29/03/2018

Ai-fostes também não me tem em grande conta # 4

Ai-fostes veio parar-me às mãos guarnecido com uma aplicação assaz atractiva, quanto mais não seja por ter, no seu ícone, un petit coeur. Responde ela pelo nome de "saúde" e é a que — de entre outras valências que não explorei — nos mede a distância diária que percorremos a pé ou a correr (como se corrêssemos com recurso a outra zona do corpo que não fossem os pés). A mesma aplicação peca, a meu ver, pela incapacidade intrínseca que lhe é inata, de nos contar os passos em situações de não deslocação, ou seja, quando maior é o esforço, que é no ginásio: elíptica, passadeira, jump, body pump, aeróbica, etecetera. Pode uma pessoa estar a finar-se de exaustão cardio-gluteal durante uma ou duas horas, que a aplicação do coraçãozinho lhe atribui muito menos passos (na verdade, igual a zero) do que se for bater pernas para o shopping no mesmo espaço de tempo.
[No entanto, existem casos como o meu em que me parece justo que assim seja: a marcha fora do ginásio é cumprida (e comprida) de saltos altos, pelo que até deveria valer o dobro, como aquelas campanhas em África.]
Depreendo, não obstante, que Ai-fostes contabiliza a passada de forma relativamente aleatória. Por exemplos: anteontem, ao longo de um dia inteiro, contou-me 3941 passos para 2,6 km. Ontem, eram ainda umas escassas 16:49 da tarde, já ele me havia contabilizado os mesmíssimos quilómetros, mas com 4447 passos. Ou seja, percorri a mesma distância, dando mais 506 passos (e sim, recorri à calculadora, porque este desgaste pedonal acaba por me afectar o cérebro).





Conclusões:
1. Há dias em que dou passos de gueixa;
2. Há dias em que dou passos de elefante/ gazela;
3. A contabilização é muito mais aleatória do que eu imagino. Tipo o boletim metereológico;
4. É possível enganar a aplicação (que funciona por GPS), bastando, para tanto, que nos desloquemos de um lado para o outro, nem que seja do sofá para o frigorífico, do frigorífico para a despensa e da despensa para o sofá, sempre no enfardanço. Ou então, era a pessoa praticar o ballet e dar uns bons jetés por dia, que aquilo contava dez passos por cada jeté);
5. Nós não estamos sós


28/03/2018

Post interdito a machos # 7

O soutien, ou sutiã, conforme preferirdes, é aquela peça de vestuário que, salvo as excepções dos de desporto e medicinais, regra geral, vem apetrechado com colchetes, que são o que encerra o dito cujo até à próxima abertura, isto tanto para o bem como para o mal. A mim parece-me, mesmo sem ter feito uma auscultação de mercado exaustiva ou de qualquer espécie, que toda a mulher, mais ou menos a partir dos doze anos de idade (ou desde que as meninas eclodem), consegue fechar os dois colchetes atrás das costas, atrás dos olhos, à frente do peitoà frente das costas, nas costas, sem recurso a ajudas, espelhos ou outras manobras que tais. O tacto também é um sentido, e é em grandes momentos como o da abotoadura do sutiã que dá provas cabais da sua grande oportunidade. Portanto, apertar dois colchetes, minúsculos e quase juntos, em duas ou três fileiras, quantas vezes com unhas compridas, não sendo tarefa que exija grande ciência nem tecnologia, também não é impossível aos olhos (mesmo sem recurso a eles) de qualquer mulher desde o final da infância.
Com o advento dos bralettes, advieram com eles as fileirinhas de colchetes, mais concretamente três fileiras paralelas (vá lá não serem perpendiculares; ou oblíquas. Secantes) de nada menos do que quatro colchetes cada uma. Quatro. Não sei como não se lembraram de pôr um fecho-éclair naquilo.
Ora bem, quatro vezes três, é igual a doze. Doze colchetes são vinte e quatro peças do tamanho de uma mosca recém-nascida, para uma mulher ter que manusear sem olhar, nas suas próprias costas. Esta intrincada matemática, qual autêntica matriz, que envolve análise combinatória (aliada à ginástica contorcionista de todas as articulações do braço), equivale a n possibilidades de combinações entre os doze colchetes, cada qual, como já vimos, com duas peças, e em que há que fechar em recta perfeitamente vertical, nada menos do que quatro deles. Nada confuso, portanto.
Aposto todas as minhas fichas em como quem desenha os sutiãs são homens. Esquecem-se — ou não — do super-multitasking feminino: tal como nos primórdios da eclosão, havemos de abotoar o bom bralette na barriga, rodando-o e depois subindo-o torso acima, até que nos reabituemos à estratégia da cabra cega. Subestimam-nos, os meninos.


27/03/2018

Freud, socorro!

