demove-se. 

Imaginemos que a cena ainda durou o quê? Vá, entre três e quatro minutos. Sem manual de instruções, sem que o funcionário desalapasse a peida da cadeira (Facebook oblige), sem qualquer orientação vinda do Além, ala que se faz tarde, mais vale meter o conteúdo dos bolsos no colchão, que ao menos a humana sabe como fazer e não lhe come comissão nenhuma. Como antigamente, acrescente-se.

11/09/2021

Onde andavas tu?

Em casa. Nesse tempo, eu era feita do material de uma bolha protectora. Tinha um bebé com um ano, que tinha acabado de almoçar e estava a deitá-lo para a sesta. Tinha uma menina com dois anos e meio, uma com quase cinco  — que tinha rachado os queixos dias antes e não parava de pular (ainda hoje, minha cabrinha Mimi) — e uma com quase sete. O mundo mudava lá fora, mas, não fora o telefonema de uma comadre das minhas, e não teria sabido de nada. Desconheço por quanto tempo mais duraria a minha ignorância, mas estou certa que, se soubesse o que sei hoje, nunca teria deixado rebentar a querida bolha.

(Curiosamente, o dia 11 de Setembro estava — e está — gravado no meu coração como a DPP de abertura e encerramento da minha maternidade.)


09/09/2021

Não lhe dês peixe

A história andou sempre à volta de um carreto no bolso, que o segurança do supermercado viu, sabe-se lá se à transparência, se tinha mesmo assistido à prática do furto, era para uma cana de pesca do homem já velhinho, não levava mais nada quando passou a linha de caixa sem pagar, nem um peixe, nem uma côdea, só mesmo o carreto, e então escutei o estrondo do silêncio na sala quando ele explicou que era para ver se conseguia pescar alguma coisinha para comer.


08/09/2021

Faça chuva ou faça sol

Primeiro, apenas uns pingos que diz que só molham os tolos, ia já a caminho do meu destino, estrada fora, bem sozinha, mas não para levar o lanche à minha avozinha, nem descalça para a fonte pela verdura, lá ia eu, e a água em gotas a cair-me na cabeça, nos braços e nas pernas à mostra, mas quem me mandou sair de vestido branco e leve como um véu, com um céu óbvio de chumbo? Cheguei bem borrifada, como antigamente se punha a roupa "boa para o ferro" — havia até uns frascos de plástico que diziam "Borrifador", não fosse uma pessoa pequena confundir aquilo com uma bisnaga de Carnaval —, aviei-me dos avios que ali me levavam, mas, à saída, já caía água a jorros lá de cima, sem sequer alguém avisar "água vai". O senhor que veio lá da terra das especiarias (que ainda não percebi se Índia ou Bangladesh, pois fala um Português enviesado que não responde às minhas dúvidas) emprestou-me um guarda-chuva que daria para guarda-sol, tamanho era o tamanho dele, e deste modo voltava para o lar quando descobri, debaixo de umas arcadas, uma mulher encharcada, feita pássaro apanhado na cheia, tiritando discretamente, e então meti-a debaixo do guarda-chuvasol e deixei-a no destino dela, não seca porque não há milagres, mas cheia de luz e festa por ter tido semelhante sorte, e percorri os poucos metros que me faltavam, eu sim inundada até aos ossos — parece que o chapéu encolheu entretanto, e o distanciamento social imposto só deu pano que chegasse para uma, que foi ela —, não sei se de água, não sei se de sol. 

06/09/2021

A mulher que podia ser minha mãe #3

quis calçar-me uns sapatinhos todos rotos e eu não deixei. Tinha acabado de chegar e vinha cheia de excesso de informação, como sempre, mas, naquele dia, eram gritos que saíam de toda ela: leggings de flores garridas, top rosa salmão e casaquinho rosa cerise em cima, brincos e óculos de sol de plástico vermelhos, e a máscara, isso é que eu não perdoo, a máscara bordeaux, cirúrgica, descartável. Expliquei que os sapatinhos, com que ela pretendia vestir as minhas sandálias para as proteger do vírus, tinham furos dos saltos dos sapatos de outra mulher, e que, por conseguinte, aquilo era uma falta de higiene. Ficou maluca, destravou a língua, argumentou que os lava com lixívia e álcool-gel, que os manda vir do estrangeiro, que, caso tivesse que dar um par a cada pessoa que ali entrasse, teria que acrescentar cinco euros à conta. Depois fiquei maluca eu, respondi-lhe que essa lavagem fica mais cara do que comprar pares novos, que se vendem no chinês de Alvalade, e que, para a próxima vez, levo um par comprado lá por mim.


04/09/2021

A mulher que podia ser minha mãe #2

pergunta-me, à chegada e à queima-roupa, se estou grávida. Fica imediatamente atarantada com a minha não sei se exagerada incredulidade, de tal forma que não respondo. Levo um vestido de corte império, que me faz napoleónica e bonapártica, mas também barriguda. Posso igualmente estar com os enchidos cheios, mas não será de ar daquele que sai intempestivamente (porque eu sou uma senhora e não faço essas coisas), ou, sendo, há-de sair integralmente por cima (discretamente, minhas mini-narinas afora, em ventinhos paralelos), se Deus quiser e o discurso de absurdas desculpas dela não continuar ao ritmo alucinante que já leva no embalo. Afirma agora  que estou mais magra, eu que a balança diz que não, e lembro-me que aquele mesmo vestido tem catorze anos e ainda cá mora. Nunca perguntes a uma gorda nem a uma multípara cujo filho mais novo tem vinte e um anos se está grávida. Efectivamente, nunca perguntes.



