30/03/2023

Metas

Claro que fui à Corrida Sempre Mulher, no passado domingo. Fiz um longo percurso, de muitos anos, para lá chegar: comecei como fotógrafa oficial/ claque da minha primogénita, depois fartei-me de correr de saltos altos para apanhar bons planos, arriscar partir um tornozelo ou mesmo um salto, e passei à fase da caminhada, mas depressa me aborreci daquelas paredes de gralhas teca-teca-teca, que não andavam nem deixavam passar, fiz uma caminhada em que corri metade e andei a outra metade, e depois acabou: sempre corrida. Nestes anos todos, falhei uma, faz agora precisamente um ano. Posso afirmar que já fazia um tempo razoável para a minha amadorice e idade, mas agora mudei um nico e a coisa processa-se com nuances várias. 

Desta vez, foi o percurso dos Restauradores, que eu já disse cerca de mil vezes que prefiro mil vezes ao do Parque das Nações, por causa dos buracos, embora este último seja a direito e canse mil vezes menos. Já fiz um depois dos tratamentos e não se compara. O de domingo começa nos Restauradores e sobe toda a avenida da Liberdade. Digo bem: sobe. Uma pessoa larga a sentir-se uma lebre, passados cem metros já é uma mula de carga, quando atinge o primeiro quilómetro (pouco antes do Marquês de Pombal), já julga que se meteu na passadeira do ginásio com inclinação 40º e velocidade 18. Mas, porque aquele local é sagrado e já se comemoraram várias vitórias importantes para o país, siga. Ainda um bocadinho na ilusão de que o pior já passou, ataca a Fontes Pereira de Melo toda, que parece mesmo mais plana. Parece, mas trata-se de um trompe l’oeil misturado com esgotamento nervoso, portanto, ou dás à perna até ao Saldanha, ou sentas-te no passeio a chorar ranho. 

Prossegui. A metade da corrida dá-se quase a meio da avenida da República, ali ao terceiro quarteirão, se não me falha a memória, já que, nesse momento, tudo me falhava, nomeadamente o pernil. Se, por um lado, a partir daí foi a direito e depois a descer, meu pobre coração, que tanto tem aguentado nesta vida, sossegou um nico, por outro, meus membros inferiores ameaçavam fazer saltar os fémures e tíbias e transformar-se em gelatina daquela que corre mal e nunca se consegue desenformar.

Nunca parei, nunca andei, foi uma corrida muito honesta (como são todas as minhas, senão não tem piada), e cheguei num olímpico e gigantescamente péssimo lugar, suada e feliz, com aquela certeza de que a meta existe, está ali/ lá ao fundo e é possível alcançá-la. O caminho é sempre em frente, como dizia o meu primeiro oncologista.


23/03/2023

Vi-me compelida a cometer o furto

Dou cada tareia na Bimbynha que ela até pula. A sério, na fase de triturar a sopa, parece mesmo a máquina da roupa a centrifugar. Qualquer dia experimento meter lá um soquete ou um bralette, a ver se ela não mos centrifuga em minuto e meio à velocidade 7. Capaz de ser melhor não, senão à noite tenho o Rogeiro casa adentro a falar de drones. E é bom não esquecer que estou alojada num bairro social, sai-me a Bimbynha a voar pela janela e não faltará armamento para ma fazer em pó. (Não perguntem: desconheço o dia em que volto para casa. Beijinho no ombro a Santa Engrácia.)

Então, determinei-me a fazer limonada, sopa e duas quiches — uma de frango, para os carnívoros e uma vegetariana para as herbívoras. Na limonada gastei os dois únicos limões que tinha no casebre (e a máquina tritura tudo, vai casca, vai caroços, vai olhos, vai tudo. Só não os lava. Está mal. A ver se redijo uma reclamação para a marca). Depois fiz a sopa, ela aos coices, mas ficou como sempre: de uma pessoa lamber a lâmina. Foi só a meio da receita de uma das quiches que percebi que me faltava mais um limão: precisava da raspa da casca. Ora, o que é que uma pessoa normal faria no lugar desta? Usava laranja. Mas é que nem me ocorreu. Metade dos meus vizinhos têm frondosos limoeiros. (Eu só tenho salsa e hortelã, que me tenho fartado de colher, tenho o canteiro quase careca.) De modo que saí, já noite escura e toda vestida de preto, passei por um limoeiro e achei os limões um bocado mirrados, andei mais uns passos e cheguei perto daquele que me regala os olhos, de tão bonito que é. Mesmo assim, ainda tive que me empoleirar um bocadinho, pois o limão que eu queria estava longe da minha mão. Felizmente, não me tomei de amores por algum do topo da árvore. Carreguei-o para a habitação social a descoberto, uma vez que me esqueci de levar um saco para disfarçar (daqueles grandes, do supermercado, cheio de artigos). Tenho que apurar a técnica. 