E lá estava ela, exibindo a sua pretensa superioridade na matéria, impondo opiniões, desfocando o objectivo, na ânsia de sobressair. E ele, ao lado, adormeceu. Foram escassos três segundos, qualquer coisa de imperceptível, mas foram profundos, alienatórios e reparadores. Quem mos dera. Ao invés, morri-me mais três segundos da minha vida.
Ela não o viu adormecer, pois estava tão concentrada em si mesma que simplesmente era incapaz de olhar à volta.
Pode ser uma fase que passo agora, e que passará um destes dias — ou não —, mas tenho cada vez menos paciência para a soberba, para a vaidade cultural, para a sobranceria intelectual. Sobretudo quando, como é exemplo esta senhora, se engana tanto e tantas vezes seguidas que não é possível justificar verdadeiros erros com lapsos (e não gralhas porque a mulher fala; na verdade, não se cala).
O que mais me intriga é que a própria não se apercebe. Pode estar diante de um grupo de seis, de dez, talvez pudesse enfrentar uma plateia de centenas, que nunca se daria conta do frete que provoca de cada vez que abre a boca para mais uma das suas pequenas — infindáveis — dissertações. Aquilo é quase um dom para a hipnose de grupo. (Estará a treinar?) 
Olho para ela e penso se algum dia ficarei assim, não necessariamente dona da última opinião, pois isso nem me é estrutural, mas assim: convencida que sou um "bom papo", que é um prazer para os outros ouvirem-me (e, se não for, no limite, que me aturem na mesma, porque já defeco se me ouvem por opção ou por mera delicadeza), que sou uma oradora de mão boca cheia. O que sei, para já, é que nunca ninguém adormeceu a ouvir-me falar (faça-se honrosa excepção aos filhos enquanto pequenos, o que era, se não um alívio, pelo menos um momento bom). Já pus gente a ouvir-me com atenção, com (real ou simulada, nunca saberei) admiração, com alegria, com lágrimas, até mesmo com raiva. Já provoquei, através das minhas palavras, as mais diversas reacções nos meus interlocutores. Mas sono, ou adormecimento então, isso nunca. Quer dizer, que eu tenha dado por isso. Ou não terei  já tido momentos em que, também eu, concentro o centro do mundo no meu umbigo e não vejo mais nada?


26/03/2018

Splash

Aqui há tempos, tipo ontem, acordei a sentir-me uma sereia [e não metade mulher, metade baleia — e não, a piada não é minha]. Atendendo a esse facto, e logo após puxada aula de dança, vai de me meter noutra aula, igualmente de dança, mas, desta feita, imersa — e só não submersa porque é suposto deixar as cabeças, minha e dos outros que lá estavam, fora do charco. 
É claro que, entre uma aula e outra, duchei-me. Se a ideia de ir boiar no suor alheio já me deixa apreensiva, que direi da contrária, e dá-se que sou humana de respeitar extremamente o próximo, sobretudo quando ele está efectivamente próximo. 
Enverguei então fato de banho próprio para a ocasião — horrível, como são todos os fatos de banho de natação —, chinelos —, minhas havaianas high heels — e touca, aquele penico que não fica bem a ninguém (de tal modo que não sei como é que o pessoal das praxes académicas ainda não se lembrou de substituir os penicos por toucas de natação), daí que seja impossível ficar-me bem a mim. Na verdade, levava duas toucas, uma em cima da outra, porque uma só não me segurava o cabelo e precisava da outra para segurar a primeira. Para além disso, fui um bocadinho maquilhada (coisa leve, um rimelzinho e um nico de base + anti-olheiras, pois que enfrentar a aula de chapinhanço com olheiras é que jamé-salomé), tendo em conta que não tencionava mergulhar (ou não era suposto, melhor dizendo). Esqueci-me, ou ignorei, a possibilidade da ocorrência de salpicos, derivados ao facto de existirem em todo o lado adultos imaturos e inconscientes, brlá-brlá-brlá.
Apesar de ser eu, acho que correu tudo muito bem. Pelo menos, acertei com a porta para a piscina, não escorreguei em lado nenhum, nem o fato de banho encolheu comigo lá dentro. Fora o facto de as duas toucas terem ameaçado, logo ao início das actividades, saltarem-me da cabeça (imagino que em simultâneo), e ter tido que pedir socorro à titcha, que, mal suspeitando que eu já tinha duas, me atirou mais uma (o que me há-de ter feito ficar parecida com Stewie Griffin, aquele bebé maléfico e macrocéfalo); fora ainda ter-me dirigido à única louca que frequenta aquelas aulas para fazer par comigo numa actividade a dois; descontando também ter saído da banheira com um dos olhos (ao menos que fossem os dois!) a borrar, qual guaxinim zarolho, de resto, acho que o cômputo foi assaz positivo.
Voltarei. (Ainda não sei se isto é uma promessa ou uma ameaça.)




23/03/2018

os caminhos do afecto

Já era a ela que ia visitar, perdidas que ficaram na estrada todas as esperanças de um regresso. Tornou-se um facto consumado, o de me ter tornado irreconhecível, embora não me reconheça qualquer mudança. Pelo menos, nenhuma que me pudesse ter valido a indiferença e o distanciamento, vindos de quem tão próxima que mais não poderíamos ser. 
Mas votava-me ela também àquele desapego de que só um gato é capaz, e não foi uma nem duas vezes, devido a isso, que fiquei lá sem chão, no mármore de Estremoz bonito e frio que é aquele. Bem a chamei, muito a espiei, tantas vezes a agarrei e encostei a mim, com cuidado para não a apertar, evitando que me escapasse, procurando assim tê-la mais uns segundos, aproveitando a temperatura e a maciez, abusando-lhe da mansidão, até que se fartasse de mim outra vez. 
Tinha, assim, um motivo para continuar a ir, fazendo da estrada o caminho para o afago, o apego, o afecto. Foi isso que me fez entrar e ir directamente da porta à procura dela. Fui encontrá-la no cesto, adormecida, ausente, alheada. 
Antes que o chão me fugisse outra vez, recebi os braços que há muitos séculos me embalaram, beijos que acreditei que me foram dados a mim, e a voz sussurrada que tantos fados me cantou, "Querida, querida". 
À saída levava comigo uma alegria trespassada por só saber porquê, mas não por quê, ali voltarei sempre.


