07/09/2024

Ela já não fala tanto (e que Deus a conserve assim, como um pickle, muitos anos e bons)

Não sei por que diachos fui embora deste modesto espacinho e não voltei mais cedo, mas acredito piamente que hoje para aqui ando, cheia de entusiasmo a bater as teclas do meu ruidoso teclado, e sou bem fulana para me evadir e só voltar daqui a dois meses, quando tiver assunto. Não que hoje o tenha, mas preciso prementemente de registar aqui dois ou três factos da minha existência. 

Há aqui um que vai, com certeza, deslocar-me placidamente para a categoria das elitistas classistas, mas, já em minha defesa antes que venha de lá a primeira pedra, tenho a dizer que eu sou a entidade empregadora nesta relação. 

A que falava muito calou-se para sempre, isto há coisa de cerca de um mês e meio, daí que já não espere que a voz lhe regresse. Deu-se que esteve de férias duas semanas e, no dia anterior a proceder a sua rentrée, à noitinha, então não é que me manda uma mensagem a dizer-se doente há muitos dias e que não poderia trabalhar nos dias seguintes? Saltou-me logo a mola, que está sempre mal apertada, e respondi-lhe que estava farta das semanas inteiras de férias que a pessoa fazia, com prejuízo do meu trabalho, do meu descanso e, sem querer pôr um peso pesado na argumentação — que não pus —, já para não falar na minha saúde. Madame Dona Senhora ainda me devia, e deve, dois dias de trabalho, que me pediu para tratar de uns assuntos, que eu lhe concedi imediatamente sem questões (não fosse ela desatar a língua e eu, sim, ter que meter baixa enquanto entidade patronal, pois, como se sabe, ela seca-me até eu ficar em modo esqueleto), ela a insistir para tratar de uns assuntos e eu calada que nem um rato, já me cheirava a gato por todos os lados ["Queres ver que esta me vai pôr a trabalhar de graça para ela, para além de lhe fornecer duas abébias seguidas?"], nunca soube que raios de assuntos queria tratar ela, pois normalmente são rixas de bairro e eu já dei para esse peditório. Aproveitei e consultei o mapa de férias dela, ilegalíssimo porque eu não sou tida nem achada na escolha dos dias, e descobri para lá uma semana em Novembro, inteirinha, em que me iria faltar porque faz anos nessa sexta-feira. ["Ai, que maçada, tenho ao meu serviço há vinte e sete anos a rainha de Inglaterra e só hoje é que descubro? Naturalmente que Sua Majestade Venerandíssima precisa de uma semana para comemorar os seus cinquenta anos!"] Bumba, foi a talhe de foice, cortei a segunda e a terça dessa semana, para que me devolvesse então os dois dias que usou para tratar de assuntos.

Então não querem saber que Votre Majestée anda amuada comigo desde aí? E como é que eu sei? Fácil: entra de manhã, zurra "Bom dia", não responde a nada do que lhe digo, às minhas perguntas vai um "sim" ou um "não", no máximo, e suspira. E tosse. Constantemente. Quando não é uma, é outra. Mas eu tusso mais alto, literalmente: efeito secundário de uma droga com que me drogo. Mas ninguém a bate a suspirar. "Ai" quando eu passo, "haaai" quando pousa roupa passada em cima das camas (tem que se inclinar, compreendo que é chato), "haah" quando tira um tacho do armário, toda uma série de espasmos que já ponderei seguir-lhe os passos, para ver se comigo também resulta assim. 