Hoje passei pela árvore e estava tão esplendorosa como antes, apesar de lhe faltar o fruto mais bonito. Meu pé de laranja-limão, um destes dias começamos a falar um com o outro.




11/03/2023

111

E, subitamente, a mulher estendeu-se ao comprido na enorme sala de espera das análises clínicas. Eu ia a achar que era o meu dia de sorte: conseguira sair a tempo de fazer as compras todas, ir nas calmas até ao hospital, arranjar o último lugar para o carro no parque — e, simultaneamente, o melhor —, chegar com vinte minutos de avanço em relação à minha hora marcada, mas, mesmo assim, a senhora das senhas permitir-me a retirada de uma (já me conhece de mais de um ano de senhas, ora de cabeleira, ora de cabelo curtinho), faltava apenas um número para a minha vez, e deu-se ali o desmaio. Talvez setenta pessoas na sala, as cabeças todas viradas, nenhum corpo se mexeu, a não ser os de dois homens, que se acocoraram a dar pequenos abanões na jovem inanimada. Pronto, pensei, my turn. Afastei os dois com os braços, disse-lhes que a virassem de barriga para cima, eles imóveis, então puxei-a eu e pus-lhe as duas pernas para o alto, o que a fez reagir imediatamente, pois começou a pestanejar. Sou tão boa.

A enfermeira que, entretanto, chegara, fazia perguntas à rapariga, vi chegar a minha vez — senha 111, isto deve ter um significado qualquer — e tive que solicitar à profissional que segurasse ela nos pés da pessoa desacordada, ou quase acordada, enfim. 

Setenta pessoas. Um desmaio. É só para que saibam o número de humanos que vos acudirão numa aflição: uma, vírgula quatro por cento. O que me angustia é que esta percentagem também se me aplica e, quando eu desacordar em algum lado, não vou estar lá para me socorrer. Pode ser que esteja outra parecida.


09/03/2023

Fibra sintética

Entrámos juntas na dependência do banco para tratar de um assunto dela, e todos os meus sentidos foram atacados por um intenso cheiro a suor, que me pôs imediatamente de sobreaviso de que não vinha de lá um bom momento. A nós, dirigiu-se um funcionário de fato e gravata de retrosaria de bairro, recheado de carnes profusas e inocultáveis, cara redonda e sorriso inexplicável. Delicada, como sempre, ela desejou bom dia e disse: “Precisava de um documento…”, mas ele não a deixou completar a frase: “Precisava ou precisa?”, o que me levou rapidamente a concluir tratar-se de alguém que serviu às mesas — nada contra, mas a velha piada do “queria” denuncia tanta coisa, e não há como explicar a estas pessoas que “eu quero” não é só o presente do indicativo, mas também o imperativo, a ordem, o comando, e é só por delicadeza que os clientes dizem “eu queria [se fosse possível; se me fizesse o favor]”, para além da falta de educação que é corrigir o Português a um cliente. Adorava assistir a um diálogo entre esta figurinha e uma mulher do bairro. Nestes pensamentos, fiquei impávida e serena, com o monstro a roer-me as entranhas e a indomável vontade de lhe espetar um murro no meio dos olhos, pois é esse o único instinto que me domina quando me maltratam um filho. Afinal, a criatura não sabia como atender a minha criança e recambiou-nos para um colega, educado e bonito, que emitiu o tal documento, enquanto o carnudo falava muito alto ao telefone com uma freguesa, num tom de intimidade inadmissível, com subentendidos e gargalhadinhas, um outro colega tratava um senhor de idade por “você” (Chelas, estás aí?) e uma emproada, de saia e casaco azuis escuros, collants e sapatos azuis escuros, toda ela num full look enjoativo, permanente recente e um tacão excessivamente sonoro e fininho (quem é que ainda usa salto agulha, ainda por cima meio salto, com esta calçada portuguesa lisboeta?), toda ela cheia de si, e veio dizer um segredinho ao que nos estava a atender e afastou-se com um risinho parvo a estremecer-lhe o fato de fibra. 

