27/11/2023

Valor sentimental

Ora aqui está uma expressão da qual não gosto, mas uso. 

Estou desde sexta-feira a passar tormentas sem boa-esperança, pois perdi a minha pulseira mais querida, e de que dependia quase toda a minha alegria e o meu esplendor estético. Sobretudo, porque me foi dada por uma das minhas crianças, há não sei quantos anos, tantos que são. 

Sei que a perdi entre a manhã e as cinco da tarde da passada sexta-feira. (Não sei se já aqui disse, mas todas as minhas sextas-feiras são 13.) Quando punha o relógio, era impossível não notar a falta da pulseira, que dormia comigo, tomava banho comigo, tomou todos os banhos de mar comigo, só não fez alguns exames e tratamentos incompatíveis com ela. Assim que me apercebi que não a tinha, para além da tontura e vontade de me amandar pela janela, desatei rapidamente a fazer um rewind do dia todo. Fora de casa, supermercado e duas vezes papelaria. Liguei para ambos, nada. Mesmo assim, fiz o caminho até à papelaria pela escuridão das noites antecipadas e voltei na desolação que já me enchia o peito. Procurei nas mangas do casaco, nos bolsos, na roupa toda que tinha vestida, fui ao carro, que tem uma zona que é Nárnia, as coisas caem para lá e nunca mais aparecem, desviei banco do condutor, liguei a lanterna, fui ao porta-bagagens, fui ao fundo do poço (esta é exagero, ainda bem que não tenho um poço, senão já andava a descer as escadas de fato de mergulhador e óculos e tubo e garrafa de oxigénio). Procurei nos lugares mais inóspitos do lar: frigorífico, congelador, gaveta dos talheres, gaveta dos utensílios, área da máquina que diz que cozinha por a gente, bolso do avental, tudo à minúcia, pois tinha estado a cozinhar de manhã e à tarde (na tola esperança de não ter trabalhos ao fim-de-semana), por baixo de todos os armários que não são rentes ao chão (tenho uma gata que é gatuna e esconde tudo por baixo de tudo), dentro da minha cama (desfizi-a, sim. E sei perfeitamente que se diz desfi-la, mas perdi várias capacidades por causa disto), sacudi almofadas, edredon e coberta, às tantas já me sacudia toda e então fui dançar para desenervar. Sábado de manhã estava desvairada a dizer aquela frase estúpida: "A esperança é a última a morrer", quando isso até me lembra uma mulher que eu conheço e se chama Esperança. Tem uns pêlos no nariz que é de não prestar atenção nenhuma ao que ela diz. Depois da dança de sábado, pedi a cônjuge que me deixasse no supermercado (a frota estava em situação precária, um sem bateria, outro emprestado a uma das crianças), pois queria encontrá-la, nem que fosse esmagadinha por pneus, era minha, homéssa! Quem por lá passou no sábado perto da hora do almoço, era ver uma idosa de lanterna em punho, leggings e saia curta de dança, anorak de capuz, a revistar todos os lugares - por baixo dos carros incluído - e zonas adjacentes, com um ar tão suspeito que até um segurança se me acercou, mas não tinha tempo para conversa fiada e fui-me para o supermercado. Corri os corredores todos, varri à mão salsa e coentros e frango e bifes e tofu e seitan e laranjas - aquela rede que as envolve parece feita para pescar pulseiras - e tomate pelado e gelados e queijo mozzarella, num inacreditável desvario, sem carrinho nem cesto, a remexer em artigos (aparentemente) de forma aleatória, devem ter um filme meu lindo de se ver. Fui ao balcão do apoio ao cliente, e sim, precisava de apoio, precisava urgentemente que alguém me desse um ombro, enquanto eu gritava "Ai, minha rica pulseira!", tirei a senha e sequei enquanto um casal de idosos mandava embrulhar quatro brinquedos gigantes e eu lhes rezava pela pele. Chegou a minha vez, foram ver ao dossier e depois a uma caixa, e nada. Voltei para casa a pé, num desconsolo que só eu é que posso avaliar. 

Como tenho cinquenta por cento de possibilidades de a minha pulseira estar em casa, só ainda não levantei móveis, mas de resto, afirmo aqui sem vergonha que me tornei um perdigueiro. De repente, lembro-me de um sítio onde poderá ter caído (gaveta das meias, gaveta da roupa interior, sete gavetões e em todos os roupeiros), e lá vou eu farejar mais um recanto. 

Caso a tenha perdido na rua, estimo que a pessoa que a encontrou a perca também e tropece no tapete da entrada de casa, parta os dentes da frente e ainda lhe dê uma copiosa diarreia, daquelas que não se seguram na rua e é necessário fralda. E lhe dê a sarna. E uma incontrolável camada de piolhos. 

Se fosse eu, entregaria a pulseira nos perdidos e achados? Claro que não. Fazia o que faço sempre: ia lá e deixava o meu telemóvel sem descrever o que tinha encontrado. Só "pulseira", com a advertência de que entregaria a quem me desse a melhor descrição. Então não encontrei já um pc? Não encontrei já uma carteira cheia de documentos (vazia de dinheiro, óbvio)? Não encontrei já uma enorme quantia em dinheiro dentro de um envelope (e também encontrei logo a pessoa que o tinha perdido, que não me viu apanhá-lo do chão, era mesmo a dona, descreveu quanto era e tudo)? Preciso lá agora das coisas alheias? Para isso, ia roubar, não andava cá nesta penúria de trabalhos freelancer (que me matam e esfolam viva por uma merreca), e tempo para textos destes, que têm um interesse equivalente ao da reprodução das ervas daninhas.

