25/04/2022

O céu é um limite

Quero agora saber onde é que foste beber a tua fé. Quero agora uma igual para mim. O que é, onde fica o teu porto seguro, o teu abrigo, o teu ombro, o teu colo, a mão que se estende na tua direcção, a tábua de salvação, e outras metáforas semelhantes que não me ocorrem agora? Quero acreditar, quero também essa certeza de que vai correr tudo bem, que tudo acabará bem, que até eu ficarei bem, seja onde e como for. Que existe algo maior do que eu, que me fará companhia independentemente da duração do calvário, do tamanho e do peso da cruz.

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Íamos em quê? Trinta anos de amizade, ou bastante mais do que isso? E agora desapareceste, quando me soubeste doente. Não que precise mais de ti agora, nestas coisas é assim mesmo como diz o dito: quem está, está; quem não está, estivesse. Mas quero perceber, daí ter-te perguntado a razão desse afastamento, logo agora. Apareceste via mensagem escrita, por ocasião da Páscoa, desejando-me uma “santa Páscoa”, com muitos bonecos de pintainhos e raminhos. Não me falaste em amizade, na tua vida que eu sei descomplicada, nos dias que voam. Pediste-me apenas perdão e manifestaste a esperança de que eu um dia entenda as tuas fragilidades. Fiquei, então, com mais uma incumbência para a minha vida, imagina: entender as tuas fragilidades. Um dia, que cómico: quando eu for dada como curada ou como perdida? Queres escolher agora?

Pergunto-me quanto tempo mais duraria a tua ausência se não fosse a “santa Páscoa”. Entretanto, se dependesse só de ti, todo o meu percurso seria de solidão e desapoio. 

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Não tenho um rumo religioso muito bem definido, pode ser que ande perto da definição de católica não praticante. Não tenho paciência nem tempo para ir todos os domingos ouvir as palavras lidas de um homem cumpridor e enfadado, lado-a-lado com mais não sei quantas outras almas que crêem, mas também precisam de ver e ser vistas, de apaziguar as pequenas tormentas do dia-a-dia, ou sei lá por que razões o fazem. A minha conversa com o meu Deus é em discurso directo, às vezes zango-me, ralho, a maior parte das vezes peço. E não é por mim.

Dir-me-ás o que dizem os tais praticantes sobre os que não frequentam o vosso culto: que é mais fácil ficar em casa do que ir ouvir a palavra do Senhor. Sim, até concordo. Mas também é mais fácil ir à missa todos os domingos bater no peito, por mea culpa, por mea tão grande culpa, e encontrar assim a paz, depois da punhalada num amigo ao qual só precisavas de ter dado essa mesma mão que bate, em contrição, religiosamente, todos os domingos no teu peito cheio de fragilidades.




23/04/2022

Destravada

Tínhamos como intenção, minha Rosinha e eu, estacionar num parque de estacionamento de um supermercado, lado-a-lado com o carro de outro condutor que acabara de fazer a mesmíssima manobra. E assim fizemos. O senhor saiu da viatura dele, foi ao porta-bagagens remexer não sei em quê, quando me apercebi de que o carro dele estava a andar sozinho, recuando na sua direcção. Curiosamente, o homem também deslizava para trás, numa óbvia impossibilidade de ser colhido pelo próprio automóvel, como se ambos estivessem em cima de um tapete rolante, ou a fazer moonwalk, sempre à retaguarda. Mas o que é que o neurónio louro/ ansioso/ incapaz de raciocinar algo que não seja sempre A tragédia, processou logo? “O homem vai aqui morrer esmagado pelo próprio carro à minha frente e eu não terei movido uma palha para o evitar”. Mais nada, isto logo pela manhã, quase madrugada, eram umas 10:30. Então, vai de reagir, como faço sempre nas situações de pânico (mesmo naquelas que não são, como se verá pelo exemplo desta), valha-me ao menos isso, que não sou dessas que “ai, eu paraliso”, ou seja, “mais um mono para carregar se houver um incêndio, estúpida”. Bati no meu próprio vidro, já que não conseguia abri-lo (motor desligado), tentei apitar (motor desligado), e, quando tomei a decisão que considerei certa — abrir a porta e gritar-lhe que tinha o carro destravado —, já o homenzinho podia estar falecido sob sua máquina, mas ao menos eu tentara salvá-lo e isso, parecendo que não, conta pontos não sei aonde. Mas não, ele continuava a mexer no interior do porta-bagagens, recuando à medida exacta em que o carro dele recuava. 