Não é com vinagre que se apanham moscas, lá dizia o dono da "Dum-dum". E eu sou uma mosca. Chorem-me, expliquem-me o que lhes vai na dorida alma, solucem-me, funguem-se-me dos narizes, escrevam-me uma carta que me faça largar uma lágrima e cinco gargalhadas, que me levam até ao raio que já me partiu. Agora bezerras? Amuanços? Nem noto. Ando numa alegria que a endoidece. Trabalho mais e melhor, saio de casa sem alguém me perseguir até ao elevador com seus assuntos de m., já não tenho que saber quantos filhos tem cada irmã das dela e saber os nomes e datas de nascimento deles de cor (nunca consegui decorar, sei que há um Daniel e uma Daniela, mas depois é todo um sortido de Igores que uma pessoa rebolava os olhos e arredondava a saia de cada vez que ela se especava porque eu desacertava as Soraias com os Telmos). 

Chiu. O silêncio é de ouro. 


23/07/2024

Fui a um Açor

Não posso afirmar que fui aos Açores, porque aterrei numa ilha só, a Terceira, cujo nome revela inequivocamente que os nossos navegantes já sabiam contar até três. Com aquele pavor que me assiste quando a ideia é voar, pedi socorro a uma das médicas que me atura e ela recomendou dois xanaxes quando fosse para o aeroporto e outros dois quando fosse para o avião. Assim fiz, e não posso dizer que tenha corrido mal, pelo menos não tive que sacar do saco de papel para hiperventilar lá para dentro. O comissário explicou as regras de segurança caso aquilo caísse aterrasse mal, braços para os lados, braços para trás, braços para a frente, toda uma dança que me deu vontade de lhe ensinar uns passitos básicos de latinas, mas os xanaxes mantiveram-me colada à cadeira, que parecia que tinha utilizado Araldite na raba. De qualquer modo, tinha à frente as instruções do que deveria fazer caso o engenho desse em capotar, e não tinham nada a ver com o que ele estava a dizer: havia uma rampa insuflável a sair da porta e a acabar não sei aonde (no mar?), para uma pessoa se atirar, descalça, qual aquaparque. Não percebi por que é que não é obrigatório irmos todos de fato de banho por baixo das vestes, pois pode ser muito útil. Soube também que, à altitude a que uma pessoa chega dentro daquilo, se atingem temperaturas negativas ao nível do Ártico, o que me levou a lamentar mentalmente que não existisse, na composição do kit de segurança, um para-quedas, um blusão quentinho e umas luvas grossas. Era o mínimo, embora saiba que chegaria cá abaixo com a boca cheia de cieiro até ao nariz. 

Aquilo levantou logo voo, não fez como antigamente, que dava uma voltinha pelas pistas todas e depois começava a acelerar e zás. Agora levantam logo, não dão oportunidade a uma pessoa enervada de se preparar. Voou sem grandes tremuras, e as que sofreu foram avisadas pelo comandante. Por acaso, estive para lá ir protestar que o achava demasiado distraído com mensagens de voz para a cabine, em vez de tomar atenção à "estrada". Mas quem sou eu? O homem mandava-nos manter os cintos apertados, e eu, que levava uma roupa sem cinto nenhum, presumi que era aquela coisa com uma fivela indecifrável que, para apertar, tive que pedir ajuda. 

A Terceira é linda de morrer, mas eu estou viva. Não se vê uma beata no chão, um cocó de cão, um papelinho, uma folha de plátano (deve ser porque não há plátanos). Tem praias de querer ficar a morar ali para sempre, água parada, quentinha como no banho (duche de Verão, mais propriamente), zero porcarias, até me dei à maluqueira de nadar até às bóias. Depois voltei.

Vi a gruta e o algar, desci cento e setenta e tal degraus (o meu TOC põe-me a contar estas m. que não interessam nada) e a seguir tive que os subir. No último, a vontade era deitar-me no chão e fazer a minha sesta, mas aquilo era bastante húmido. 

Toda a paisagem é de cortar a respiração, mas aguentei firme e nunca me faltou o ar. Estava na terra onde existem mais vacas do que pessoas. E ainda vi crias de veado (que podiam ser vacas mascaradas), que sei perfeitamente que nenhum era o Bambi porque ele era filho único.


Ah, e acreditem ou não, abracei o fundador da nação. 