(Só a mim não me saem empregos destes.)

Saí empedernida e exangue. Demasiada fibra sintética em tão pouco espaço e tempo.


05/03/2023

Cá na aldeia

Os cães ladram e a caravana não passa. Estão metidos em casas e em pátios mais pequenos que quartos. Há gatos às janelas nesta espécie de aldeia para onde vim morar, enquanto a minha casa se maquilha, embelezando-se. Quero-a azul, dois quartos terão que ficar brancos porque o meu pé fincou mais fraco do que o de dois deles. Aqui há limoeiros carregados do fruto, que me impulsionam a meter um em cada bolso, pois é com dois limões que faço a limonada que bebo. Mas prefiro comprar na loja mais próxima, que é também muito longínqua, e vende tudo ao preço do ouro porque fica do lado de lá do muro que diz “amo-te”, e carregar ladeira acima quatrocentos metros do fruto que facilmente tomaria como meu na passagem por uma das árvores. Simplesmente, estou agrilhoada a um código de conduta que nunca vi escrito em lado nenhum. Há muitas mulheres velhas, que ralham aos cães e às crianças com o mesmo modo. “Cala-te”, “Ponho-te na rua”, enquanto descascam batatas para um alguidar. Estas não fazem tricô. Tenho um vizinho na porta ao lado que passa os dias a arranjar o motor de um carro com a idade dele, acelerando aquilo com o cigarro no canto da boca. O espaço entre a porta e o portão tanto pode chamar-se pátio como logradouro, ou até pérgola. Eu chamo-lhe deck, porque só lhe falta a piscina, e esse é um pormenor de somenos. Há um melro que se tomou de estimação pela cerca de palhas, e passa os dias a cantar ali pousado. Na primeira semana, era um zangão enorme, depois uma osga, agora o pássaro. Vai-se a ver e é sempre o mesmo animal, que se transmuta. As gatas estão felizes e fazem ginástica todo o dia. Às vezes vão lá fora, parecem miúdos no recreio. A minha cama é dura como uma rocha, mas eu durmo nela como uma pedra. As camas moles fazem-me doer as costas, que nunca me doeram. A casa é fria como um frigorífico, qualquer ida à casa-de-banho a meio da noite significa atravessar um corredor de quinze metros a tiritar. São trinta metros até regressar à rocha aquecida pelo meu corpo. Todos os radiadores estão ligados vinte e quatro sobre vinte e quatro e, mesmo assim, aninho-me de manta, como um gato. O duche é surrealista de tão desconfortável e praticamente impossível de tomar. Nada funciona a cem por cento nesta moradia camarária.

E sei que vou sentir falta disto tudo, quando a obra da minha casa acabar. 

14/02/2023

Raio de sol

Pela terceira vez em trinta anos, a minha casa necessitou de obras, o que, estatisticamente, daria uma intervenção por cada década, não fora o facto de a última ter sido há quatro anos. Aconteceu que, entre um bom Covid com direito a hospital e um oportuno cancro, dois violadores de paredes entraram pela minha porta adentro, com a desculpa de consertar um cano roto, derrubaram uma parede, de caminho estoiraram um cano comum do prédio, de maneira que a água — cimentosa, lamacenta, barrenta —, entrou a jorros pelo lar adentro, destruindo tudo o que apanhou à frente, a começar no soalho dos meus encantos (que, na altura, respirava sob os meus pés há apenas três anos), em carvalho maciço, envernizado sem brilho, o chão mais bonito que alguma vez pisei, e a acabar nos meus sonhos de ter a casa dos meus sonhos. Bastaram alguns segundos, quatrocentos litros de água espalhados entre meu lar, o patamar das escadas e as caixas dos dois elevadores.

(Se eu não tenho razões para estar maluca, não sei quem terá.)