21/03/2018

And that awkward moment # 47

em que te encontras numa qualquer farmácia deste berlinde, já retiraste a senha de vez,
(que é outro dos grandes mistérios insondáveis da tua magra — querias! — existência, pois que, seja ali, seja no banco, seja na segurança social, seja no supermercado, seja onde o Diabo perdeu os chinelos Prada, nunca, por nunca, existe uma mera possibilidade, daquelas que a lista das senhas apresenta, que te sirva como uma luva. Então, retiras a senha que te parece ser a menos longínqua da tua pretensão, ou a mais genérica quanto a ela, do género "apoio", "balcão", "outros". Pôxa, só te apetece tirar sempre a senha de prioritário e fazeres-te mais palerma do que já te tomam na realidade),
e a tua visão periférica, do lado esquerdo, te anuncia que se encontra, logo ali ao teu lado, uma pessoa a quem não te apetece falar? Não é das tuas relações pessoais, é daquelas pessoas com quem, em universitários tempos idos, que já lá vão e não voltam (lagarto, lagarto), te cruzavas todos os dias pela mera coincidência de frequentarem o mesmo estabelecimento. 
Rodas o salto cerca de 180º, mais grau, menos grau, e, subitamente, interessas-te por todas as estantes da loja. Sim, elixires, chuchas e lubrificantes incluídos. 
E é quando, também pela tua visão periférica, mas desta feita pelo lado direito, avistas outra pessoa a quem não te apetece falar. Isto dito assim, até parece que guardo esqueletos no armário, e ando a fugir da minha própria sombra. Não guardo, môres, acontece que no meu armário não cabe nem mais uma saia (última tentativa: ontem), e, quanto à minha sombra, nem sei por onde anda, pois, tal como o outro boneco, sou mais rápida do que ela. Mas esta pessoa é daquelas que, tal como a outra, pertence a um passado remoto, e eu terei exactamente zero para conversar com ela. 
Vai de rodar o salto mais uma vez, o que veio a revelar-se inútil, já que fiquei com um de cada lado, qual Cristo. 
Entretanto, fui atendida, e praticamente bichanei com a técnica, a ver se nenhuma das duas almas me reconhecia a voz e me estragava o arranjinho. 
Para sair, tive que optar por um dos lados, pois andar às arrecuas, apesar de ter maior probabilidade de escapatória, era bem capaz de dar nas vistas (e, com esta sorte magana, ainda me ir esbarrar com um dos dois). Então, pus-me cabisbaixa, orando com fervor "faz-me invisível, faz-me invisível, só três segundos", mas é que Ele não me deu ouvidos (deve ter sido por não me ter ajoelhado), e exclama a da visão periférica direita: "Olááááá! Estás boa?", tudo isto com um hálito fétido e cinco caixas de pastas de dentes na mão. Antes que eu pudesse responder (na verdade, estava em apneia), elucidou-me: "Vim aqui comprar pastas de dentes!". E logo: "Mais um beijinho! Olha, tu estás na mesma, o que é que fazes?". Desbloqueando a respiração, respondi: "Tu também". Depois fiz o que já devia ter feito minutos antes: fugi.

Começas a suspeitar que és uma pessoa humana assaz previsível

quando uma das tuas filhas te mostra um cartoon e te diz: "Olha tu".

https://www.instagram.com/p/BgjUs96DSE0/

20/03/2018

Alvíssaras para mim /

Quem é uma menina (!?) cheia de sorte?

Achei!
Ou melhor, achei a titcha de dança e fui-me a ela, cheia de dúvidas. 
É isto: Mampi, a responsável pelo meu desassossego cerebral, é natural da Zâmbia (e não Nova Zelândia nem Índia). E é óbvio que não está a cantar em Inglês.
Swilili, chamei eu de Tiriri. Não mereço o chão que piso. 


Pronto, agora já posso dormir descansada. Eu, e vocês, pois este tipo de problemática, geralmente, atinge a blogobola em cheio, qual alfinete no balão.
Obrigada a todos aqueles que sofreram comigo e, até certo ponto, me deram aquele apoio, sem o qual não teria aqui chegado, a este ponto. Final. 

Alvíssaras, que eu cá ando a ponto de desistir

Tenho na cabeça, desde domingo passado — anteontem, já lá vão dois dias, quarenta e oito horas deste massacre — uma música que não consigo "agarrar" na netty, mas que se me incrustou no cerebelo a níveis exponenciais, daqueles de cantá-la de noite e tudo. O grande busílis é que não é uma melodia em Inglês, ou Francês, ou numa língua qualquer que eu entenda uma palavrinha que seja, para, ao menos por aí, pesquisar e encontrar. Acho que é em Maori. A sério. Também podia ser em Híndi, não fora o facto de não ter um ritmo indiano. 
Só sei o refrão, e mal:
Tiriririririri,
Diriririririri,
Chiriririririri,
ou
Niriririririri.
É que parece que não existe.