Quando voltei, consultei a médica dos xanaxes, contei como foi, disse que tinha conversado toda a viagem, e ela, estupefacta, perguntou se, com aquela dosagem (0,5 mg x 4 = 2 g) eu não tinha dormido nada. Que não, que nem uma pinga de sono. Engelhou-se toda e disse: "Para a próxima, toma seis". Ainda passo por mentirosa, já agora.


02/07/2024

Leoa negra

Cada vez que ali vou, venho de lá doente. Parece um anacronismo, só ali vou porque também eu. E, de tempos a tempos, convém espreitar se o bicho não está à espreita. Passei para as consultas semestrais, o que foi uma escalada imensa na invisível montanha que tenho para subir, algumas vezes com pedrinhas e espinhos que se espetam na minha carne para me fazerem doer a alma. Basta ter uma doença paralela — gastroenterite, como há duas semanas —, que é ali que vou. Uma espécie de oráculo que sabe tudo e tudo resolve às pessoas como eu, doentes oncológicos. Isso obriga-me a lá ir muito mais do que duas vezes por ano. Quando foi das dores de barriga, na espera daquela sala tenebrosa, encontrava-se um senhor com uma peça plástica na garganta. De minuto a minuto, emitia um som de asfixia e assoava-se por ali. Eu sou forte, já vi muitas coisas, já fui sujeita a dores inimagináveis, mas, naquele dia, enfraqueci até ao limite, disse à senhora que estava ao meu lado que ia desmaiar e agarrei a cabeça para poder baixá-la. Pus a possibilidade de bater com a cabeça no chão, mas pareceu-me que qualquer coisa era melhor do que voltar a assistir à agonia do homem. Ela deu-me um rebuçado, abençoada. 

Foi ontem a consulta semestral. Enquanto esperava, fiquei numa saleta improvisada do hall dos elevadores. Ao meu lado, estava uma enorme africana, braços largos de abraço gordo — os melhores, não é? —, pés gigantes em chinelas de borracha, trancinhas de extensão vermelhas e um vestido maravilhoso, certamente feito à medida, de florzinhas encarnadas. Apoiou os potentíssimos cotovelos na imensidão das pernas, a cabeça tombou-lhe para as mãos de festas grandes e adormeceu. Assim que o fez, ecoou pela sala, pela outra ao lado e pelo corredor um ressonar, um ressoar, um ronco de exaustão. Ao cabo de vinte minutos fez-se silêncio, parou a ressonância que já me embalava a mim também, e acordou uma cara de criança, lisa e bochechuda, que quase ia jurar já ter visto numa imagem pintada, tamanha era a obediência aos cânones de beleza dela. Levantou-se da cadeira, o quadril gigantesco a bambolear no vestidinho fino e dirigiu-se a um rapaz que eu tomei por ser marido dela, a quem tratou por filho. Ele tinha o tumor mais agressivo que já vi ao vivo: num olho, em metade da cara. Tudo tapado por uma espécie de lenço de tecido fino e uma gaze. Não percebi o nome dele, porque as enfermeiras o trataram sempre por "querido" ou "meu amor". De prender a respiração, este sinal que elas, sem querer, dão. 

A mãe, que provavelmente o deu à luz com catorze anos ou menos ainda, estivera afinal a fazer uma reza de leoa, um pedido por conta de uma aflição, uma promessa irrealizável pela sua cria. O trovão que lhe saía da garganta mais não era do que um rugido de leoa acossada.


22/05/2024

O meu percevejo

Admito que sou muito atreita: tudo vem ter comigo, ele é cães a ladrar, ele é teias dos plátanos, ele é até piolhos — foram duras, as duas vezes que me atacaram, pois passei as fases quase todas do luto, desde a negação (muito duradoura, enquanto eles picavam e eu dizia que tinha uma dermite não seborreica, como se isso existisse), até ter tido que saltar a fase da raiva e ter passado directamente para a da aceitação quando, uma noite em que dormia plácida, um deles se atreveu a passear na minha testa, oh, meu amigo, aquilo foi morte imediata para ele, e pânico sem botão onde carregar para mim. A única lição que retirei dessas duas pragas foi a de que mãe que apanha piolhos, é mãe que abraça e beija. As piolhosas são as melhores mães. 