Percebi, nesse momento, que era eu quem tinha o travão de mão desligado e que Rosinha avançava, felizmente sem que houvesse qualquer obstáculo à nossa frente, caso contrário lá se teria ido com os porcos mais um pára-choques (que é para isso que eles servem, literalmente).

Moral da história? Acho que não há. Pus um chapéu sobre Natércia, para me disfarçar de Greta Garbo, ainda me cruzei várias vezes com o senhor nos corredores do supermercado, ponderei desculpar-me com a seguinte frase: “Afinal, a destravada era eu”, mas o ar atónito da figura de cada vez que me encarava era tal, que deixei para uma próxima.


16/04/2022

Pilosidades oculares

Hoje pus pestanas postiças pela primeira vez na minha vida. Quer dizer, já tinha experimentado, mas a própria colocação havia-se revelado algo de parecido entre uma luta de cola, pêlos rígidos e nervos, com um resultado final não muito longe do que conseguiria a traveca de Almada, pestanas gigantescas à drag queen, as da direita coladas para um lado e as da esquerda para o outro, quase a meio da pálpebra, só faltava colá-las na testa. 
Na perspectiva de ficar sem as minhas, mandei vir umas especiais de corrida, naturais (com tamanho próprio para mulher), elaboradas por alguém sobrevivente a um cancro, o que, se nada garante quanto à eficácia do produto, pelo menos dá-lhe uma credibilidade acrescida relativamente às pestanas que parecem capachos extensões, que ainda estou para saber como é que alguém aguenta aquilo dependurado das pálpebras por cinco minutos que seja.
Correu mal, a minha enésima tentativa e primeira colocação. Estava enervada de me ver, de dia para dia, com menos pestanas. E a não caírem simetricamente, o que só estimulava o meu TOC com assimetrias: caíam mais da pálpebra superior direita e da inferior esquerda, mas isto faz alguma lógica? Deviam cair só as de baixo, ou então na mesma proporção à esquerda e à direita. Não, uma desarrumação impossível de disfarçar com rímel, uma indómita vontade de cortar tudo rente.
Enfim, hoje acordei determinada. Tenho um jantar com amigos — só para que conste, eu tenho amigos e que jantam comigo —, e, já que tenho que ir com as unhas todas negras, cabelo postiço e sobrancelhas pintadas, ao menos que leve pestanas nos olhos. Já não digo buço.
Aquilo tem um autocolante transparente, “invisível”, que até dá para maquilhar por cima. Mas a aplicação é o mesmo drama que é para qualquer par de pestanas postiças: são dedos a mais, pelinhos que se entortam, a cola é sempre necessária porque a curvatura das postiças nunca corresponde à da nossa pálpebra e as pontas ficam espetadas, a pessoa usa pinça (correndo o risco de espetá-la num olho e ficar invisual à custa de), prega com o pelame no sítio errado da pálpebra, descobre rugas que nem sabia que tinha (ou nasceram entretanto, com tanta contrariedade), toda uma briga entre a nossa minha teimosia e a necessidade de me sentir bela. 
Levei uma hora nisto. Aguentei, posteriormente, outra hora com elas “postas”, a sentir picar em todo o globo, um peso nas pálpebras superiores que parecia aquelas actrizes de Hollywood dos anos 50’s do século passado (só me faltava a cigarrilha), que não conseguiam abrir mais do que meio olho, uma sensação de estar pejada de remelas, pronto, arranquei tudo. Vou jantar com as poucas pestanas que ainda tenho, ou então meto uns óculos de sol e digo que estou com fotossensibilidade, derivados do luar. 