Entretanto, consolo-me com esta análoga (diferente, mas na mesma onda):

19/03/2018

o odor do amor

Houve aquele momento em que ele pediu que, de olhos fechados, nos lembrássemos das três mais remotas recordações da nossa infância. Não preciso de fechar os olhos para saber que todas as que trago guardadas em mim há mais tempo estão ligadas ao olfacto: tenho comigo o cheiro da minha mãe, da sua pele branca e lisa, orvalhada de um perfume desaparecido há muitos anos, dando-me que pensar se esse não terá sido também o ponto da sua partida. Conservo intacto o cheiro do meu pai, dos abraços com braços pequeninos e de cabeça encostada às pernas dele, ao abdómen, mais tarde ao coração, e a passagem neles da certeza de que tudo estava bem e de estar num abrigo que jamais me faltaria. Ficaram-me outros tantos odores só meus, do mar da Costa, dos pinheiros carregados de resina, da lareira no Alentejo, das azeitonas nos alguidares de barro, dos tarros de cortiça, da casa da minha avó no Porto, dos móveis passados a óleo de cedro da minha Titi, das sardinheiras da sua varanda, dos lápis de cera e dos pincéis na escola, das sardinhas na Feira, e do vento, que nunca mais cheirou da mesma maneira. Todos são irrepetíveis mas eternos, se calhar por serem meus, apesar de eu já não ser aquela mesma. 
E os olhos do meu pai. Havia também neles um odor de desvelo e entrega, que era o odor do amor.
Calhou ser Dia do Pai e ele fazer aquela pergunta, logo hoje, dia em que ele próprio comemora o seu primeiro Dia como Pai.
Calhou ter feito uma longa pausa, quando chegou a minha vez. Assim que a voz me voltou, falei-lhe das incontáveis vezes em que parti a cabeça, do primeiro dia de jardim de infância e da quantidade de bonecas que tinha para cuidar.


17/03/2018

Eu tenho problemas com médicos # 29

Agora supõe que vais para que te tirem um RX à boca. Meteste na cabeça — ainda não literalmente — que vais colocar um aparelho dentário invisível. (Daqueles que, tal como n' "O Rei vai nu", só os espertos conseguem ver. Vai na volta e nem eu própria.) Não que tenhas a dentadura a gritar por endireita (caso contrário, já há várias décadas os teus pais se teriam encarregado desse assunto), mas porque queres. E é a velha história de a-menina-quer, enfim, apesar de ainda andares nas démarches do orçamento. Com toda a probabilidade, vem de lá uma surpresa financeira que te fará pôr a cabeça no lugar, e os dentes aonde estão actualmente.
O dentista dos olhos bonitos é que receitou o RX, para poder fazer O Estudo. Antes disso, sujeitou-me a todas as sevícias de que se lembrou naquele dia: meteu-me na boca uma papa amarela e gosmenta, parecida com plasticina, que disse ele que sabia a baunilha. (Eu, pessoalmente, prefiro pistachio ou chocolate, mas achei chato dizer.) E mandou a pessoa morder aquilo, juntamente com duas espátulas de metal, vá lá que uma de cada vez. Quando já havia dejectos de plasticina amarela por todo o ser humano, desde os ombros até aos cabelos, mandou a assistente colocar-me um babete e a mim mandou-me lavar a boca lá naquela torneira que os dentistas têm. A mim tudo me anestesia (até mesmo um naco de plasticina), pelo que bochechei aquilo pelas paredes do lavatório afora, o que deve ter poupado alguma coisa ao trabalho da senhora das limpezas, na madrugada seguinte. De seguida, meteu-me uma coisa plástica nos dentes para manter a boca aberta e foi buscar uma máquina fotográfica daquelas potentíssimas, com uma lente gigante, e desatou a fotografar-me a boca naquele preparo. Ora, eu estava deitada, por isso temi que a objectiva se soltasse e me caísse nos dentes. Mas, afinal, não. Quando, finalmente, me deu autorização para me levantar dali, disse que me ia tirar uns quantos retratos (de frente, séria; de frente, a sorrir; e de lado, a olhar por cima do ombro). Tirei o babete e cedi. Dei o meu melhor, embora parecesse mesmo que estava na Judiciária, apesar de ele não ter querido fotografar-me de perfil. Ainda bem, porque nunca sei qual é o meu melhor. (São os dois tão bons, cada um à sua maneira.) 
Fui fazer o RX e aparece-me o técnico, personagem saída directamente de um livro de Charles Dickens: praticamente calvo, ainda com algum cabelo no topo, a ver-se a cabeça à transparência, mas de cabelo comprido. 


Homenzinho sisudo, cara de carnes chupadas, olhos sinistros. Pôs-me a cabeça entre umas traves, a boca a morder uma placa de plástico, e disse-me para fazer um sorriso forçado. Pensei que fosse uma brincadeira, porque um sorriso forçado já eu estava a fazer. De pânico, é certo, mas um sorriso na mesma. Afinal, era para mostrar os dentes para a máquina. Eu, por acaso, tenho bastante medo daquele momento em que as placas começam a andar à volta da nossa cabeça, porque sempre achei que um dia uma delas me vai decapitar, não sei porquê. Mas acho que não aconteceu nada disso, e depois fui para casa.

