26/06/2019

Baila bachata

Em plenos treinos, aprendendo uma dança nova: la bachata. 
Então, não atinava com o passo do refrão. Toca no chão com o pé direito, um-dois-três enquanto vira, toca no chão com o pé esquerdo e repete. Toda eu era trocas no toca, acertando o passo no resto da música, chegada ao refrão - só a parte principal da dança, convenhamos - e troca e troca.
Até que. Ainda a música não soava no ar, e aquilo saiu-me assim, como se já soubesse o passo do refrão há que tempos. Estava na cabeça, não me chegava aos pés. Ontem foi o clic, da cabeça aos pés.


Faz-me isto lembrar um problema social que vivi na infância que, como todos os pequenos traumas, ficou para sempre a bailar-me na cabeça, isto quase literalmente: quando eu era uma criança, havia música de fundo nos supermercados (também se fumava lá dentro, eram outros tempos de país em vias de desenvolvimento, mas nem por isso menos feliz). Eu ia, ou melhor, era levada, e fazia um imenso esforço para não desatar a dançar nos corredores, entre latas e pacotes de detergente. (Eram aos pacotes de papelão, nada cá do malfadado plástico.) Normalmente, não conseguia levar adiante os meus intentos, porque bastava distrair-me, e lá ia eu a esvoaçar, rodopiante, até à outra ponta do sector, ou até encontrar uma barreira física qualquer. (De fraldas, não havia de ser com certeza, pois as fraldas, naquele tempo, eram de pano, cá nada destes químicos que mais tarde impingimos aos nossos filhos e à atmosfera.) Depois houve ali um tempo em que não fui ao supermercado, por coincidência, ou decisão materna, que havia de estar farta de ir apanhar a bailareca ao fundo do estabelecimento, envergonhada por, mais uma vez, ter perdido o controle derivados à música. (Não foi isso de certeza, a minha mãe era a pessoa mais low profile para essas coisas, o mais certo seria até achar graça.) Acredito que foi mesmo porque não calhou. Quando lá voltei, já naquela fase espigadota em que somos uma crisálida, ou lá o que é (nem lagarta nem borboleta), sentindo-me senhora do meu nariz e da minha vontade, percorri a distância que distava entre a minha casa e o dito mercado, a debitar mentalmente um mantra, "Não vou dançar, não vou dançar, não vou dançar", entrei, toda eu convicções e autodeterminação, ouvi a música, toda eu mãos e pés juntos, parecia uma louva-a-Deus concentradíssima, aguentei o impulso sabe aquele a quem louvava a que penas, até que. 
...
Não sei como foi aquilo, devo ter-me distraído da promessa, posso ter tido uma branca, sei lá.
Sei que "acordei", e, enquanto a minha mãe e a minha irmã escolhiam coisas numa prateleira, já eu rodopiava por ali, tolhida de vergonha, achincalhada pela minha própria fraqueza e incapacidade de resistir a um passinho de dança. 
Isto até pode ser uma doença psiquiátrica com um nome estrambólico e eu não sei.

24/06/2019

A estagiária

O lobby do hotel, de um luxo simples e alegre - um smiley gigante em 3D pousado no canto de um aparador -, abarca a recepção, o restaurante e a saída para a piscina que, por sua vez, fica a cinquenta metros da praia, talvez oitenta do mar. É esta a minha noção de paraíso. Ainda estou a dar o último suspiro urbano, quando somos abordados por três funcionárias, que nos cumprimentam quase em coro com um "Olá! Sejam bem vindos!", e reparo que todas têm a boca pintada num vermelho vivo, que me pergunto se saiu do mesmo bâton, ou se será cortesia e imposição da entidade empregadora. Estou nestes dilemas quando a mais faladora pergunta por qual o pacote de boas vindas, de um de três, queremos optar: uma bebida que não fixei e uma massagem às mãos, uma bebida que não fixei e uma massagem completa, ou uma bebida que só fixei porque a bebi, mas calculo que fosse sempre a mesma, e o sorriso das recepcionistas. Como já tinha levado com eles, assim como assim achei melhor a última opção, porque possuo issues com a cena das massagens, de mais a mais sendo nas mãos, zona tão íntima onde não mexe quem quer, essa agora. A bebida era um gin tónico, e lá me baixou a pelintra que não lhe podem acenar com um grátis, que nem que fosse um prato de iscas regado a absinto, dizia logo que sim sem sequer bater as pestanas. Foi então que a menos faladora, mas aparentemente mais segura de si e, quem sabe, de mim, com uma placa ao peito a dizer "trainee", começou a preparar as bebidas, atirando com uns cubos de gelo para dentro dos copos. E disse bem, "atirando", uma vez que não acertou com dois dos malandros no alvo traçado, tendo um deles caído no chão e o outro em cima dos papéis que ali estavam pousados ao lado. E Mariana, assim se chamava a trainee, sem quaisquer pudores ou hesitações, agarrou assim mesmo à mão e à maluca no cubo fujão que aterrara nos papéis e atirou-o para dentro de um dos copos, desta vez acertando, toda ela sorriso maroto, "Hoje sinto-me mamaluca". Já eu ia lembrar-lhe o cubo caído no chão, não fora querer juntá-lo ao outro evadido, quando uma das outras duas ralhou, "Mariana, isso nunca se faz!", e depois lembrei-me que também já fui estagiária, e foram tantas as vezes que meti os pés pelas mãos, que surfei no mar da minha ignorância, umas vezes a rir, outras chorando-as a sangue, que esperei apenas que me servissem outro copo, para ir beber o meu gin já instalada de pernas para o ar. Isto chama-se maturidade, brlá-brlá-brlá.


