29/06/2021

Ela fala tanto # 31

E não pode ver nada. Agora também quer ter tensão alta. Já não bastava a alergia aos metais. E as unhas encarnado-sangue. E ter posto ao filho o nome do meu. Fora o resto, que é tudo e mais alguma coisa.

Liga-me às 8:22 da madrugada, eu já na lufa-lufa, porém quase desacordada, Bom dia, desculpe, mas não me estou a sentir nada bem, passei toda a noite a vomitar [vá que, desta vez, sabe-se lá porquê, me poupou ao pormenor da diarreia], vou ao hospital ver o que é que tenho, Será covid?, pergunta aqui a parva, Acho que não, isto foram umas coxinhas de frango que eu comi no fim-de-semana e que me provocaram uma subida da tensão arterial, já é a quarta vez que isto me acontece [o animal selvagem que me habita a congeminar em ladainha: À primeira caem todos, à segunda cai quem quer, à terceira cai quem é parvo, à quarta cai... a Sandra! Comi pipocas ao almoço, comi pipocas ao jantar...], nem me consigo ter de pé, não tenho reacção no corpo [a tal descrição que ela faz para todas as suas maleitas e desaires, que vão da amigdalite até à cólica intestinal, passando pelas inúmeras quedas e pancadas que lhe acontecem. Não ter reacção no corpo significa exactamente o quê? Que faleceu? É que eu, na minha justa e correctíssima ignorância, desconhecia que é suposto o corpo ter reacção. Mas siga], agora estou na [nome de uma firma para a qual trabalha quando sai cá do lar, que fica a cem metros de distância] a beber um chá aqui com as minhas colegas [???] a ver se melhoro. 

Confesso que já não ouvi muito mais, porque tinha o cérebro a chiar camas de lavado, duas casas-de-banho, chegada e arrumação das compras do mês, almoço, máquina de roupa, recolher toda a que estendi ontem, estender a que lavar hoje, dobrar o que não seja para o ferro, compras, jantar. 

Portanto: minha madame passou mal todo o fim-de-semana derivados às coxas, mas ainda se arrastou até perto da minha casa, quase uma hora antes do horário de entrada (please, explain), isto tudo sem reacção no corpo. Se eu não sou uma cavala, que havia de lhe agradecer a intenção, mas não o fiz?

Moral da história: foi ao hospital, deram-lhe uma pica, mandaram-na para casa sem baixa, mas hoje ainda não pôde trabalhar, porque continuava muito zonza e com a cabeça a explodir. (Não vamos fazer a imagem mental, está bem?)

Em suma: mandei-a meter baixa. É para isso que lhe pago a Segurança Social e não há cá mais merdas. Sim, ponho com fervor a possibilidade de me ter tornado execrável. Foi do covid. Não, afinal não: foram vinte e três anos a levar com grupos, sempre à sexta e à segunda. Quando ela voltar, terei o meu corpo sem reacção. E a minha cara. E os meus ouvidos, para os intermináveis relatos que me faz de tudo o que lhe acontece na vida, e que me interessa, vamos lá a ver... zero, vírgula, zero, zero... zero.


02/06/2021

Afinal, a anti-social sou eu

Por mais que pense nisso — e confesso que o faço amiúde —, não consigo decidir qual das três foi a maior provação a que me vi sujeita durante a fase aguda do meu Covid: aquela cólica que me fez desmaiar de dor, ainda em casa; o tamponamento pós epistaxe, de que já aqui falei; uma das minhas três companheiras de enfermaria. E ando rés-vés para decidir por esta última. 

Nos primeiros quatro dias, fiquei por lá sozinha, eu e três camas vazias (e não, não sofro de solidões dessas, estava lindamente), que até parecia que estava num privado, ai tu queres ver que me enganei na porta e vim parar à Luz, socorro, accionem-me o seguro! Depois puseram uma senhora numa das camas, que era porreira, mas fazia videochamadas em toooodas as refeições e chamava ao vírus Covi. Quis explicar-lhe que COVID é um acrónimo para Coronavirus Disease, mas contive-me sempre. Estou a ficar bastante madura, eu, quando calha. Dois dias depois, instalaram mais duas: a humana de que falarei a seguir, e uma outra, que praticamente não falava, fazia telefonemas em surdina e dormia. Portanto, enfermaria cheia, ou melhor, super-cheia, já que a que me punha nervosa ocupava um espaço desmesurado, não só fisicamente falando, como também pela atitude da mulher. Ou seja, tive a oportunidade de conhecer uma pessoa que conseguia concentrar em apenas uma só — ela própria — tudo o que eu detesto num ser humano (embora tenha que admitir que ela me apanhou talvez nos piores quatro dias que ali passei, clinicamente falando, pelo que a minha visão (turva)/ paciência (zero)/ tolerância (outro zero)/ sentido crítico (cem) também podiam estar adulterados): entrou numa surpreendente e deslocada expansão de alegria, equipou-se com o pijama do hospital, deitou-se na cama e desatou a conversar, em profuso e compacto monólogo, com as outras três — de entre as quais, aqui a bruta — que ali estavam, todas mais ou menos obrigadas. 

Um - Esta pessoa começa toda e qualquer frase por "eu". Naquele caso, era "Eu sou..." e depois lá vinha um auto-elogio qualquer, do género uma força da natureza; muito activa; super-animada; incapaz de estar quieta. [E calada, acrescentaria eu, humildemente.];

Dois - Esta pessoa impinge a história da sua vida a perfeitos desconhecidos, quando esse é um assunto com zero interesse e pelo qual ninguém perguntou;

Três - Esta pessoa faz videochamadas. Numa enfermaria. Aos altos gritos. Para uma família que grita com ela. E faz ruídos enquanto grita (por exemplo, num momento, um dos filhos varria um chão de obra, coisa para se difundir em todo o espaço do lado de cá). Ou liga para as amigas, que estão na esplanada. Todas aos gritos. Ali às tantas, perguntei se aquilo era mesmo necessário, mas não obtive resposta;

Quatro - Esta pessoa — menina para os seus noventa quilos, apesar de, segundo ela, ser professora de Educação Física — disse aos médicos (por duas vezes, ouvi eu) que, desde que ali havia chegado, já estava farta de fazer ginástica. Óbvio que os médicos nem resposta deram, que imagem mental se faz de uma declaração deste tipo? O odre a fazer um mortal encarpado à retaguarda em direcção à minha cama, que era em frente? Eu sei, porque estive sempre acordada enquanto ela também esteve, que o máximo de ginástica que o panzer fez foi a rotação dos tornozelos, em breves sessenta segundos, sentada na caminha. 

Cinco - Esta pessoa obedece ao protótipo da que vai para casa/ trabalho/ vida em geral gabar-se que era a animação daquela enfermaria. Não. Helena. foste. responsável. pela. morte. de. vários. neurónios. meus. e. também. por. taquicardias. e. subidas. da. minha. tensão. arterial. e. da. febre. Assume. só.

No dia em que teve alta, e uma vez que a ambulância que a levava a casa se atrasou um pouco e logo fiz filmes de que ela poderia ficar mais um dia, congeminei assassiná-la. Mais umas horas com semelhante seca, seria, garantidamente, a morte de alguém ali dentro: a dela, que, ou saía pela porta, ou saía pela janela, ou a minha, de catatonia.