16/03/2018

Jump!



Já tinha espreitado aquelas aulas, o povo todo com uma espécie de patins sem rodas, olha que giro, saltam que se fartam, de certeza que é fácil, ai que também quero. 
E eis-me. Primeira vez que vou, e não eis a instrutora, eis outro, que é doido varrido, e pode ter sido por isso. 
O meu tornozelo direito é mais frágil do que o irmãozinho gémeo (são dizigóticos), e, por isso, já fui munida de uma meia elástica a abraçar o menino, não fosse torcê-lo. A hipótese de engessar os dois, muitíssimo mais preventiva, não se me pôs, dado que as botas cumprem essa tarefa na perfeição: o pé fica ali agarrado e quieto, quase-quase como nos skis. [Nem me quero lembrar do quão detestei "esquiar" (aspas derivadas do facto de não ter esquiado efectivamente), o que faz de mim, vista por esse prisma, a eterna não-blogger, que chatice.]
Primeira barreira: calçar as botas. Há que fazê-lo sentado no chão, exactamente como se tivéssemos três anos de idade. Depois, cada uma tem duas presilhas, pelo que, se não me falha a matemática, temos que apertar quatro. Ora, basta que uma esteja relaxada e a aula já tenha começado, para que uma pessoa como a minha, não querendo chegar atrasada, porque nunca, vá mesmo assim, com uma das presilhas desapertada, e logo se vê se a bota sai a jacto na direcção de espero que não uma cabeça, nomeadamente a minha. Então, apesar dos avisos do instrutor, e como não me entendi muito bem com aquilo, só apertei três das quatro (75 %, não é mau), mas, efectivamente, não aconteceu nada de registo.
A ordem é pular-pular-pular. Cinquenta minutos a pular com umas botas que, se por um lado, têm molas e ajudam à impulsão, por outro pesam trezentos quilos (nunca experimentem ir nadar com aquilo calçado), e, (só) por isso, devem fazer um bem horrível ao coxedo. Se não, a qualquer coisa fazem de certeza (à mood, pelo menos).
Confesso que passei as fases 1. que-giro; 2. que-canseira (no final do aquecimento!); 3. penso-que-vou-cair; 4. acho-que-vou-descansar-um-bocadinho; 5. onde-é-que-me-vim-meter-? [fase mais prolongada no tempo]; 6. penso-que-faleço; 7. coitadinhos-dos-meus-filhos; 8. quero-a-minha-mãe-já!; 9. ah-oh!-está-quase-a-acabar; 10. tenho-que-cá-voltar.
Portanto, fora o facto de ter saído a sentir-me o Tigre do Winnie the Pooh (alegria incluída!), acho que correu (pulou) tudo bem. 

13/03/2018

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 55

Ou
Há uns que gostam de apanhar, só pode ser isso.

Não posso ir ao supermercado, nem que seja virtualmente. Isto é, através de nettinha, pois que aquela coisa do online permite a uma pessoa humana teletransportar-se para o recinto, escolher os itens no sossego do seu computa e tê-los todos no lar em cerca de horas, verdade?
Não. Mentira. Tudo depende de, de quem se trata. E eu trato-me de uma pessoa sem sorte para algumas coisas, por compensação de todo o resto. 
Escolho o horário de entrega para o lapso que dista entre as 10:30 e as 12:30 da madrugada.
Vejo chegar as 12:30 e nada de a encomenda me chegar aos braços. 
Ligo para o apoio ao cliente, sou atendida ao fim de um quarto de hora de música de câmara, e isto a fazer-se uma da noite, rés-vés Campo de Ourique com a hora do almoço. 
Diz que o entregador está ligeiramente atrasado. (Oh, really?)
Protesto e reclamo que alguém me vai devolver a taxa de entrega. A Voz diz-me que sim, dado que já se deve ouvir o meu ranger + espumar + arfar. Vou esperar sentada, a ligar para aquele 707 nos próximos dias, cada vez que abrir a minha conta e verificar que — oh, surpresa! — a taxa não me foi devolvida.
Cerca de quê? Três, cinco minutos depois, recebo uma chamada do apoio, agora já com uma gravação, que me faz um questionário em duas singelas perguntas:
1. De 0 a 9, recomendaria o serviço online a um amigo?
2. De 0 a 9, quão satisfeito ficou com o serviço de atendimento mu-mu-mu, que nem a deixei completar a pergunta, pois já me tinha caído o dedo, outra vez, e com toda as as minhas forças, na tecla do zero. 
Era terem esperado meia-hora, que já me apanhavam macia, como de costume. Assim, olha,  apanharam-me em bruto (ou em bruta, se preferirem), e enfardaram até eu me cansar. 


