26/09/2023

A sala das pegas *

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Entro na clínica que fica num rés-do-chão, porta sempre encostada, é só empurrar, e sou invadida pela animadíssima conversa das cinco mulheres que ali se encontram, uma senhora de idade com o cabelo extremamente curto, queixas de unhas negras e os pés sempre levantados ao nível da anca — cada vez que os baixou, percebi que não chegava com eles ao chão e então mexia-os para trás e para a frente —, uma mulher gorda — ela é que disse “Eu sou toda gorda” —, a trabalhar no portátil e ao telemóvel qualquer coisa de carregamento de trezentos e quinze cabazes de Natal, enquanto falava com as outras quatro, uma terceira, completamente vulgar, cabelo pintado de vermelho, sandálias rasas, prateadas, que disse calçar o quarenta (outro dia ouvi, numa série de crime, um detective dizer acerca do esqueleto humano que havia sido encontrado, “Só pode pertencer a uma mulher muito jovem ou muito baixinha, o pé corresponde a um trinta e sete”, por acaso achei piada, porque nem uma coisa nem outra, mas acho que a tabela americana deve ser diferente da nossa), uma quarta mulher, a mais jovem de todas, seus quarenta anos bem estampados, vestida de adolescente, mascando ruidosamente uma pastilha elástica, declarando-se incapaz de usar os mesmos ténis brancos duas vezes, logo para lavar, e, de facto, os sapatos brilhavam como novos, os atacadores impecáveis, e, por último, mas não a última, a histriónica, vestido transparente com riscas largas muito coloridas, botas de cowboy, peito gigante e gingante, falando ininterruptamente, rindo a cada pausa, gabando seu gesto e modo a cada frase, um ruído impossível de ignorar, uma tormenta igual a um álbum inteiro de metal. As cinco taca-taca-taca, sobre roupa, sapatos, lide doméstica, truques secretos para a despachar mais rapidamente. A faladora entrou no gabinete de psiquiatria e julgo que ficou lá a viver, pois não voltei a vê-la. Pergunto-me até que ponto a alegria e a euforia não estão intimamente ligadas com a tristeza. As restantes quatro tinham ido só para lhe fazer companhia. Quando me apercebi que a minha consulta estava bastante atrasada, disse para comigo que talvez fosse melhor ir arejar a cabeça e o resto do corpo. Devia estar em transe ansioso quando abri a porta e saí, porque respirei fundo o ar misturado de árvores e escapes e considerei o barulho dos automóveis e das gentes que passavam uma verdadeira entrada no céu.

Ainda bem que nasci mulher. Se já tenho alguma dificuldade em aturar-me a mim, que direi aturar uma toda a vida?