É o valor sentimental. A própria criança que ma ofereceu, disse: "Deixa lá isso, é só um item. Já me deste uma ideia para o Natal". Não é só um item, era mais um dos meus pés de laranja lima, filha adorada minha.


 

22/11/2023

guerras

Chegava da rua com três insignificâncias no saco, e estavam de um azul igual ao do céu de hoje os olhos do homem de rabo-de-cavalo e grandes entradas, arrumando coisas na bagageira. Viu-me, endireitou-se e disse Bom dia, eu instintivamente repeti o cumprimento sem saber de quem se tratava, mas depois estaquei diante dele, Ah, o ucraniano que faz toda a obra nas casas e também já esteve na minha. Viu-se obrigado a deixar a minha obra a meio, por ter que ir à sua terra natal, visto que o pai piorara da doença. Por lá ficou seis meses mas, quando voltou, ainda a guerra não rebentara e o mundo vivia na santa paz das inflações. 

Perguntou-me se estava melhor, eu disse que sim, mas ele não ficou muito certo disso. Expliquei-lhe da vigilância apertada, das análises, exames, consultas, medicamentos, e ele, com os olhos cada vez mais azuis e cristalinos, disse-me: “Tens os olhos a brilhar”. Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça, “Custa muito não poder sonhar a longo prazo”. “É uma guerra. O meu pai perdeu essa guerra”, e era mágoa em estado líquido que lhe ondulava nos olhos, sem nunca os baixar. “É uma guerra, sim. Uns morrem, outros não.”

15/11/2023

O universo também não ajuda nada

Fui a uma palestra sobre alimentação de senhoras que tiveram cancro da mama, no âmbito de um programa em que me inseriram. Deixei Rosinha, minha canoa, num parque ao ar livre, porém debaixo de uma passagem superior. Lá chegada, sentei-me, observei as restantes pré-palestradas, todas significativamente mais velhas do que eu, menos uma, que é a que tem o ondulado mais bonito de todas. A primeira vez que a vi, perguntei-lhe se era consequência dos tratamentos (o cabelo renasce com outra textura e, às vezes, outra cor. O meu veio encaracolado e branco, vá-se lá explicar esta última). Ela respondeu-me que sempre o teve assim, e eu anunciei-lhe, como se ela soubesse o truque: “Eu quero igualzinho”. Nas outras, vi muitos edemas, muito peso a mais (por falar nisso, as minhas calças 38 deixaram todas de me servir, comprei umas 40, agora caem-me), muita grisalha, muito sobretudo num dia não tão frio que justificasse. A palestra foi dada por uma nutricionista magra (aleluia!) e, basicamente, era a explicação da roda dos alimentos: o que podemos ingerir, o que não podemos e em que quantidades. Tirei imensos apontamentos, a minha letra foi diminuindo de tamanho até quase chegar a invisível. Tenho a motricidade fina toda lixada. Saí muito esclarecida e pouco convicta de que me vou meter naquela prisão redonda só para ter mais alguns anos de vida. Engordei para aí uns três quilos nestes dois anos,  provavelmente derivados dos tratamentos e da pastilhagem diária, mas não vou amandar-me a um poço a propósito. Danço cinco vezes por semana, é essa a minha roda.

Mas não era a isto que eu vinha. Chego ao parque de estacionamento, coloco o bilhete lá naquela coisinha óptica e diz a máquina: “bilhete inválido”. Entretanto, formava-se uma bichinha atrás de mim, tudo muito solidário, “Ai, agora como é que a senhora sai daqui?”, “A senhora venha atrás do meu e, quando a cancela abrir, passamos juntos” (eu já a ver-me finada, degolada por uma cancela de parque de estacionamento), “A senhora peça ajuda”, já eu ligara para cônjuge, “O que é que queres que eu faça? Vem para casa e amanhã vais aí buscá-lo” (a ver se não me esqueço de o retirar dos contactos de emergência), já eu premia com todas as forças de meu indicador o botão de SOS da máquina e nada, o homem devia estar a dormir lá dentro, já eu ligava para os dois números de assistência, um não atendia, o outro dizia que só funcionavam num raio de um horário que, obviamente, não incluía o meu. Tentei outra vez na porra óptica, “bilhete inválido”, Cristo, que merdas tão grandes que só a mim sucedem. Carreguei então de novo no botão de SOS e lá hei-de ter acordado o humano, “O senhor desculpe…”, “Ó minha senhora, eu estou a trabalhar” [ninguém diria, há dez minutos, se calhar tinhas ido fazer cocó enquanto eu me espremia aqui dos nervos]. Mas foi útil. Fez-me ler o bilhete todo, hora de entrada, número de código, nome do parque. “A senhora está no parque errado”, ah, eureka, fico-lhe muito agradecida e até estimo que a sua inoportuna evacuação tenha decorrido pelo melhor. Mas a sério, fiquei desconfiada que mudaram os parques de lugar só para medirem a minha capacidade de sair de uma situação.

Quanto a mim, não sei se estou pior ou só mais velha.