22/06/2019

Quão intencional/desastrada/aleatória

consegue ser a oferta de uma revista relativamente ao seu título de capa?


E um picador de gelo, não?

19/06/2019

Aprendam comigo, que eu não duro sempre. Só mole.

Pois, fui à Feira do Livro, e acabou por acontecer duas vezes: a primeira já estava assim mentalmente programada desde que o evento abrira as portas que não tem: à noite, rápido, rápido, direitinha à Dom Quixote para adquirir todos os meus Antónios* que pudesse carregar sem sobrecarregar a conta bancária, essa grande meretriz que emagrece sem grande esforço de forma absolutamente invejável. Trouxe apenas dois, não porque me faltassem as forças para mais, mas porque já expliquei. Ainda por cima, a casa onde habito habitualmente, ao contrário da alma que me habita a mim, não é grande, e qualquer dia estou deitada sobre livros, qual místico da cama de pregos, só que sem dor. A segunda vez que lá fui, fi-lo com tempo, apesar de o da Feira se estar a esgotar, pois fui no último dia. Percorri aquilo tudo de lés a lés, que é como quem diz, de cima a baixo e depois de baixo a cima. (Hã? Muita bom, não ter dado aquele enganozinho do "acima" e "abaixo". São muitos anos, isto.) Ora, conforme é sabido, a Feira admite apenas dois climas: ou chuva, ou um sol a pino que não dá para perceber. Deve ser da inclinação, ou então sou só eu que sofro. Como naquele dia estava calor e eu hei-de ter achado uma ideia brilhante ir de t-shirt preta e calças de ganga escuras, levei com a chapa grelhadeira todo o caminho, principalmente nas duas vezes que subi, tipo em escala ascendente, aquele passeio dos alegres intelectuais assim como eu. Portanto, enchi-me da canícula. 
Isto tudo para explicar um fenómeno da Química, que é praticamente uma metáfora da minha vida toda.
Acerquei-me ali de uma roulote que vendia beberagens, apercebi-me, enquanto esperava a minha vez, que havia umas palhinhas feitas de massa crua, e vai de pedir uma para enfiar na lata do Seven Up, isto tudo armada em ecológica da pegada verde. Vi a senhora tirar a dita lata do frigorífico, pelo que não foi agitada, sequer estava deitada (a lata, não a senhora), entregou-ma, e eu zás na argola daquilo. Abri a lata, tudo igual ao litro, e então meti a palhinha pelo buraco da coisa. E fssssssh, um vulcão de espuma sobre mim, que me atingiu a mala, os sapatos (o cinto não, porque não levava), o chão e um nico o orgulho. Era eu na Feira, onde todos se vão cultivar e pavonear, a segurar uma lata que cuspia espuma. Parecia do circo Chen, eu.
Portanto, recapitulando: massa fresca mais bebida com gás, é igual a festa da espuma.
Há uns anos, alguém descobriu um fenómeno semelhante com a Coca-Cola e os Mentos. Agora descobri eu este. Quase de certeza que o resultado é igual com qualquer bebida gaseificada e qualquer tipo de massa. Quando estiver aborrecida e sem nada para fazer, hei-de experimentar com massa de letrinhas e champanhe. Depois ponho-me no Youtube e fico rica, para poder ir à Feira para o ano, comprar todos os Antónios que ainda me faltam. 

