30/05/2019

Ela fala tanto # 27

A sem-nocite não tem limites.
Procurava eu um recipiente de loiça tipo pyrex, para aquecer comida no forno, e lembrei-me que tinha dois iguais, com desenhos diferentes, mas que havia um deles que já não avistava há bastante, pelo que perguntei por ele, olha a loucura. 
- Então, esse foi o que me bateu na cara e se partiu.
Pronto, o verbo partir conjugado na forma pronominal nunca é bom augúrio. 
Sinto no ar um cheiro a acusação.
- Como assim?
- Então, estava mal arrumado...
Um pivete a segunda acusação. Mal arrumado por quem?
- ... e caiu-me na cara.
Terceira acusação, um enxofre que não se pode.
- Ainda andei aí uns dias com a cara marcada. Não deu por isso?
Quarta? Fede.


Pá, não. Cansei de levar na corneta.
- Não, não dei por nada. Fiquei sem pyrex, portanto. 
[Olha a velhaca, que uma pessoa quase faz um traumatismo craniano, acidente grave de trabalho, por uma porcaria de loiça que não vale um c. e que ela há-de ter arrumado mal de propósito, amarga aqui as dores em silêncio e a gaja, além de não dar por nada, ainda lamenta o tareco, em vez de se preocupar com a pessoa, dar-lhe a baixa ou então pagar-lhe uma indemnização.]

29/05/2019

Agora o meu cartão de cidadão é uma folha A4

Então, lá fui ao serviço público da capital de distrito mais próxima da minha residência, suficientemente longínqua para que nem com binóculos visse as bichas que contornam quarteirões com vista à renovação do cartão de cidadão. Cheguei às 9 em ponto da madrugada, hora a que as portas se abriam de par em par. Porém, já entrei atrás de outros sete, julgo que regionais, que devem ter ali aterrado antes do nascer do astro: quase todos senhores de muitíssima idade, naquela faixa em que ainda levam bilhete de identidade (perpétuo) e só vão mudar porque algo na identificação se alterou, tipo o estado civil. Curiosamente, nenhum deles tirou senha prioritária. Mesmo o primeiro, e apesar de o ser, podia. E a terceira, bem mais velha do que a segunda, amorosa, de sapatinhos de fivela, a fazerem lembrar as sandalinhas inglesas das minhas meninas, quando era eu a decidir o que é que elas calçavam. 
Bom. Eu era a 8, portanto. Fiquei ali, cotovelos em cima do balcão, a assumir o semblante de sala de espera, enquanto apreciava o redor: pregado na parede, um calendário de uma funerária com a imagem de um pássaro a alimentar as crias no ninho; um homem de mangas arregaçadas, do casaco incluído, calças de ganga largas com um autocolante colado no rabo, mãos nos bolsos, falando alto, andando para lá e para cá e eu a começar a ficar nervosa; oito secretárias para os funcionários, seis que foram sendo ocupadas aos poucos, cinco mulheres, um homem, só dois a atender, as outras quatro extremamente ocupadas com o computador e papéis, todos da mesma idade, todos iguais: vários quilos acima do peso para o índice, todos de óculos, todos de uma concentração coordenada e pouco simpática. 
Fui atendida por uma das cinco, que não gostou de mim. Eu sei que ia num dia de bad hair, com cara de agarrada a precisar de cafeína, mas, essencialmente, acho que a endémica ficou azeda porque eu era uma forasteira. Pronunciou a bold sublinhado a palavra "Lisboa" e suspirou quando lhe disse que preferia ir ali buscar o cartão de cidadão do que ter que me meter nas filas da capital - e pronunciei a bold sublinhado "capital". Perguntou-me se queria ficar com a mesma fotografia (que tem nada menos que cinco anos) e eu respondi que Isso não me parece muito honesto, daqui a dez anos tenho na minha identificação uma fotografia com uma décalage de quinze anos, e ela, nauseada, mandou-me meter atrás de uma barraca de ferro e olhar lá para um óculo, só faltou gritar Não respire. À primeira chapa fiquei horrível, para além de descentrada, só se via uma parte do meu ombro esquerdo. Ela que isso não interessa, eu ai que era o que faltava, quero tirar outra, e lá reiniciei a sessão fotográfica. Contudo, não havia modo de ficar bem na fotografia, literalmente, pois o óculo ficava uns centímetros acima da minha testa, e, convenhamos, ninguém fica bonito a olhar de baixo para cima, com aquela subserviência, ainda mais se estiver aterrorizado, como era o caso, pela semelhança entre o cubículo e umas máquinas de RX com as quais fui confrontada em pequena, que ainda hoje me assusto só de me lembrar daquilo a espalmar-me contra a parede e não haver chinfrineira da minha parte que cessasse o processo. 
Depois a seca que me saiu na rifa não me quis medir, o que achei mal. É que foi a minha última esperança de entrar na velhice com alguma dignidade. Isto, porque tenho assente nos meus documentos identificativos desde para aí os dezassete anos, que meço 1,68 metros. É o que, efectivamente, acho que meço, mas existe a possibilidade de ter um dia dado a volta à cabeça a um funcionário do Arquivo, ter sido medida de saltos altos e lhe ter dito que não me retirava nem um centímetro por conta das andas. Bom, isto era segredo até hoje. Mas vamos acreditar que são 168 centímetros e que serão até daqui a dez anos. 
Às tantas, a pessoa desapareceu, foi lá dentro fazer não sei o quê, até pode ter sido cocó. Cônjuge entra na sala e pergunta-me qual era a senhora que me tinha atendido, e eu, sincera, que Não sei, hás-de reparar que têm um denominador comum, ainda não percebi se é sempre a mesma que vai mudando de roupa e de secretária. Penso que era uma destas. 
Então, uma lá do fundo da sala, grita na nossa direcção: Os senhores, é para divórcio?
Olha se fosse.
E, mesmo não sendo, não foi chato?
Não. Não me parece, pelo menos... Nos próximos cinco minutos, não de certeza.