12/03/2018

É preciso tão pouco para me fazer feliz # 13

Dever cumprido, trabalho acabado, vamos lá comemorar isto, e que melhor maneira do que com um vestido novo? É de flores, é de Primavera, tem chovido bastamente até dizer basta, mas foi de flores que me apeteceu vestir hoje, tanto e tanto que me fui assim para o sol tímido da trégua.
Nem sapatos novos, nem um casaco novo, nada mais me dá tanta alegria estrear como um vestido.
E era toda de flores que atravessava a calçada, quando avistei uma menina pequenina, não especialmente bonita, mas linda como o são todas as crianças: era uma flor, ela sim, pousada na relva, cabelos encaracolados ao vento, olhos azuis daquele mar que já me tarda. E, do alto dos seus três anos, dedito espetado na minha direcção, exclamou: "É a mamã!".
Eu, que já tinha o dia iluminado de flores hoje, colhi mais uma braçada delas assim, guardando-as dentro do peito só para mim. 

11/03/2018

Na senda de "Sou só eu?" # 14

que avisto uma mota da Ubereats e acho aquele conjunto homem-motocicleta tão parecido com o do senhor polícia motorizado, que me ponho logo a conduzir como manda o Código? Oh, pá, não sei se é o coletinho verde, se é o capacete, se é tudo junto, sei que me temo. Aquilo assim, num relance, à laia de soslaio, é um ai-Jesus, um ar que me dá, um ai-que-susto. Não sei explicar o temor reverencial que me assola, mas sei que me ponho logo no trilho, calhando haver um do Eléctrico, e é nesse mesmo que me alinho. 



Na verdade, o mesmo se me passava aqui há uns anos não muito largos, com aquela maravilha inventada por alguma cabeça cheia de nem quero imaginar ideias luminosas, que dava pelo nome de Motocão, tinha um cabo de aspirador incorporado e tresandava a estrume de vaca. Pois, eu cruzava-me com um condutor daquilo, e, muito antes de o fedor me dominar até às têmporas, já eu me punha em sentido, cheia de respeito pelo agente. Que, afinal, era um desgraçado, incompreendido, provavelmente mal pago, e com um emprego de merda. Antes outra coisa. Essa função, tão benemérita — e não estou a usar da ironia — desapareceu, sem deixar rasto (nem mesmo olfactivo), pese embora os animais não tenham deixado de defecar a calçada, com toda a pompa e circunstância que lhes apraz assim que a tripa grita por alívio.


Quero explorar o assunto. 
Será que, noutra encarnação, fui gatuna e andei reclusa por essas penitenciárias, pagando penitências, qual pagadora de promessas, mas em bom?
Será que sou uma irreverente irreprimível, que se alterca toda quando visiona um senhor autoridade?
Será que, ainda neste sentido, a autoridade me provoca medos encapsulados?
(O que é um medo encapsulado?)
(Não sei, inventei agora.)
Será que há em mim uma agente frustrada?
Quem sou eu?
O que faço aqui?
Para onde vou?


A cada um, as tormentas que cada um merece

(não está giro, este título?)
(parece assim uma coisa profunda.)
(mas não é.)

Não, é que hoje perdi a conta — porque, efectivamente, não as contei — à quantidade de coisas que voaram dos estendais / varandas / janelas abertas (?) destes nossos concidadãos, e que, pela manhã jaziam alegremente por essas estradas afora, a saber: um cobertor pequeno, um lençol de cama, um tabuleiro decorativo (cheio de florzinhas coladas) (olha, menos uma foleirada), uma camisola. Só não vi meias, para, ao menos, encontrar uma justificação / apaziguamento mental para o fenómeno, já assaz debatido por estas bandas, da meia desirmanada. Continua igualmente por explicar o fenómeno da caixa de tupperware cuja tampa lhe dá ares de Vila Diogo, e se some lá para onde o Diabo perdeu as botas (ou também para Nárnia, como tudo o que cai no chão de Rosinha, minha canoa).

