13/10/2020

Chatos do nosso Portugal # 2

Prequela: a pessoa humana, actualmente, parte coisas. Ora porque se lhe escapam das manitas, ora porque deslizam nas superfícies onde as coloca, ora porque ganham perninhas e se amandam precipícios abaixo. Tem sido um manancial de prejuízos só à custa destas lindas e pequenas mãos de manteiga, que talvez a solução passe por uni-las e louva-a-Deus, ficar quietinha num canto, a meditar.

Então, desde que tirei o ortodôntico, já estraçalhei dois de contenção, os chamados goteiras, nocturnos, feitos de um acrílico (supõe-se que) resistente à mordida de um cão. Digo eu. Enfim, e isto não é uma ameaça, não quereis levar uma dentada aqui da delicada.

Com vista a fazer moldes para o terceiro plástico dentário, lá fui ao consultório do dentista dos olhos bonitos. Quem me atendeu foi Sónia, a mesma que, em tempos, e sem que eu jamais tivesse alcançado porquê, me quis assassinar por asfixia, com recurso ao aspirador de saliva. Desde que casou, está mais calma, ou, pelo menos, suspendeu por uns tempos as intenções homicidas que me dirigia. Quando entrei, sabia de antemão que o doutor não estaria presente, e que os moldes seriam feitos pela assistente. Muito bem. Esperei talvez cinco minutos na sala, após os quais Sónia me chamou, sentei-me lá na cadeira, ela pôs-me o babete e disse-me que bochechasse com “aquela solução”, durante trinta segundos (que ela não controlou - lá está, deve querer que eu morra -, mas eu sim: contei até sessenta a correr muito), que é água oxigenada. Também podia ser éter sulfúrico, que saberia sempre a chichi de guaxinim.

Vai ela, desata a conversar. Falou-me da virose que por aí anda, da sua anemia, dos seus ataques de pânico, da mãe, da vida. Isto, atrás de duas máscaras (bico de pato e cirúrgica), debaixo de duas toucas, e sob uma bata de plástico, cujas luvas descartáveis tapavam os punhos. Nem lhe olhei para os pés, não fosse estar descalça.

Ao cabo de vinte e cinco minutos de blás, o que é que eu pensei? O que qualquer pessoa magra, gira e normal pensaria: que aquilo era para “Os Apanhados”. Então, perguntei, estupefacta: “Afinal é o doutor que vai fazer os meus moldes?”, e ela, singela: “Não, sou eu. É que eu falo muito e gosto muito de falar consigo”. E levou cinco minutos a fazer os moldes, recorrendo a uma plasticina amarela com sabor a baunilha, que me colou uma forma de inox aos dentes e depois custou caro a descolar, estava mesmo a ver que ia passar o resto dos meus dias com aquilo agarrado à cara.

Vou passar a cobrar as consultas de psicoterapia que dou, desde que me conheço, completamente pro bono.



09/10/2020

Mr. Blogger dá nas duras

De há uns tempos para cá que reparo que deixou de ser possível editar um post, nem que seja para lhe acrescentar uma vírgula, que esse mesmo texto aparece como recentemente publicado, ainda que já o tenha sido há dias/ décadas.

Já vi começar por menos.


Epifanias que me dão

É que, qualquer dia, levo uma destas ideias, senão brilhantes, pelo menos luzidias, a um Shark Tank qualquer, atiro lá para o charco tanque uma delas, e saio de lá em ombros, podres da rica.

Estava eu outro dia parada num dos muitos semáforos vermelhos com que a vida me brinda diariamente, ocupando para aí a quinta posição, mais minha Rosinha, sabendo de antemão que, assim que abrisse o verde, ainda ficaria parada no vermelho mais uma vez - porque ninguém tem a primeira engatada, tanto na manete como na tola, e a mensagem de que já abriu o verde leva cerca de vinte segundos a chegar ao cérebro -, quando a seguinte luz baixou nas minhas sinapses: então e se, no preciso momento em que acende o verde no semáforo, o próprio emitisse um som suficientemente alto, indiscutível, inconfundível, de que é para avançar? Algo como um mugido, um apito insuportável ao ouvido humano, um estilho de feedback, algo capaz de acordar os mortos. As energias que isto não poupava: o primeiro da fila, acordado do torpor e sonhos bons em que se mergulha nos semáforos, o segundo a não ter que dar à buzina, os restantes a não terem que ranger dentes e proferir vernáculos indecentes. Toda uma poupança.


(Também tenho na calha lançar a moda da roupa amarrotada, para nos livrar do ferro quando as criadas estão de folga/ de férias/ de burro.)

(A minha, durante o ano de 2020, terá trabalhado nove meses e ganho catorze ordenados. Os restantes cinco, se não me falha a matemática, tê-los-ei trabalhado eu. Directamente para a categoria “só a mim não me saem empregos destes”.)


02/10/2020

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 62

Eram 10:00 da madrugada, já eu pagava as minhas singelas comprinhas numa caixa rápida -, seis ou sete pequenas coisas e uma coluna de papel higiénico, com trinta e tal rolos. Depois pus-me a ensacar. (Um dia vou conseguir meter as compras nos sacos - por sua vez colocados num cubículo acrílico onde cabem, na melhor das hipóteses, dois pacotes de manteiga -, à medida que as registo.) Acabara a tarefa há menos de nada quando me surge pela esquerda um idoso impaciente - sei lá com o quê, visto que, ao lado da que eu ocupava, a outra caixa se encontrava vazia e ele podia perfeitamente tê-la utilizado -, que exclama: Raio da velha, que vem para aqui empatar isto

Por acaso, ocorreu-me que fosse comigo, mas, ou porque ainda estava numa hora zen do dia, ou pelo efeito da surpresa, nem me dei ao trabalho de verificar se, efectivamente. Segui então o meu caminho, rampa abaixo, rumo a Rosinha e à minha vida sem máscara. Carregava nesse momento o peso dos trinta e tal rolos de papel higiénico nos ombros, quando o mesmo coiso passa por mim - apesar de ter outra rampa disponível, embora parada, ao lado -, dá-me um suave encontrão (pessoas que desconhecem o conceito de distanciamento social), e dá-me também vistas para ficar a observar bem o espécime: magro, apressado, agarrado, sobretudo à única compra que fora ali fazer: uma garrafa de tinto, provavelmente o seu (primeiro?) biberon do dia. 

Que trágico. 

(Estimo que se fornique.)

[É verdade, não tenho problemas em relatar que alguém me chamou velha com pouco mais de cinquenta anos. Esta pode ter sido a primeira de muitas. Pelo menos, não venho para aqui dar a entender que sou mais nova do que efectivamente sou. Desde os trinta e poucos que sei que quem me chama "menina" ou "jovem", ou quer vender-me, ou quer pedir-me alguma coisa, designadamente que eu não quero comprar/ dar.]

#fuckcoerência