Por razões que não interessa aqui explicar, mas há que dar umas dicas, no passado domingo fui visitar um dos meus velhinhos — já tenho muito poucos, o que significa que estou quase a tomar-lhes a vez — que tinha tido há semanas uma praga de percevejos em casa, mas coisa para afectar colchões, sofás, maples, enfim, toda a mobília com panos, cortinados incluídos. Mas tinha mesmo que lá ir: íamos buscar um carro e eram precisos dois condutores para o regresso. Além disso, acho que valeu a pena, porque consegui fazê-lo dar a maior gargalhada que algum dia lhe ouvi, quando a cadela da cuidadora, que já teve cancro da maminha e agora tem no estômago, se deitou aos pés dele e eu disse: "Deixa lá, querida, estamos as duas na mesma". 

Tinha perguntado à cuidadora se era seguro lá ir, ela que sim, que estava tudo muito limpinho, e que nem ela nem o senhor tinham picadas novas há semanas. Fui, um bocado desconfiada, lembrando-me do caos que foi em Paris, com hotéis a fechar, infestados da bicheza, o que até compreendo. Eu, se fosse hotel, também fechava, então ia arrendar quartos com animais lá dentro? Há mínimos. Mas associei o histerismo ao do papel higiénico na pandemia (e nós, fabricantes de papel higiénico, achámos o quê? Que íamos defecar sem parar enquanto estivéssemos confinados?). Sentei-me numa cadeira estofada e ali fiquei meia-hora, falando e rindo, tudo muito corriqueiro. Vai daí, saio lá de casa e sinto picos nas costas, assim como se elas fossem uma bebida com gás. Queixei-me a cônjuge, que me respondeu que "isso é psicossomático". Pois, não eram as costas dele. 

Fiz a viagem de oitenta quilómetros, pica, pica, pica, mas cheguei inteira, apenas com menos milionésimos de mililitros de sangue no corpo. No dia seguinte, as minhas costas pareciam as de um adolescente, tive mesmo vontade de ir para a praia a sentir-me jovem, sei lá. Em vez disso: lençóis de cama, resguardo e toda a roupa branca que tinha usado no dia anterior, tudo para a máquina a 60º, a roupa preta usada naquele dia, para o congelador por quatro dias (ainda lá está, vou cheirar a lombinho e a almôndegas por uns tempos), secador do cabelo no colchão, no sofá onde tinha estado, na cadeira do condutor, pomada de cortisona, anti-histamínico (que não faça dormir, senão nem um terramoto me acorda), creme para as comichões ao preço de um metro de intestino delgado, e vá lá que não me mandaram enfiar numa banheira cheia de enxofre. 

O que é certo é que não apareceu bicho nenhum, as borbulhas não alastraram e estão a secar. O meu percevejo era macho — caso contrário, ter-me-ia deixado bebés nas costas, e nada. Seria uma fêmea estéril? Nunca saberei —, pouco fiel à pessoa, mas muito à santa terrinha, o que, na essência, foi a melhor opção. Eu não poderia aturá-lo por muito tempo, acabaríamos à briga, um de nós teria que morrer e era demasiado trágico para arriscar tal cenário.

Adeus Percy*, até nunca mais.


* Percy: Significa “furar barreiras”, “perfurar cercos” ou “filho do fogo”. Inicialmente, Percy foi um sobrenome inglês toponímico, derivado de uma cidade normanda chamada Perci-en-Auge. Este era um sobrenome bastante comum entre a nobreza inglesa.

Fonte: https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/percy/