12/09/2023

O já velho e eterno problema de fazer uma mala condigna

Vamos aceitar sem cerimónias que não sei fazer malas. Desta vez, despejei a gaveta das cuecas para dentro da dita, levei o dobro dos biquínis para os dias que ia ficar, levei apenas uns calções e uns ténis, um vestido para cada dia e umas calças caso chovesse, apenas uma parte de cima de pijama e seis de baixo e zupa com ela. Resultado: voltei com dezenas de cuecas limpas, usei todos os biquínis porque me dava ao luxo de fazer pausa de almoço, passei o tempo a lavar os calções de treino no bidé do quarto pois frequentei o ginásio até ao estoiro (dois quilómetros de cada vez na passadeira transformavam-me numa torneira de suor, o que vale é que não cheiro. A retirada de gânglios não tem só coisas más e a outra axila solidariza-se e também não cheira), usei as calças porque choveu mesmo, e tive que improvisar pijamas com t-shirts giríssimas que tenho. 
Este ano fiz férias no sul da nossa Espanha, escapando airosamente ao sul daquele Portugal seboso e chineleiro, que adora fazer filas para tudo, até para o pão que o diabo amassou. Do lado de lá, sessenta por cento dos hóspedes eram portugueses, o que também não é só vantagens. Queres perceber onde está um português, nem que seja na China? É o homenzinho que tropeça. É o que desconhece em absoluto a noção de espaço vital e fala alto e escuta tudo o que dizes. É o que come três pães ao pequeno-almoço, ou então ovos mexidos com um estrelado (saw it) e fatias de pão com bacon. Eu comi todos os dias um Donut, ora pequenino, ora grande, ora médio. Bem feita que me venha parar tudo ao donut pneu. 
No geral, a Península Ibérica é uma fartazana de varizes e celulite, e não é só nas mulheres. Mas as criaturas estão tranquilas com aquilo, quem sou eu para me ralar?
No geral, apreciei assaz as férias. Fiz muita praia, num mar que até permitia nadar, muita piscina, apanhei muito sol e a minha pele não berrou que só tem um ano de radioterapia, o meu cabelo não ficou com aquela cor de cocker spaniel (muito protector, muito chapéu), dormi e comi em excesso mas não pus um grama (devo ser muito criteriosa ou tenho uma balança burra), não bebi senão água e cerveja sem álcool. É por estas e por outras que julgo que um dia me canonizam, nem que seja à força.
No regresso, porque perdemos uma hora para fazer dez quilómetros derivados a um acidente (um carro foi parar ao talude, desconheço como é que se faz semelhante manobra) e tínhamos, ao todo, para almoço, quatro barrinhas de cenoura, dois Actimel* (ou Actimeis, como diz o povo), um pacote de batatas fritas com sabor a ketchup e um chocolate branco, para além de um pequeno saco de ração para gatinhos, porque nos tomámos de amores por uma gata com uns dois meses, que baptizei de Mira. Repartimos aquilo tudo, prescindindo da ração, mais porque ficámos empanturramos com a mistura anterior, e foi o nosso almoço, já não havia cá tempo para paragens. Não percebo como é que o meu aparelho digestivo não me manda à merda. 

* NMPPI

23/08/2023

Sutiãs chineses

A loja do chinês do meu bairro já pertenceu a vários donos — tanto quanto me lembro, os primeiros foram o casal Zhu e Jy —, e, de há uns bons anos para cá, está à frente do negócio um outro casal, de quem desconheço os nomes, porque não os oiço conversar. Ele percebe e fala um Português cheio de LL, mas corrente. (Fico sempre a pensar o que será da vida de um chinês que não consegue dizer os LL, como Feuisberto Uorenço Uauande. Em vez de “Não estlague”, se calhar diz “não estuague”.) Já ela, é uma verdadeira desgraça, tanto a entender como a falar. Mas ri muito, com os olhos em linha, o seu carrapito e o metro e meio de altura, acha divertido tudo o que eu digo. Há-de ser porque não entende. Encontra-me na rua, eu digo “Bom dia” e é vê-la toda grisada.

Vou lá muito, à loja deles. Têm sempre mil merdinhas que, se não fazem falta, passam imediatamente a fazer. Outro dia, andava eu a deambular pelo espaço comercial asiático quando me deparei com os sutiãs da minha vida: sem aros, sem copas, sem elásticos, sem costuras. Vi os tamanhos e, dos que havia, só me servia o preto. Vai de preto nas meninas, que bem precisam de ser bem tratadas.

Gostámos tanto da peça de lingerie, que vai de comprar as duas outras cores básicas: bege e branco. Entro na loja, faço sinal à chinesa que venha comigo e ela hi-hi-hi, lá me acompanha até ao recanto das intimidades. Pergunto pelas cores, ela hi-hi-hi, apercebo-me de que não há o meu tamanho, aproveito para perguntar se dá para tirar as duas almofadas, e ela, como não percebe um boi, apesar de eu ter gesticulado, grita, enquanto simula com as duas mãos dois enormes peitos: “Glande!”. E mais dez hi-hi-his, os ombros encolhidos até lhe desaparecer o pescoço, um toque solidário no meu braço e eu: “Gostaria ao máximo de não ter que discutir sutiãs com o seu marido, mas apercebo-me de que tal é impossível”. O que a doida riu.

Foi só chegar ao balcão, dizer o que queria e, passados dias, já lá, e depois cá cantavam os ditos suportes. O homem não se riu vez nenhuma, mas, em compensação, também não chorou.