05/04/2022

Aquele doce poço de egoísmo

Não peço caridades, nem dedicações exacerbadas, também já para aqui disse que não pretendo ouvir elogios à minha não beleza actual, acho que até os incentivos de "força" já me irritam, como se eu estivesse em trabalho de parto constante, ou com prisão de ventre. A mim basta-me, como sempre me bastou, que me tratem bem, porque sou um ser reactivo, e oh, só consigo tratar bem quem me trata bem, olha lá a mentalidade do bicho-da-conta. 

Mas peço, encarecidamente, aqui (semi) publicamente, que não me sobrecarreguem com os vossos calos e as vossas águas passadas, quando estiveram tão mal que não conseguem esquecer-se, porque, convenhamos, neste momento sinto que estou a defecar-me (não literalmente, por enquanto) para o vosso assunto. 

A conselho de quem agora (tenta, pelo menos) me orienta os neurónios sobrevivos, que defende que não devo "concentrar-me na doença, para não cair numa depressão" (não sei se ria), encetei uma saída semanal com uma amiga diferente de cada vez, quer para lanchar, quer para almoçar. Nada de copos e folia, portanto. Não se percebe.

Tenho cumprido com o esquema, embora esteja a sair-me do bolso, já que sou quase sempre eu que convido e, quando não, uma vez que mando vir sempre o prato mais caro (não do estabelecimento, mas comparativamente com o da minha companhia), lá alanco com a despesa sem pestanejar. Pelo bem que me sabe, pela saúde dos meus filhos, não por esta ordem, dou-o por bem gasto.

Mas. 

A semana passada fui "beber café" com uma amiga daquelas que nos puxam para baixo, sabem? Acho que toda a gente tem, pelo menos, uma. Aquela porra de uma aura negativa, a pessoa com quem tens uma espécie de paralisia de soltar uma gargalhada. A amiga com quem nunca deves falar de bâtons — porque desconhece o conceito —, mas podes falar de pus à vontade. Já ia à retranca, a pôr uma hora limite para o encontro, porque intuía que não ia ser um momento feliz, e eu preciso de momentos felizes agora, que quereis? Estabeleci mentalmente a duração de uma hora, apesar de achar que era tempo a mais. Então, acabou sendo uma hora e meia, finda a qual eu disse que já não aguentava mais tinha que ir ao supermercado comprar coisas. Porque foram noventa minutos — noventa minutos — a ouvir as queixas dela e a descrição de uma doença que teve recentemente, que a ia matando. Ora, vamos lá a ver: é verdade que ela esteve muito mal, knocking on heaven's (or hell) door. Esteve. Já è finito. E repito até já não poderem ler-me: eu não sou psicóloga, ninguém me paga para isto, não tenho que levar secas das doenças de cada um, ainda mais agora. Se a ideia é não falarem da minha doença, óptimo, não falem, que eu também não falo. Dissertem sobre flores, cágados, gente que anda à chapada. Façam teses de doutoramento sobre o ovo e a galinha, e despejem-mas para cima. Mas poupem-me aos vossos calos e borbulhas, porque eu me estou, realmente, soberanamente, olimpicamente, cagando para isso. 

Posso ser — ou estar transformada — num poço sem fundo de egoísmo e cavalada. Mas tenho a meu favor (ou contra mim) o facto de ter recebido uma educação em que as pessoas não explicam o que se passa com elas em termos de saúde. Como na anedota, em que o inglês pergunta "How are you?", o outro inglês responde "Fine, thank you", mas se o mesmo inglês perguntar a um português "Como é que estás?", leva com um enxorrilho de sintomas, suspeitas, doenças, auto-diagnósticos, idas ao hospital, incompetência dos médicos, prognósticos e dramas para os quais ninguém tem cu. 

E continuo a repetir que coitadas das pessoas, estão muito sozinhas, e isso justifica tudo. Não, não justifica. Eu também sou uma pessoa, de alguma maneira também estou muito sozinha, e não massacro ninguém com o que me dói. Portanto, agradeço que me deslarguem dentro da minha bolha e, se não têm nada para me fazer rir nem que seja um segundo, eclipsem-se. 

(Ainda a raiva, ainda não a aceitação.)