27/05/2019

Ando indocumentada

É verdade: de há duas semanas para cá, ando ilegal. Tenho o meu bilhete de identidade de cidadão nacional, vulgo cartão de cidadão europeu, caducado. Passado da validade, mais ainda do que eu. Expirou (Santinho!). Tem sido a minha pequena irreverência, a minha rebeldia à maluca, o eu sentir-me um nico marginal, quase uma delinquente.
Aconteceu que a pessoa humana, tal como milhares de concidadãos e concidadãs, tinha uma data de apodrecimento do coiso para os meses de Março, Abril e Maio de 2019. As notícias que de lá vinham - provindas de quem tentou a renovação antes de mim - eram de algo de semelhante ao apocalipse elevado ao serviço público. Coisas com senhas que, afinal, não garantem a vez aos humanos, chusmas de gentes que se faz valer de prioridades muita malucas (ainda vou escrever um post sobre o trio que empurra o carrinho da criança elevador adentro e gozam todos da prioridade), funcionários que vão tomar café de meia em meia hora, tempos de atendimento para lá da morte lenta, filas gigantescas em caracol, em espiral e em linha recta, a darem a volta ao bilhar grande. 
E porque não me apetece baixar a varina três vezes (mínimo) no mesmo dia, ora porque vejo um velho com um latagão de 18 anos ao colo, ora porque me passo com o do balcão derivados à quantidade de vezes que ele interrompe o serviço para ir defecar, ora porque tenho um ataque de pernas inquietas e já ninguém me segura sentada, eu sei lá, toda uma vida de transtornos que só eu sei, decidi que amanhã madrugo, atiro-me da cama abaixo ainda quase de noite e percorro oitenta quilómetros de estrada, mas vou fazer o meu cartão novo a outra cidade deste país. 
(É claro que me preocupa o facto de chegar lá ensonada e depois andar dez anos - serão dez, sinto-o - com a mesma cara de bêbada olheirenta no meu documento. Mas tudo por deslargar a vida boémia em que ando há duas semanas.)
(E preocupa-me se me mandarem sorrir. Ainda tenho o meu aparelho, do qual não rezará a história daqui a dez anos.)
(E também me preocupa se me quiserem medir. E se encolhi?) (E se cresci?) (Não saberei lidar com tais mudanças.)
(E aquela cena da assinatura com a caneta óptica. Pareço uma analfabeta a assinar.) (Talvez assine de cruz.)
(Não vou ter tempo de lavar o cabelo antes de ir. Vai assim, deslavado, que se fornique.)
Era capaz de ser melhor dormir até à hora de sempre e depois enfrentar as bichas no sossego da minha cidade.