31/08/2021

A mulher que podia ser minha mãe

disse-me, do alto da sua sétima década, cabelo negro asa-de-corvo, que nunca perguntei se pintado, porque evito as retóricas e existem indelicadezas que ainda não cometo,

Como é que pensa que eu tenho este cabelo lindo e brilhante?

[Eu, que não pensei, ponho-me, agora sim, a cogitar que talvez vá dizer-me a marca da tinta, pode ser que me revele o nome do alquimista, quem sabe um truque caseiro, um ovo esmagado no cocuruto, um chá fervido — e logo arrefecido, digo eu — esfregado na raiz, pensamentos meus bailando bachata, enquanto ela sorve a minha expectativa.]

Porque tomo todos os dias ácido hialurónico pela boca.



27/08/2021

United Colors

Ando a sentir-me posta à margem, de lado, ou de parte, escolhei: está agendada uma actividade muito gira, lá nas aulas de dança que frequento — cada vez com menos gás (não metano) —, à qual não comparecerei, e porquê? Porque não quero. Só que sinto esta exclusão: todas muito excitadas, a pagarem um pequeno balúrdio por uma t-shirt que nunca voltarão a usar, eu de mona à banda, só à espera que o momento publicitário acabe o mais rapidamente possível — o instrutor reza sempre a mesma missa antes, a meio — no meio do nada — e no fim de cada aula, que vai ser muito giro, que nos outros anos foi muito bom, mas

mas que vamos sair de lá muito sujas, e isso, para mim, é o turn off, é o gatilho para acabar de vez com a minha vontade de festa. A actividade envolve tintas em pó, uma espécie de Color Run, mas a dançar, I am sorry mas perdi a pica só de me imaginar toda cagada de verde e amarelo a entrar em Rosinha, minha canoa, e depois a deixar um rasto colorido até à minha porta, fora o banho com palha de aço a que teria que me sujeitar ao fim de um dia de estafadeira a chacoalhar o quadril. Já não há cu.


26/08/2021

A mim dá-me revolta

fazer uma compra e ter que pagar a embalagem/ saco/ envelope (caso dos da farmácia), mesmo que de papel, ou melhor, na hipótese de os trazer comigo, ter que esse coisinho fazer parte da minha conta, "porque eles agora exigem". Por eles entenda-se a boa da ASAE.

Até parece que as embalagens não fizeram sempre parte do preço dos artigos. Só quem não faz compras regularmente é que não sabe que uma lata de salsichas custa menos do que um frasco cheio delas com o mesmo peso. E que, por exemplo, se a compra for de uma peça de roupa, a porra do saco já estava mais que incluída no preço da compra. Não será uma ingenuidade acharmos que o retalhista paga as embalagens que fornece, e não é sobre a cabeça do consumidor final que rebenta sempre a bomboka?

Ou seja, agora pagamos o saco duas vezes: uma, no preço do artigo, a outra sobre a conta final. Parecem os idos tempos em que eclodiu o IVA, e em que chegávamos ao balcão e nos acrescentavam o valor do imposto. E até sabíamos que esse valor já estava contemplado no preço final, só que o acrescentavam de novo aquando do pagamento. Ou seja, pagávamos (X + 23%) + 23%. 

Assim como agora pagamos (X — sendo que X = dobro do preço que o comerciante pagou ao fabricante — + 23% + € 0,5) + 23% + € 0,5. Uma merda cujo "valor" começou em 5, é vendida por 10 + 2,3 + 2,3 + 0,5 + 0,5, ou seja, por 15,6.

(Aquela indelével e insondável sensação de que este raciocínio pode estar inquinado.)

Gatunos.

Hoje comprei uma peça de roupa. A funcionária — que já estava azeda comigo desde que entrei na loja, oh, karma! — perguntou-me se era para oferta, disse-lhe que sim, então questionou se queria um saco,

Não, se tiver que o pagar. Qual é a alternativa que tenho?

Uma caixa. São 35 cêntimos.

E que alternativa tenho eu, se não quiser pagar a caixa?

Temos sacos por 25 cêntimos e sacos por 50 cêntimos.

E, caso não queira levar nenhum dos três, levo a camisa debaixo do braço?

[Sobrancelhas olimpicamente elevadas até à raiz do cabelo.]

Saí da loja com a caixa na mão. Como se a loja não tivesse todo o interesse em que eu andasse pelo shopping a pavonear a marca. Deviam pagar-me para isso, isso sim.

O senhor da farmácia contou-me que os sacos/ envelopes que distribuem pelos clientes com os medicamentos/ cremes/ chuchas e outros artigos de diversão, lhes são oferecidos, mas têm que, obrigatoriamente, por lei, cobrar um cêntimo por cada um. Por uma questão de princípio, saí de lá com a escova de dentes e as hormonas na mão, pois não cabiam na minúscula malinha que agora uso.

(Para combater o desperdício, dizem eles. Qual desperdício, se até a medida de proibir os sacos de plástico, que havia de ter entrado em vigor no dia 1 de Julho já ficou em stand by?)