08/03/2018

Ser mulher

também é isto: a pessoa é fiel detentora de uma viatura automóvel, que responde pelo nome de Rosinha, minha canoa, que, por sua vez, possui uma coisa debaixo do banco do passageiro da frente, à qual não consegue atribuir um nome. Trata-se de uma espécie de caixa de metal, não sendo, no entanto, uma caixa, uma vez que não tem tampa. Porém, tem uma abertura, numa das faces, por onde tudo entra e fica. E, quando digo, tudo, quero significar, exactamente, tudo. Qualquer miudeza que caia da mão direita do condutor, ou de qualquer mão do passageiro-pendura, enfia-se pela lateral dos bancos, e eclipsa-se para lá. A dita abertura da dita coisa é bastante pequena, pelo que não permite a entrada de uma mão, e, quanto a dedos, estamos conversados, pois só entram ali dois ou três, impossibilitando-os de alcançarem o fundilho, transformando qualquer busca numa sessão de contorcionismo inútil. Já para lá refundi acessórios do cabelo, a chave de abertura do telemóvel, as costas do telemóvel — que recuperei com um palito de sushi, um torcicolo, três cãibras e um esgotamento nervoso —, dinheiro (sim, comprovei-o hoje, mas não sei afiançar a quantia certa), e só o Criador saberá o que mais. 
Então, aqui há dias, enfarpelada com um sobretudo alapado ao torso e todo abotoado à frente, e, num largo gesto, não de abnegação, como é meu apanágio, mas sim de impaciência — porque outra das características peculiares de Rosinha é a de que o cinto do passageiro fica a bater tac-tac-tac quando ele sai de Rosinha —, na tentativa, em pleno andamento, de esticar o referido cinto, hei-de tê-lo feito com tal convicção que, assim me estiquei para a direita em diagonal, assim me saiu a jacto um dos botões do casaco, mas isto com uma violência tal, que dei graças ao cosmos de não me ter acertado numa das vistas. Ao invés, disparou lá para o canto, entre a porta e o banco, e nunca mais o vi. 
Estou, aliás, convicta de que, debaixo daquele banco, está Nárnia. É toda uma outra dimensão, um verdadeiro universo paralelo. As coisas, simplesmente, incorporam de alguma forma alternativa, saem do radar, desintegram-se. 
Mayday.
Estou farta de procurar a m. do botão, e ele não aparece. Já fiz pesquisas dentro e fora do carro, já usei a lanterna, já tirei fotografias ao interior (tenebrosas, irreais e indecifráveis), já subornei o rapaz para que tentasse por sua conta, já só me faltou enfiar-me, eu própria, lá dentro e transformar-me numa ameba proteus. Ainda agora, fiz a enésima tentativa e, após um momento Carochinha, em que encontrei vinte cêntimos (será o botão, transmutado?) e mais três arranhões nos dedos, o coiso não apareceu. Deve estar, feito parvo, a rir-se de mim, lá com o mundo de cenas, de entre objectos e, quem sabe, animais, que já foram ali parar antes dele. 
E não, não adianta equacionar a solução do botão sobresselente, que esse deve existir, mas eu também o extraviei algures, para uma qualquer caixa lá do lar, onde repousam todos os botões extra que a roupa nos fornece, e deve estar cheia deles, pertencentes a peças que eu já nem sei quando e por que é que comprei. Ou então, juntou-se ao outro, e vivem agora, felizes para sempre, em Nárnia, metamorfoseados em unicórnios. 
Chiça.

07/03/2018

Poetry in motion

Sabes, ou suspeitas, que o fim do mundo poderá estar levemente próximo, quando, em pleno metropolitano de Lisboa, aquela voz off da senhora, que outrora proclamava
Esteja especialmento atento à entrada e à saída do comboio
e, anos volvidos desta saga intraduzível, o corrigiu para especialmente atento,
mas que, actualmente, avisa, no seu melhor Inglês,
Pay special attention when entering or exiting the twain [Mark or Shania, that don´t impress me much?]
no actual momento (que eu tenha dado por isso desde a passada segunda-feira), declama.
Ora, e declama o quê?
O que mais, senão poesia, pois que a declamação só a ela lhe é intrínseca?
Temos o metro da cidade a jorrar Camões e Pessoa aos altifalantes. Aquele susto, quando imaginamos que nos vão anunciar mais uma avaria/ incidente com passageiro/ perturbações na linha (amarela, azul, às riscas).
Quando não ela, um ele.
Ainda hoje, nem de propósito, já dentro do tal comboio, veio A Voz dizer que tínhamos todos que sair uma estação antes, devido a avaria beca-beca-beca. Vá que não estava a chover, e deu para chegar mais ou menos inteira e totalmente seca ao meu destino.
Senhores passageiros, e lá veio o resto do recado. Ora, eu, que sou fóbica dos aviões, procurei logo o raio da máscara de oxigénio, o colete salva-vidas e o para-quedas. Nem sei como é que não me lembrei de me pôr em posição fetal. Afinal, era só para me dizer que tinha que dar à sola mais um quilómetro nesta vida, mal sabe ele que de salto alto. A ver se me bufou aos ouvidos Alma minha gentil, naquele momento. É o bufas.


05/03/2018

Óscaras 2018

Conforme já vem sendo tradição — umas vezes, sim, outras vezes, não — cá no buraco, vimos por este meio anunciar as oscarizadas do ano, ou seja, aquelas que são as mais merecedoras de nota derivados aos seus outfits. 
Na mesma senda, não se distinguem os fatos da passadeira dos outros, usados no after party. Isso calha-vos a vocês, perceberem quais foram usados aonde.
Quanto às mais bem vestidas, elas são exactamente aquelas que não constam na lista abaixo. Para essa tarefa, estão cá as bloggers a sério. Eu sou apenas a genuína blogger.

Miss Lucy in The Sky With Diamonds


Miss Qual é o Mal? Ah, Tudo


Miss Ainda Bem que Tenho Bolsos para Guardar Cenas


Miss Esqueci-me dos Sapatos


Miss Porra Para os Sapatos


Miss Avozinha do Capuchinho


Miss Cardeal Patriarca, Hallelujah


Miss Caderno Para Colorir


Miss Super-Heroína (essa mesmo)


Miss O Tecido Estava Num Saldo Imperdível


Miss A Mim Deram-me Uma Tesourada. Ou duas


Miss Mandei Aplicar Bottox Também no Vestido

Miss Nota de Cor

Miss Esfarraparam-me Toda

04/03/2018

Lady Bird

(se acharem que é spoiler, é não lerem # 8)

Não sei o que me deu no ginete este ano, que vi montanhas sem vales de filmes nomeados para receberem a estatueta com a figura do Sr. Oscar. 
Que dinheiro mais mal empregue. Estou a brincar, não paguei nada para o ver, pois que ainda não estreou em Portugal e, a horas da distribuição dos prémios, já não estreia antes deles. Saquei-o da nettinha, portanto, a única coisa que posso pagar por tê-lo visto é uma pena de prisão por pirataria informática, que chique!
O filme está nomeado, de entre outros a que ninguém liga (melhor director, hahaha), para os prémios de melhor actriz principal e melhor secundária. Vai spoil: o papel principal é o de uma miúda chata, em plena crise da adolescência, e o secundário é o de uma mãe chata de uma adolescente chata, um papelote tão simples que até eu o conseguiria interpretar. E também está nomeado para melhor filme. Hahaha.