Pela terceira vez, então, tivemos que arranjar onde viver durante a obra, pois parece que é impossível dormir em cima de um chão enquanto os senhores andam a colar tacos. Tínhamos como premissa ficar no mesmo bairro, porque tudo: logística, empregada com outro trabalho na área, parquímetro, e clima. Estou a gozar, o clima era-nos indiferente. Desde que não chova e a roupa seque, por mim está de bom tamanho.

Não existem casas para arrendar em Lisboa por poucos meses, sobretudo quando não se quer sair de um círculo. Mas, ao cabo de muitas buscas, apareceu uma, numa zona social, que é como quem diz, na zona bairro do bairro. De tal forma periférica, que não está incluída no nosso parquímetro, o que não é grave, uma vez que nos basta deixar a frota do lado de lá de uma avenida, que é a que separa o norte da chique zona sul deste aglomerado: atravessamos, subimos uma ladeira em escadas, tonificamos o glúteo e estamos na moradia. De início, temi-me um bocado, só um portão ferrugento a separar o logradouro da porta, só uma porta a separar-nos da vizinhança tenebrosa, gatuna e estripadora. Nunca estive tão enganada: até posso deixar tudo escancarado e borrifado de ouro em pó, que ninguém vem cá varrer-mo. Uma tranquilidade de dar gosto ao demónio.

Hoje subia a ladeira de escadas e lá estava ela, talvez quatro anitos, mil caracoletas na cabeça e um raminho de flores silvestres na mãozinha, estendida para fora do portão da pequeníssima casa.

Queres as minhas flores?

Não posso aceitar, querida.

Porquê?

Porque tu não me conheces. Dá as flores à tua mãe, ela vai ficar feliz.

Vou dar à minha avó. Olha, e queres um chupa-chupa?

Não, guarda para ti.

Vais-te embora?

Vou, mas volto.

Queres ver a minha trotinete?

É linda, quem me dera uma igual. Olha, se calhar aceito as tuas flores, agora já me conheces.

São para a minha avó. Vais para casa do pai João?

Não, o meu pai não se chama João. É Henrique.

Dei-lhe adeus com a mão, soprei beijinhos e continuei a subir a ladeira, carregando a certeza de que a solidão é transversal, mas também a de que um raio de sol pode atingir-nos assim, a meio do nada, ou a meio de um caminho que nem sequer é o nosso.


13/02/2023

A última de umas quantas tristezas

Dia da última injecção de Trastuzumabe. Nunca decorei este nome, agora mesmo fui ao Google confirmá-lo. São dezoito ao todo, no espaço de um ano. É um processo muito demorado: venho cedo, apanho o trânsito da hora de ponta, a fila para o estacionamento, a senha para a triagem com rodos de pessoas antes de mim, e depois uma hora de espera para que a injecção seja preparada e a seguir enviada para a Oncologia. Mas tenho cabelo, que cresce encaracolado, posso pintar as unhas, ainda tão frágeis, posso pôr saltos altos se não abusar da sorte, posso ser uma aproximação de mim.

A sala de espera abarrota de gente doente. Ninguém se queixa, ninguém solta um ai, a maior parte está só ali. Uma mulher, de sapatos-pantufa e gorro de lã, costura qualquer coisa que não entendo, ora com a mão esquerda, ora com a direita, bocadinhos de pano à volta de uma rodela de plástico, que também é caixa de agulhas. De vez em quando, cai-lhe uma coisa para o chão, a agulha, a caixa, uma bolsinha com padrão de bonecos cheia de rebuçados que se espalham no chão. Diz a quem lhe pergunta que está a fazer “florzinhas”. Deve estar louca.

Está um homem com os olhos muito abertos, pregados a pregos ferrugentos no vazio, com um interesse tal, que juraria estar a encontrar respostas para todas as questões que ainda o atormentam.

Uma mulher fala ao telefone uma língua que não entendo, como acontece com quase toda a gente.

Disse-me uma enfermeira em tempos que os que têm cabelo são os casos mais graves. Pâncreas, fígado, intestino. Olho para eles com olhos diferentes, já não lhes invejo o cabelo.

Entra uma mulher dressed to impress: casaco e calças cor de tijolo, uma pele de coelho na gola e punhos, blusa branca de lamé, carteira de péssima imitação da Birkin, Hermès.