* Lobo Antunes (claro).

17/06/2019

E os boomeranggers? ∞

Uma pessoa instagrama-se e descobre todo um novo mundo de possibilidades de estudos antropológicos associadas. Vocês não sei, mas eu, assim como nos blogs e na vida, tenho os meus guilty pleasures mais ou menos assumidos, pelo menos de mim para comigo: aqueles locais que frequento só para me irritar/ ver até onde é que o patético consegue esticar/ surpreender-me a níveis que desnecessitem de botox, pois o elevar de sobrancelhas e o abrir do olhar que tais publicações provocam, são coisas para perdurar por horas.
Assim, esquecendo agora as inenarráveis - que eu, apesar disso, tentarei descrever em poucas palavras apenas - imagens da tipa que acabou de se maquilhar na casa de banho do shopping e se fotografa ao espelho com as cabines de retrete e as ditas cujas abertas lá atrás, hoje apetece-me vir debruçar sobre a cena do boomerang com que o povo entope as suas stories. 
Eu já fiz boomerang. Fiz, e fiz, e hei-de voltar a fazer, de todas as vezes que o boomerang se justifique, ou seja, em que o micro-filme fique mais engraçado/ ilustrativo/ lógico usando essa "técnica". Se filmar alguém a subir três degraus, se filmar um movimento que se repete num sentido e no contrário (tipo passar a ferro), se filmar um salto de um gato, pode ficar com mais piada se recorrer ao boomerang. 
Mas eu quero, aliás, eu exijo perceber o que é que passa na mona das gajas (são quase sempre, não é? Ou sou só eu que não conheço instragrammers masculinos que se dediquem à tonta do infinito?) que filmam um prédio, aleatoriamente, e depois a gente fica a pensar se elas assistiram a um terramoto ou se é só o boomerang delas do dia? Ou a manita delas com um copo de cerveja, em plenos santos populares, a gente na dúvida se lhes está a dar um espasmo, e por que genitais não se lhes verte a bebida do copo. Ou as gajas a deitarem a língua de fora, aquilo numa cadência ritmada, não sei se sugestiva, mas em que uma pessoa até tem medo de deixar o seu gelado por perto, não vá aquilo chlep e lá se vai o dito coiso.
Olhem, todo um manancial de dúvidas, cuja única resposta há-de ser que já não tenho idade para estas coisas. Estou quase uma senhora.

16/06/2019

Foi tão blogger da minha parte, nem posso dizer que corri, só que curry

Tendo-me baldado ao ginásio, e como auto-penitência, fui correr. Sábado de manhã, cafeína na veia, nada de pesos extra, excepção feita a Ai-fostes e um leve mp 3 (sim, sou desse tempo, com a agravante de ter a playlist toda desactualizada), lá fui para o Estádio dar à perna, considerando a possibilidade de dar uma volta, caso conseguisse, e depois logo se veria se não daria a segunda já a andar. E deu-se o milagre: uma volta percorrida, confirmado que, efectivamente, o que custa são os primeiros quinhentos metros, iniciei a segunda, pensando que ó pá, mal sinta dor de burro/ cansaço extremo/ palpitações, páro mas é, que ainda me sinto demasiado jovem para faleceri e seria uma ironia sem ponta de pinta fazê-lo nesta circunstância em específico. Prescindi da música, para não me enervar, tendo preferido o som dos passarinhos e também dos carros da Segunda Circular, tive uma sorte imensa porque não havia mil mamãs empenhadas em ensinar os seus pequenos piratas a andar de bicicleta com rodinhas, nem outros entraves do género ao meu endurance, a não ser uma ou outra poia de cavalo deixada aleatoriamente pela G.N.R. Ainda assim, e apesar disso, fui-me dando alento, “Vai, gorda, tu consegues”, estou a gozar, dizia-me, “Não te esqueças que estás a menos de uma semana do Verão. Gorda”, sempre achando que a meio da segunda volta ia parar, mas é que as forças não me falharam e pronto, era preciso chegar a esta provecta idade para cumprir 5 quilómetros e 300 metros sem pausa em pouco mais de meia hora. 



Pode ser que nunca mais repita esta façanha, daí a necessidade e alguma urgência de a registar.
Para comemorar a minha micro-maratona, na qual fui a única participante, hoje abracei e beijei estes amores, com os quais pretendo, se não palmilhar milhas, pelo menos dançar muito e fazê-los fazerem-me muito feliz. 