21/08/2023

Chico-espertice

Entro na farmácia do hospital convencida de que vai ser canja de galinha despachar-me num instante: Agosto, toda a gente fora, só peregrinos pelos passeios, nenhum iria ali tomar a vez de ninguém. Afinal, foi fígado. Com ossos e espinhas e nervos: sessenta pessoas à minha frente. Esquecera-me que a doença não mete férias. Mas não posso ir-me dali, que é a vontade que tenho, porque preciso mesmo daqueles comprimidos para sobreviver: são os que evitam que o cancro desate a passear pelo meu corpo. Prescrição de mínimo cinco anos, máximo dez. Se sobreviver até à última toma, já dou por ganha esta coisa, sei lá que nome lhe dar. 

Faço o que é costume fazer quando tenho muita gente à frente: conto o número de guichets, o tempo médio de atendimento de cada um e faço a divisão, para calcular quanto tempo vou esperar. São seis, um deles não tem ninguém, conta cinco. Assim à queima-roupa, não consigo fazer cálculos: entra uma mulher com uma farda de auxiliar e fica quinze minutos a conversar com a farmacêutica do guichet 3. Depois sai, a outra abandona o local de trabalho e, ao cabo de cinco minutos, ambas voltam, para conversarem mais um quarto de hora. Começo então a desconfiar que o tereréu não é sobre trabalho, mas quem sou eu? A mulher sai de lá com um saco de plástico com seis caixas de magnésio e é aí que puxo as antenas para fora, uma vez que o contador das senhas não anda para a frente (nem para trás, vá lá). Entra um homem com uma menina no carrinho, aí pelos seus cinco anos, sem qualquer espécie de incapacidade para andar. Atrás dele, uma mulher cheia de saúde, mas agarrada aos rins e com uma expressão de sofrimento bastante circunstancial. Já cá ando há demasiado tempo e vi demasiadas caras em agonia para cair na daquela. Começo a sentir as tairocas a enfiarem-se-me nos pés, revejo mentalmente a lei - crianças ao colo com menos de três anos - e já pondero ir atrás dos três para lhes dar uma breve luz jurídica, qual fada Sininho falante, quando me lembro das doutas palavras de uma das minhas orientadoras espirituais (Respire fundo e conte até dez), respiro como se tivesse acabado a maratona, conto até dez saltando os ímpares e já vou levantar-me quando aparece um rapaz com meias cirúrgicas vestidas e um par de muletas, a cabeça até ao chão, todo ele um calvário que me dá para pensar que talvez seja primo daqueles pedintes dos semáforos da Praça de Espanha e de Sete Rios, que são demasiadamente deficientes e coxos para ser verdade. E então, ao cabo de uma hora disto, percebo que os prioritários são tantos que os outros vão ficando para trás e a m. do ecrã das senhas não avança nem à paulada. Calma, Maria Linda de Blue. Vai-te informar. Boa tarde. Pode informar-me se quem tem atestado de incapacidade também é prioritário? Voz de desenho animado: Sim, sim, a senhora exibe o atestado e é atendida com a senha de prioritária. Os cinquenta e dois que ainda faltavam para a minha vez transformaram-se em dez. 

Chico-espertice? No fundo, não. Uma, foi tomar meia-hora a quem estava à espera. Outros, foram com uma criança enorme no carrinho. O outro levava meias brancas e canadianas. 

Usei o atestado. Não gosto, não quero ser definida por uma doença ("Aquela que tem cancro", como dantes "Aquela que tem quatro filhos"), mas, já que tenho que a carregar e ela me confere pequenos alívios, que carregue o diabo os outros que vão para lá de meias e coisas assim parecidas.

(Já muitas vezes ponderei ir para os hospitais, repartições de finanças, centros de saúde e outros infernos que tais, a arrastar chinelos, de bata de nylon vestida - que, como se sabe, cheira a bedum -, o cabelo com um carrapito oleoso ao alto da cabeça, desmaquilhada, sem verniz e a chuchar nos dentes, aos berros para um telemóvel assuntos da vida da Lina e do Mário, porque acho que, assim, seria mais bem tratada nesses lugares.)