Um homem chega a arfar, assim fica durante largos minutos ao meu lado, depois tranquiliza-se. Parece que correu a maratona, mas creio que a caminhada de vinte metros desde o elevador foi suficiente.

Há muitos velhinhos neste circuito infernal. Nunca ninguém disse que a vida é justa.

Eu, por mim, saio hoje com o alívio da certeza (ou, pelo menos, a esperança) de não voltar, a não ser para consultas. Vou-me embora cheia de marcas, nem uma única saudade.


31/01/2023

Esvaziada

Dizem eles que isto é o “síndrome (ou fenómeno? Ou dor?) do ninho vazio”, que sabem eles do que significa o momento em que o teu primeiro amor pequenino sai pela porta da casa que a viu crescer dentro de ti, parece mesmo que choram as paredes, e tu agora a tremeres das asas que a envolvem, ela tremendo as asinhas aninhadas nas tuas, saiu de ti e coube sempre inteira nos teus braços, que hão-de ter esticado ao longo do tempo, ambas sem saberem muito bem como — e também porquê — segurar o que os olhos teimam em deitar, vai agora experimentar o Mundo sem que possas picar o teu voo para a apanhares se ela for a cair, sem os beijos da noite e os sorrisos estremunhados da manhã, vai também ser feliz no ninho que construiu com mérito, talento e esforço, devias estar a rir, e até estás, há um peito cheio de ar puro, orgulho e boa esperança imediatamente abaixo dessa garganta apertada de medo e saudades, já.


21/01/2023

Como uma filha

Não sei se tu és crente, filha,

diz-me, à laia de pergunta, aquela que é o legado mais precioso deixado pelo meu pai: uma tia, já velhinha, a quem abraço muito quando — dolorosa porque raramente — nos vemos. Vivemos à distância da primeira para a segunda capital do país, o que parece pouco, mas é muitíssimo, se considerarmos outras distâncias que não constam do mapa. 

Sou, tia — digo, mais para a sossegar, mas não mentindo completamente —, pelo menos, sou uma crente interesseira, pois é d’Ele que me lembro sempre nas maiores aflições, e se eu tenho tido algumas, ou até demais. Mas não me metam com padres, que isso já não dá para mim.

No Verão passado estivemos juntas, pude rever as minhas primas e apertar nos braços aquela que perdeu o único filho para a doença que me queria levar agora a mim. Foram demasiados anos sem poder fazê-lo, esperava dela alguma mágoa, interrogações várias, mas fui encontrá-la apaziguada com a vida, não conformada, mas também não revoltada. Certamente à custa de muita terapia, mas, fundamentalmente, resultado de uma educação de amor e de um carácter limpo e bem estruturado. Sei agora, pelo meu próprio exemplo, por que é que há pessoas que se afastam diante do sofrimento dos outros: ele é insuportável porque reflecte a possibilidade do nosso. Mas também sei agora que nunca mais somos capazes de esquecer esse adeus, se não tivermos a força gigantesca e a delicadeza da minha prima Teresa, mais rara que um diamante entre rochas.

Sabes, filha, eu rezo todas as noites e peço a Deus que me dê uma morte suave. Peço também pelas minhas filhas e por ti, não peço por mais ninguém.

[Nem pelos netos, nem pelos bisnetos?]

É que te tenho a ti como uma filha.

E aquilo caiu-me dentro do peito: a irmã do meu pai, que tanto mo lembra, agora é minha mãe, e isso faz um sentido tão certo que não contesto e agradeço toscamente, “Ai que bom, agora tenho outra vez mãe”.