(Na verdade, o meu amor ia para estes, mas o meu pé chato e parvo decidiu pelos outros.)




13/06/2019

Notícias do meu fungo

Está que é uma maravilha. 
Aguentei estoicamente duas idas à praia com ele à vela, eu toda maravilhosa da cabeça aos tornozelos, mas umas unhas dos pés que nem o Shrek. No entanto, isso também me fez descobrir o truque para o esconder, que é passar o verniz anti-fungo nas unhas antes da praia, que uma pessoa chega lá e as unhas ficam imediatamente cobertas de areia, qual glitter. Mas é chato, eu queria-as carmim sanguinário como toda a gente. Porque eu sou toda a gente. (Pelo menos, quando me interessa.)
Entretanto, liga-me a da farmácia, a avisar que a podóloga astróloga da unha do pé desistiu, não percebi se da profissão, se de mim, se do quê: não vem mais a Lisboa, uma vez que, desde que o bebé nasceu, tem muita dificuldade em vir uma vez por mês do Porto, e eu parva, "Mas então que idade é que tem o bebé?", isto por não me ter apercebido de a criatura ter dado à luz recentemente, não que tenha examinado mais do que a aparência que a coisa dá, mas por mera porém olímpica curiosidade, e diz-me a outra assim: "Sete anos". Ai, que estranha me sinto, que aos sete anos dos meus já fazia as contas aos netos, aos sete anos da mais velha já o mais novo tinha um ano e andava e tudo, mas há umas assim e outras assado. Directa para a categoria só-a-mim-não-me-saem-empregos-destes. 
Entretanto, fui à minha Filipa, mani e pedicure que sabe tudo acerca de funguices, e que me arranjou o pé, por assim dizer, pois, na realidade, pôs os dois num brinco, não propriamente. Fiquei tão feliz que ando desde aí com o pezinho à mostra, quer faça chuva, quer vente, quer façam temperaturas negativas, que é só o que falta por estes dias. A conselho de Filipa, devo esguichar lixívia para o dedo afectado das micoses. 
Já o médico das pernas, oráculo que consulto todos os meses vai para vinte e um anos (ou pensam que uma fêmea carrega quatro ventres de nove meses cada um sem sequelas vasculares?), receitou-me vinagre de vinho tinto. Espero que não seja para beber. Lá nos entrefolhos da consulta, perguntou-me o dia, a hora e o local exacto do meu nascimento, porque anda muito excitado a fazer cartas astrais das pessoas. Pergunto-me que mania esdrúxula terei quando chegar à idade dele. Eu, chique como sempre, sei tudo menos a hora ao certo, sei até coisas que não interessam, como o local exacto onde fui concebida - Avenida de Roma rules! - disse-lhe "uma hora qualquer entre o meio-dia e a uma, sei que nasci para almoçar", e, passadas umas horas, recebi por mail a minha carta astral, seja lá o que isso for. Ainda não abri, mais por desinteresse do que por medo, mas que las hay.
Em suma, caguei no fungo, isto não de forma literal, até por impossibilidade contorcionista, pelo que decidi escutar as doces palavras de Filipinha: "Os fungos tratam-se no Inverno". Boa, Pips, you rock. Estou contigo e não abro mão. Nem pé.


09/06/2019

estou de Junho

Trouxe-me há muitos anos o pai, que me nasceu neste mês, alguns antes de eu própria conhecer o mundo.
Trouxe-me o mar de Junho, os dias longos e as noites quentes de luar eterno.
Trouxe-me a confirmação de ser, para todo e qualquer efeito, uma mulher.
Trouxe-me, se puxar bem pela memória, o primeiro amor, tão fugaz que não o soube saborear na tonteira dos catorze anos. 
(Não sei como não nasci em Junho, eu. Nem sequer fui nele concebida.)
Depois levou-me o pai, assim como mo tinha trazido. Levou-me a mãe, não satisfeito, cravando-me uma orfandade permanente e defeituosa. 
Ainda tenho comigo guardados os olhos azuis do enorme bombeiro, feições cheias e rudes, tisnadas do sol e do fogo, cheios de mar de Junho para mim, A senhora sabe, a gente vê muita coisa todos os dias, mas isto... E a mão grossa dele sobre os bracinhos da minha mãe, chamando mansinho, quem sabe se também ele cheio dessa orfandade defeituosa que me veste desde aí, Avozinha...
Enquanto não purgar Junho, não saberei estar.