29/01/2021

Vai uma Maria a votos

Então, tudo muito animado cá no bairro, vai à vontade, que está tranquilo, a fila vai até ao Correio [cinquenta metros], mas anda rápido, e a pessoa lá meteu calcanhares a caminho, pois que até nem chovia nem fazia sol, já tinha amandado a mensagem short lá para o 3838 e ele havia respondido que era para me dirigir para a mesa 45, cartã de cidadã numa mão, caneta de plástico (porque sou alérgica a tudo o que sejam metais, senão teria levado a minha Cross) do Van Gogh (que entretanto perdi no supermercado, até já fui aos perdidos e achados saber dela, "é que perdi aqui uma caneta de plástico, mas gostava muito dela, era assim azul com umas amendoeiras em flor", raisparta que ninguém me leva a sério, há-de ter sido castigo porque votei sem convicção nenhuma e isso pode ter malfadado a minha caneta bonita) na outra, chego lá e a bicha estava bem acima dos Correios [vinte e cinco metros] e andava a trote, rapidamente me meti no recinto votador, e então mandaram-me parar e ficar especada à espera que chamassem a minha sala, que ficava alojada no primeiro andar. Vinha a senhora que gritava números, qual leiloeira, qual bingo, qual cauteleira, até parece que cantava, 42, 43, 44, 46, e depois voltava, 42, 43, 44, 46, e eu ai queres ver que esta não sabe contar seguido, só salteado, e salteia-me sempre o 45?, e era vê-las a passar, entendi eu que eram tudo Marias, e todas a passar-me à frente, logo a mim, que, nos últimos meses, mais não tenho feito senão meter-me em bichas, várias por dia, e, minha senhora, eu conheço os meus direitos. Tendo em conta estas premissas, subi as escadas e diz-me a cauteleira: Onde é que a senhora vai?, esclareço-a: Vou votar à 45 | A senhora tem que esperar que eu chame a 45 | Pois, mas como não chama, isto há mais de cinco minutos [que é, como se sabe, uma eternidade em termos de bicha], resolvi vir andando. Afinal que não podia, pois a minha sala, toda ela recheada de Marias recenseadas, estava demorada por esse motivo.

[Hã?]

Explicações possíveis:

1. A sala das Marias tinha mais eleitoras inscritas do que as outras salas;

2. Todas as Marias foram votar à mesma hora;

3. Houve uma Maria que encravou aquilo tudo imediatamente antes de mim - ou porque desmaiou, ou porque lhe deu a vontade de ir fazer cocó quando estava a desenhar a cruzinha -, como acontece em quase todas as bichas em que me meto: é o pagador de contas no multibanco, é a que se esquece do pin na caixa do supermercado, é o sistema que vai abaixo nas porras todas;

4. Todos e apenas os elementos da mesa das Marias tinham uma performance assaz lenta no que toca a dar andamento à tarefa de proporcionar o voto ao concidadão; 

5. Várias Marias passaram à minha frente, e a fiscala permitiu.

Conclusão inexorável: eu sou uma pessoa que atrai.

20/01/2021

Foge-me o pé para o chinelo (Prada)

É todo o ano a usar Havaianas*, ora na praia, ora em casa, ora na piscina, ora. São, portanto, um bem de primeira necessidade para a pessoa humana, que justifica mesmo a prática de algumas ilegalidades, como veremos adiante. Não tenho culpa que o Governo da República onde habito não contemple casos como o meu. 

As minhas Havaianas são pretas, de cunha alta (6 cm), número 38 - o que se explica pelo facto de o chinelo dever ser sempre maior do que o pé, para poder andar à vontade sem estrangular os dois primeiros dedos na separação e também para que o calcanhar não saia sola afora, o que é, como se sabe, vergonhoso. 

As que tinha, rebentaram numa das presilhas, pelo que urgiu adquirir outras. Confinada, eis que me epifanou a ideia do OLX. Sem mais delongas, contactei uma vendedora, que tinha umas novas para venda, porém mora em Odivelas, segundo julga ela. Eu está bem, para cá a morada, aí vai disto, afinal para Caneças. Nunca tinha frequentado, e julgo que jamais retornarei a semelhante lugar, designadamente porque o caminho é algo inóspito. Ainda num dos fins de semana de confinamento e proibição de circulação entre concelhos, confesso que me meti à estrada e perdi a conta a quantos concelhos atravessei. Literalmente: o GPS mandou-me por uma A qualquer, ou talvez um IP, curvas e contra-curvas e lombas com mais curvas, daquelas estradecas que parecem um exame de condução, noite cerrada e zero luzes. Até os máximos liguei, sob pena de me espetar num daqueles inesperados e atrevidos caracóis. Depois disso, atravessei uma serra, no fim da qual dei com uma localidade, então talvez Caneças propriamente dita. Chegada à porta da vendedora, recebi as Havaianas e nem protestei quando verifiquei que, afinal, eram rasas ao chão, pois a verdade é que só queria raspar-me dali para fora, antes que um túnel engolisse minha Rosinha e eu me finasse estupidamente com a desculpa de uma porcaria de uns xanatos e ainda me metessem na pira crematória com eles calçados

Desapontada, mas não desistente, vai de mandar vir as Havaianas do site da marca. Tive todo o cuidado em escolher, tanto que mandei vir com cunha e tudo. Sabia lá eu que existem dois tamanhos de cunha. Sabia lá eu que me mandavam para casa um par com uma cunha tão baixa (3 cm). 