08/01/2023

A vida continua

Estávamos à espera de começar a dançar, ambas sentadas a beber água — hidratar antes, durante e depois —, ela muito jovem, muito generosa de carnes, os olhos sempre numa tristeza de dar dó e mimo, mas a gargalhada mais fresca e absoluta dos meus últimos tempos e, seguramente, a melhor dançarina de uma sala com trinta e sete lugares, invariavelmente todos ocupados. Falámos do dia em que me senti mal a meio da aula, na verdade foi logo ao início, mas forcei-me a ficar até faltarem só uns minutos, para sair de rompante sem correr, umas quantas piruetas haviam-se transformado em dezenas e puseram-me em looping, já tinha feito uma sessão de quimioterapia e achava que podia continuar a fazer a minha vida, porque a vida continua. Nesse dia, ela tocou-me num braço só ao de leve, apenas as pontas dos dedos, os olhos naquela tristeza de sempre, e contou-me que a minha mãe também teve e está óptima. Então agora recordámos esse dia, ela confirmou, foi há treze anos, a mãe continua excelente, mas o cancro levou-lhe o pai, os olhos a afogarem-se na  mágoa, Tenho tanto medo de ter cancro, eu a pensar que mudei de dimensão, de prisma, de óptica, a palavra já não me faz medo, o significado dela também não.

Tenho tanto medo de ter uma recidiva. Mas a vida continua, como já continuava antes de ter mudado de dimensão.


01/01/2023

Só desgraças

Antevéspera de Ano Novo e a desgraçadinha do costume a sentir um incómodo todo o dia, idas ao chichi de vinte em vinte minutos, ai isto são nervos (mas de que mais?), ai ando a beber demasiada água, ai devo estar a ficar incontinente, depois era aquela dorzinha, aquela vontade de desmaiar na loja — pudera, quem não, com um casal horrendo à minha frente com dois filhos horrendos a demorarem uma eternidade para trocarem não sei que merda por um sutiã de cetim azul escuro com uma rendinha parolíssima, pináculo da sensualidade para ele (?), que dançava (pessimamente) ao som da música ambiente da loja —, todo um cenário que me disse: “Vai ao hospital, histérica, depois mete-se o Ano Novo [aprecio a expressão] e já a tua infecção te chegou ao cérebro”, porque eu sou eu e eu sou essa, que anda sempre a desafiar a septicémia, e foi assim que, à hora de jantar, pouco mais ou menos, vi na nettinha qual o que levava menos tempo a atender-me e ala para as Descobertas, qual conquistador. Lá chegada, sou logo avisada que, afinal, o tempo de espera são duas horas. Bem gemi ao enfermeiro que necessitava de uma pulseira amarela (até porque combinava melhor com o vestido do dia), mas o implacável algemou-me com uma verde. Há-de ser lagarto, com certeza. Ou estava nauseado por estar a trabalhar na antevéspera de Ano Novo, esquecido do quão aborrecido é estar doente nesse mesmo dia. Se calhar, preferia trocar comigo.

Aguardei exactamente duas horas, durante as quais aturei um excitado casal italiano, que berrava e gargalhava, ou seja, me impediu de, ao menos, dormitar um nico. Estou neste ponto de velhice. O excitado tinha pulseira amarela, o que me levou a concluir pela xenofobia do enfermeiro da triagem em relação à minha pessoa. Depois fui atendida por um médico em cerca de quatro minutos, que confirmou o meu diagnóstico e me receitou, assim como me mandou fazer urinocultura. O enfermeiro que me recebeu apresentou-me um frasquinho anatomicamente adequado para recolher urina a um recém-nascido rapaz, e perguntou-me assim: “Já alguma vez fez colheita de urina asséptica?”, veio-me a vontadinha de responder: “Fiz quatro cesarianas, quimioterapia, radioterapia, tamponamento nasal e mais mil porras, mas realmente recolher urina é que nunca”. Ao invés, respondi: “Sim. Tenho que me lavar primeiro, deitar fora as primeiras pingas de chichi e depois encher esse frasquinho minúsculo, no qual me será impossível acertar”. Afinal, não. O homem explicou-me todo o processo com uns pormenores sórdidos de tal forma, que só pensei: “Não acredito que estou a ter esta conversa com um estranho”. Depois de praticar diversas posições de ioga na casa de banho do hospital, fui aviar a receita do médico, tomei o antibiótico e, passada uma hora e meia, já em casa, tive um ataque de frio que me pôs os dentes a bater como castanholas e me levou a ponderar que me finaria em breve, tipo em minutos, mas isto já no dia 31. Mesmo à parva, falecer no último dia do ano. Pelo menos, fiquei a saber o que sente uma pessoa que morre de frio. 

Calma. O importante é que entrei em 2023 recuperada deste desaire. A ver se o ano não me é tão padrasto como o anterior. Chiça penico.