23/05/2019

Mensagens do cosmos # 2

Recebo-as eu amiúde. 
Por exemplo, outro dia fui à boutique ver em que é que paravam as modas - literalmente -, e deparei-me com uma blusa/t-shirt branca que eh, não era bonita nem era feia, mas, como estava cheia de tempo para perder, era fim-de-semana e nem sequer estava soalheiro, fui prová-la, isto em termos de vestir e remirar no espelho, que a fome não era assim tanta. Era uma rica peça de roupa, decote em V (eu costumo chamar-lhe decote em bico, mas há quem leve a peito) e um laçarote mais para o nó de marinheiro no vértice do V, passe a ventania deste pleonasmo que, não o sendo, já o parece. É importante dizer-se que ia acompanhada por uma das minhas crianças, que se dirigira a outro provador, pelo que ia salvaguardada pela possibilidade de solicitar uma opinião abalizada e, convenhamos, sincera. (Diz que é no fundo de uma garrafa que se encontra a verdade, mas eu continuo a defender que é na boca dos filhos.) Pois que acabara de vestir a blusa e tudo me parecia errado nela. Porém, como sou uma pessoa de uma modéstia retumbante, qual Carmelita Descalça, entendi que o problema era eu e não ela. Ainda assim e talvez por isso, saí do provador e perguntei, alto o suficiente para que a criança me ouvisse, "Olha lá, qual é que é o problema desta blusa?". Quem me deu a resposta foi a funcionária da loja, que ali se encontrava a dobrar roupas: "A senhora tem a blusa ao contrário, o laço é para trás". Então está bem, lá reentrei no provador e troquei a ordem à coisa. No entanto, troquei-a tão bem trocada, que a vesti do avesso, embora com o laço para as costas, toda contrariada e a sentir que algo estava muito errado naquela situação. Depois percebi: era o cosmos a dizer-me "Não leves isso, fica-te mal e é horrível."
- Então, não gostou da blusa?
- Ela é que não gostou de mim. Depois experimentei-a do avesso e ficava-me tão mal como com o laço para a frente.

19/05/2019

Eu tenho problemas com tudo # 38

Ultimamente só me acontecem coisas nojentas: já não bastava a caganeira, acompanhada ao violino por vomitório de jacto (haverá de outro tipo? Desconhecemos), depois a coccixada que, para além das dores, só me forneceu este neologismo, agora apareceu-me um fungo numa unha do pé. Isso, lestes bem: micose da unhaca, obviamente - porque Murphy é grande e a Karmen uma bitch - da unhona do polegar do pé. O que é pequeno e oponível na mão, e enorme e, vá, inoponível no pé. O "dedo gordo". (Sei lá, quem está em plena forma deve tê-lo fit.)
Há-de ter sido num daqueles dois banhos (não seguidos, enfim) que tomei no ginásio sem os chinelos, porque acho que há merdas que só acontecem aos outros. Not.
Vai daí, consultei uma podóloga (ainda a achar que o termo correcto é podologista, mas quem sou eu? Ninguém), qual astróloga do pé, que me escavacou a unha até mais não poder, pois encontrou a carne entretanto, caso contrário acho que ainda lá estava de pé em riste a assistir àquilo: pegou num instrumento eléctrico em tudo semelhante à broca do dentista, mas com uma lâmina na ponta, tipo mini moto-serra, e vai de desbastar até ao sabugo e até ao dedo propriamente dito. Se tivesse colocado um nico de dinamite sob a unha, o estrago não teria sido maior. E só não doeu porque eu ando a treinar para santa e não sinto as dores. Mas doeu até sangrar na alma: fui terminantemente proibida de pintar as unhas dos pés (pagam as nove por uma!) durante este Verão que se aproxima, ora tímida, ora alarvemente (parece um tango argentino, isto da metereologia), o que, de tão impensável que é, me coloca várias possibilidades de solução, a saber:
1. Ando o Verão todo de sandálias e meias, qual Maddie. Isto pode incluir as idas à praia. Aproveito e compro também uma daquelas t-shirts de ciclista todas em fibra e material reflector (que devem ser equivalentes a um escafandro, em termos de frescura), e ponho um daqueles bonés de abas nas orelhas, para disfarçar que não sou uma criança nórdica que não pode apanhar sol sem se grelhar toda;
2. Ando o Verão todo de sapatos fechados, a aguentar a tortura da prisão dos meus dez porquinhos, a grunhirem de agonia;
3. Ponho fita adesiva sobre a unha enferma e pinto tudo na mesma;
4. Compro unhas postiças para os pés (não há? Caramba, até sobrancelhas postiças deve haver, quanto mais unhas do dedão) e colo só aquela, porque o objectivo é poder sair à rua com a cabeça erguida;
5. Defeco (não literalmente) no assunto e adopto um estilo meio desleixado, meio wild, meio boho chic, forneço-me de sandálias daquelas que odeio e toda a gente adora e assumo a unha como um ponto positivo no meu outfit;
6. Defeco (não literalmente) no assunto, pinto as unhas todas, incluindo aquela, e saio para a rua com as minhas sandálias lindas e poderosas, eu própria Linda e poderosa, e amargo outro Inverno com umas dores que nem eu, santamaria Linda Blue, a trabalhar para santa desde 1900 e sabe Deus, consigo aguentar sem contorcer levemente o lábio inferior e denotar no semblante que chiça-penico.

12/05/2019

Chamando os bois pelo nome. Nespresso!