[Tragam-me mas é as fatiotas e as perucas da passadeira vermelha, que isso é que merece Oscars em barda.] 

02/03/2018

minha chuva, meu vinho

Logo eu, que detesto chuva.
~
Alcoólicos e famosos, grandes escritores foram eles todos. Grandes porque enormes, com vasta obra, reconhecida e eterna por inesquecível. Lembro-me sempre, para exemplo, de Hemingway, mas houve Tennessee Williams, Scott Fitzgerald, William Faulkner, e tantos mais. Mais bebiam, melhor escreviam.
~
Preciso da chuva que detesto, não para escrever sublimemente, quem sou eu?, mas para desencravar textos que se me encrustaram no peito sem que os consiga libertar, quanto mais escrever, que é o limite da linha da agonia. 
~
Já não sei como é que aquele lencinho de papel lhe foi parar às mãos, agarrado com o desespero e a raiva de quem luta pela própria vida. (Também estou velha, e, por isso, perco o essencial dos acontecimentos, guardando só o supérfluo.) Posso ter sido eu a dar-lho, como pode ter sido a enfermeira, ou até já o tivesse entre os dedos. Sei apenas que a vi agarrá-lo com todas as forças. E depois começar a desfazê-lo em bocadinhos pequeninos, soltando-os como pétalas de uma rosa amachucada que lhe deram em tempos, há demasiado tempo para que me lembre desse não essencial. Foi-mos atirando para cima, um a um, como pedrinhas, olhando-me nos olhos, e havia neles a clara intenção de me acertar.
Agora que penso nisso, se tivessem sido pedrinhas, não me teriam doído tanto. Acontece que, naquele dia, eu tinha o coração pequenino, incapaz de perceber o abandono.

01/03/2018

Na senda de "Sou só eu?" # 13

que, quando outro condutor me bloqueia o carro com o seu, e olho à volta (sem esperança), depois dou uma apitadela simpática (elas existem, são assim duas seguidinhas, pi-pi), espero mais um tempinho (uns quê?, largos quatro segundos, ou assim), apito já menos simpaticamente (piiii-piiiii), espero mais um bocado (desta vez, dou-lhes bastante, quase três segundos que custam a passar como os dos agachamentos com a barra nos ombros, com pesos desumanos), e é que nada de me aparecer o bloqueador da minha vida, 
[congemino manobras impossíveis, imagino que vou ficar ali para sempre e um dia vão encontrar-me putrefeita ao volante (mesmo que esteja em esqueleto, por favor, alguém me penteie), elaboro mentalmente discursos imaculadamente ofensivos para o momento do aparecimento do meliante, suo um bocadinho das mãos e das pálpebras, pondero chamar o reboque, a polícia de intervenção militar, a brigada dos bons costumes, os bombeiros, os rapazes da obra (há sempre uma obra por perto) que me levantem o prevaricador no ar, a minha família toda, chamo pela minha mãe, brado aos céus por uma ajudinha nesta hora de aflição,]
e isto, ao cabo de menos de nada, tudo me dá para meter as duas mãos na buzina e já de lá não as tirar até ensurdecer a rua, o bairro, a cidade, até alguém chamar a ambulância do asilo de doidos ou até, olha o disparate, aparecer o dono da m. do carro que está a atravancar o meu e a minha vida toda desde que nasci, no século passado?
...
E eis que me surge no horizonte, negro e nervoso, uma de duas possibilidades:
1. É homem: corre para o carro, faz parkour, vem de braços no ar, a pedir desculpas a todos os santinhos e, já agora, a mim. Sorri, desdobra-se em penitências, só lhe falta ir buscar o cilício, cortar os pulsos ou dar o corpo às balas, quer dizer, às rodas, debaixo do meu. Geralmente, mete-se no dele, sai disparado como uma bala e desfaz-se em fumo;
2. É mulher: vem para o carro com a paz e a calma de uma procissão, talvez traga cristais nos bolsos, ou nem quero imaginar aonde. De caminho, só lhe falta fazer um bocadinho de moonwalk, para atrasar mais a coisa e exponenciar a minha irritação. Não pratica o contacto visual comigo, sequer faz um breve gesto com a manita (não, não é esse; esse, deveria eu fazer) como sinal de desculpas. Adivinho-lhe mesmo um semblante contrariado, toda a sua linguagem corporal grita "Mal educada!". Mete o rabo entre as pernas e mete-se toda, rabo incluído, dentro do carro. Faz uma micro-manobra, para não me facilitar a saída e me provar por A + B + C + D até Z que eu sou uma má condutora e uma azelha. Depois de me obrigar a chegar à frente e atrás cerca de dez vezes, ainda me fica com o lugar. E oh, efectivamente, a malcriada sou eu.