Já com dois pares na minha posse, teimosa que nem um chifre, voltei ao OLX. Contactei um vendedor que, combinado o encontro, me apareceu com umas Havaianas cinzentas, número abaixo. Essas vá que já não comprei, apesar do ar desolado com que o abandonei no meio da rua. 

Neste momento, encontro-me em conversações com uma outra vendedora, que tem à venda umas azuis escuras e umas roxas (mas, caso ainda não tenha ficado suficientemente claro, já estou por tudo, além do que estou a atingir uma idade em que posso, até usar Havaianas roxas), mas não conseguimos encontrar-nos, dadas as invisíveis barreiras que nos impedem. E ando também em monólogos com uma outra, que tem as pretas à venda, porém não responde às minhas interpelações.

Não sei se algum dia terei as minhas Havaianas pretas com cunha de seis centímetros. Mas a demanda por elas certamente prosseguirá.


* NMPPI

06/01/2021

And that awkward moment # 61

em que dás entrada numa biblioteca municipal, pedes para requisitar um livro e é toda uma aragem gelada que te envolve, não só porque o espaço é frio - empedrado e branco -, como também porque as funcionárias hão-de ter sido retiradas de um qualquer filme britânico de crime e mistério, e é sempre um pesadelinho cruzar aquele portão: porque respondem ao teu boa tarde com um suspiro em forma de peido-mestre, porque ficam soberanamente contrariadas com o facto de - imagine-se - requisitares um livro, porque os entraves são sempre tantos, que só te apetece desistir antes de entrares. Desta vez, saíram-me na rifa duas senhoras sem idade, uma gorducha de cabelo roxo e raiz branca, a outra directamente sacada de uma sacristia, a rata, esganada, ossos malares proeminentes, óculos de massa grossos, cabelo fino colado ao crânio, em nada me surpreenderia se sacasse de uma navalhinha enquanto se benzia e me dissesse: "Vou cortar os pulsos, só ainda não decidi se os meus ou os teus". 

Chegadas mais ou menos a acordo quanto ao livro e remota possibilidade de o transportar dali para fora - porque há que preencher uma ficha com o nome do requisitado, editora, nome da requisitante, contactos, apresentação do cartão de cidadã, e mais mil vénias e continências, diz-me a mulher de cera, com o cabelito colado à testa, a escorrer gordura: 

Não sei se conhece as novas regras aqui da biblioteca. 

Cá para mim: "Queres ver que ainda tenho que fazer o pino contra a parede e depois resolver um problema de Física Quântica?".

Não sei, não. 

O livro que a senhora requisitou está numa estante, dentro de uma sala considerada contaminada... 

[Atónita. Exangue.]

... porque tem pessoas.

"Ah, as pessoas humanas..."

"If there's something strange in your neigborhood | Who you're gonna call?"

Então, o livro vai ficar de quarentena durante três dias.

"Espera. Pára tudo. Morri e vim parar ao inferno. Esta é a Belzebona."

E daqui a três dias, a senhora recebe um mail, a dizer que já pode vir levantar o livro. 

"Todo descontaminado, todo expurgado, limpo, casto, oco."

Ah, muito obrigada, muito boa tarde.

Claro que não vou levantar o livro livre de contaminação. Livra!


04/01/2021

Tive uma negativa num teste

Por razões que me escuso de explanar, fui fazer o teste do Covid, ou "fui-me testar", como diz o povo. Tive um resultado negativo (ou "testei negativo", lá diz o mesmo), o que, pela primeira vez na minha vida, me deu uma inexplicável alegria. Aliás, saí do laboratório em lágrimas - porque o coiso toca cá no saco -, e em absurdas gargalhadas - porque o coiso também deve tocar no sovaco, caso contrário não se teria dado o caso. Não posso afirmar que tenha sido uma experiência nova, uma vez que, e dado que sofri de praticamente todas as doenças infantis e juvenis durante a infância e uma delas foi a difteria,  e mais tarde amigdalites de repetição, como lhes chamava amorosamente o senhor doutor, já tinha feito várias zaragatoas, tanto ao nível nasal como bucal (queriam que eu escrevesse oral, seus tarados), com a agravante de que não possuo adenóides (mais uma ralação que soube dar aos meus pais em pequenicha), e, portanto, aquilo a que chamam cotonete - que é, efectivamente, uma palhinha de dimensões épicas -, e que, aquando da minha nada saudosa difteria, era um estilete de ferro, dizia eu, a tal "cotonete" entrou-me narina acima e não parou em adenóide nenhum até raspar na caixa craniana com intenções de a perfurar, ou, em alternativa, sair por um dos buracos oculares, soltando o globo. Passa num instantinho, porém. A mim, saiu-me uma enfermeira belíssima, que disse "já lá estou" quando fez a impressão mais estranha e eu me preparava para fugir, e depois outra vez "já lá estou" quando passou à narina seguinte (felizmente, são só duas). De notar que, apesar da minha apreensão e protestos, usou a mesma cotonete para as duas narinas, não sei se para poupar meios, ou se o muco da noja deve ser concentrado lá na pontinha, para dar mais fidelidade à cena.

Espero que gozem de boa saúde por mais um ano.