Dou-me mal ali. Não há vez, ultimamente, em que não tenha um dezaguisado. E o problema está lá, não sou eu. 
Se a minha vida não dava para o argumento de um filme de terror surrealista pejado de bizarrias, então também não serve para mais nada.
Verifico pela hora de entrada impressa na minha senha de vez que estou ali há dez minutos sem que as três pessoas que ocupam os três balcões de atendimento abertos tenham acabado o seu aviamento: um casal em que ela é neutra e ele é daqueles carecas que não têm cabelo (Lili Caneças, és grande!), mas têm pêlo espesso a partir da traseira da cabeça, que lhes desce nuca abaixo e se enfia pelos colarinhos quero lá saber até onde; um estrangeiro que tem milhares de assuntos a tratar na Boutique, a avaliar pelo modo reunite que adoptou; uma senhora entradota, magra, seca, estilo senhora dona marquesa, que degusta um cafezinho no próprio balcão de atendimento, que isso do bar é para a plebe (como a compreendo, titi). Bem, sou apenas chamada ao décimo-quarto minuto, e porque, entretanto, aconteceram duas desistências (suponho que de duas pessoas assim mais normais como eu, que foram deprimir em posição fetal / praticar harakiri para baixo do balcão do bar). A registar que, entre o décimo e o décimo-quarto minuto, o casal neutra-careca cabeludo acabou de ser atendido, e aproveitou a saída do funcionário para lhes ir buscar a encomenda lá àquele buraco/ mina/ paiol/ poço onde agora vão buscar os saquinhos, e desatou aos linguados, como se estivessem na sua alegre casinha, tão modesta quanto eles, em tudo lembrando Ordralfabetix, o peixeiro; o estrangeiro agarrou em dois sacos, um contendo uma máquina nova e outro milhares de cápsulas, e deu um bacalhau à que o atendeu; a senhora dona marquesa acabou de sorver a beberagem e pirou-se sem levar nada nem coisa nenhuma, sequer um peixe.
Nos entrementes, aparecera por ali um casaleco daqueles em que ambos usam mochila, montes de sacos de lojas e um petiz de quatro anos ao colo dela, aquele bebé que justifica a ainda e para sempre proeminente barriga, que passa por gravidez para quem não sabe. Tiraram senha de prioritários, ela passou o rapaz para os braços dele e ele desandou dali para fora com a justificação da prioridade pelo mão e pelo seu próprio pé. Ela foi atendida e ainda se deu à lata de ir beber calmamente a bica ao balcão da degustação.
Olhem, eu ia-me dando uma coisa. É claro que quem levou comigo foi o desgraçado que me atendeu. Tudo em voz suave, para não doer tanto e não perder a razão (estou uma senhora, eu):
- Contei dez minutos sem que mudasse a vez das três pessoas que já estavam a ser atendidas quando aqui cheguei. E há também aquela senhora do bebé enorme, que está a ser atendida com uma prioridade da qual não pode fazer-se valer. Garanto-lhe que, para a próxima que aqui vier, tiro senha de prioritária e ai de quem duvide da minha doença. Vou fazer como as malucas, que dizem que "a minha doença não se vê".
Pronto, e saí, para aí ao cabo de quinze minutos de ali ter entrado (sim, porque o meu atendimento leva um escasso minuto). Fica o aviso.


05/05/2019

as pessoas nunca morrem

Tremiam-lhe os olhos enquanto as mãos, marejadas, retiravam e voltavam a colocar a capa do telemóvel, e me explicava que a China morria agora todos os dias, por conta de um carcinoma na pata dianteira. Vi-a ver partir a mãe, depois o pai, de seguida um irmão, saga que lhe veio de herança trágica da avó, que casou já órfã e com dois irmãos sepultados, e ficou viúva e grávida do segundo filho - que, efectivamente, era o quarto, ou não tivesse oferecido dois anjos aos céus - aos vinte e sete anos. Por alguma razão que não se explica mas eu alcanço, esmagam-na mais do que todas as outras as saudades do pai, e eu sei que é possível porque não sei o que fazer à desmesurada falta que me faz todos os dias a minha Titi e também a minha gata, logo eu, que me morro de saudades do meu pai e agora também da minha mãe. 
A cadela tem que ser abatida, inglório porém caridoso ponto final no sofrimento em que claramente já está. Passo-lhe a mão no focinho enorme e perfeito, dou-lhe um elogio à bela coleira cor-de-rosa e suspiro que também eu, “tenho uma menina lá em casa assim, que, mais tarde ou mais cedo...”, só que também se me mareja a garganta e afogo o final da frase com uma espécie de pensamento positivo: “Era a cadela do teu pai, vai para o pé dele, serem felizes”. A cadela afasta-se de mansinho, e ela então pergunta-me: “As pessoas nunca morrem, pois não?”. “Não.”
Não, as pessoas nunca morrem.


SEM AR MAR SEA SER MÃE


A combinação de letras, que forma a composição de palavras mais bonita de toda a cidade.