29/12/2023

Não somos nada todos iguais

Decorei o caminho para lá chegar. Ou melhor, escrevi-o: ao fundo do corredor grande, viro à direita e depois, na primeira à direita, entro no elevador 20 ou 21. Na realidade, subo pelas escadas um piso, visto que estou no 1 e quero ir para o 2; viro para onde diz "Imagiologia", atravesso o serviço, constituído por um balcão de atendimento, gente sentada à espera, cadeiras de rodas e duas ou três macas, tudo ocupado; ao fundo de um corredor enorme — que nos dá a sensação de termos saído do hospital, pois não se vê uma alma viva ou penada —, existe uma porta que tem como letreiro "Medicina Física e de Reabilitação". 

Das vezes anteriores que o fiz, o caminho era outro, aquela área do hospital estava em obras, eu própria também. A médica que me assiste é bastante pontual, as consultas são um flash, e só demoram uma eternidade (para aí uns quinze minutos), por ela ser uma faladora patológica e mais de metade do tempo que lá estou falamos de assuntos triviais, tudo menos a manutenção do meu braço da grossura do outro. Até posso engordar — o que já fiz sem me receitarem nesse sentido —, até posso emagrecer — Verão 2024, aguarda-me. Vou estar como um cão faminto, rafeiro, só pêlo e osso, mas sem exageros. Todos os anos digo que vou perder peso na entrada do Ano Novo, mas depois esqueço-me completamente e continuo esta sereia chichuda. Efectivamente, nada disso me interessa. Quero ter saúde e nunca mais ter que rapar o meu cabelo. 

Enquanto espero, passam por mim dois rapazes com a idade do meu filho, um de cada vez. O primeiro está a experimentar a prótese nova, toda a tíbia e o pé. O cabelo tem metade da quantidade da de um bebé recém-nascido, mas é uma pluma com a mesma espessura. Vai amparado por um andarilho ortopédico e uma enfermeira, sem um ai. Desaparecem por uma porta adentro. O segundo tem cabelo, a prótese é para a mesma zona do corpo, e reclama do peso que ela tem, das dificuldades que vai ter a habituar-se àquilo, da chatice, do horror. Imagino que o primeiro rapaz teve cancro no osso e foi necessário amputar, no caminho para a cura, e o segundo deve ter tido um acidente que lhe levou aquela mesma parte do corpo e o prejudicou enormemente, dando lugar a uma incapacidade que não lhe trará nada de bom. 

Em todos os serviços do hospital, existe a valência oncológica — porque é preciso dermatologista, para tratar das unhas e das infecções na boca, porque é preciso ortopedista, pois os ossos começaram a ceder, porque é preciso cardiologista, visto que o coração ameaça saltar pela boca, porque é preciso psiquiatra, já que a cabeça estoirou — mas, pelo menos e principalmente na doença, se constata facilmente que não: não somos todos iguais. Existe um mundo que ficou para trás e uma multidão de fantasmas que há que enfrentar e derrotar, que, para uns, são mais e maiores, para outros são poucos ou quase nenhum e basta um dedo para os aniquilar. 

Eu, claro, sou um mix.


20/12/2023

Ainda existem mulheres honestas

Quem nunca? Eu já. Uma vez riscara meu boi na garagem, numa primeira septingentésima sexagésima terceira vez em que fiz a manobra e até já a executaria de olhos fechados, mas parece que a p. da parede nesse dia avançou em continência e boi foi raspar-se nela. 

Desta feita, encontrava-me na subida de uma rampa e tinha à frente cerca de três automóveis, todos com intenção de seguir em frente — visto que não tinham o pisca para a esquerda (única alternativa para além da de andar adiante) —, sendo que eu queria ir para a esquerda e eles não me desempatavam o caminho. Até onde a vista alcançava (quase nada, pois a curva à esquerda me tapava a visibilidade para o que de lá vinha), não havia carro nenhum em andamento na faixa oposta, vai de arriscar (haha, muito bem aplicado) a sorte (que, como é do conhecimento mundial, é olimpicamente ínfima) e arranco para a esquerda com toda a convicção e força que o acelerador me permitia, logo assim dei por desfeito o ponto de embraiagem. De repente, senti um abanão para os lados e ouvi o inconfundível ruído. Porém, ainda tive dois décimos de segundo para equacionar se não estaria a ser protagonista de um tremor de terra. Assim que percebi que dera com as portas direitas na chapa do carro que estivera à minha frente e que as paralelas e tangentes não são o meu forte, só mesmo as secantes, avancei um nico para não estorvar nem inquietar os que estavam lá para trás, saí de Rosinha já a pensar acordo amigável - seguro - documentos do carro - meus documentos - assunção da porra da culpa (sem usar o cilício, também não devia ser caso para tanto) - vamos a isto, que não há-de doer. Da viatura acometida, sai uma senhora a rir, e eu Ai tu queres ver que me saiu uma pior que eu? Tento acalmá-la? Dou-lhe um estalo para acabar com o histerismo? Chamo o 112 com uma jaula? Peço ali aos rapazes do hospital que vão buscar um dardo cheio de sonífero? Melhor não, a sorte vira-se sempre contra mim, vai na volta e o outro saía-me uma espécie de Tell sem pontaria, vinha de lá armado com a besta e eu ainda apanhava com a seta na testa como o do anúncio do "Fica quieto", "Ups". Estava eu perdida e sozinha nestes pensamentos, quando ela optou por explicar o gargalhedo, não fosse eu colapsar: "Minha senhora, já é a segunda vez que isto me acontece hoje". Convém confessar que eram apenas 10:30 da madrugada. Respondi-lhe: "Vá para casa, por favor, e só saia de lá amanhã". 

O lado esquerdo do carro dela estava todo riscado e amassado. Deitei dramaticamente as mãos à cabeça e perguntei: "Eu fiz isto tudo?". Honesta, podia ter aproveitado, "Não, isso já é de outras". Fui verificar o meu lado direito e havia riscas, sim senhor, mas nada de chocante, até se for fazer iguais do outro lado, parece que é um modelo diferente da marca. 

Concluímos que não havia nada a declarar, quais acordo amigável, quais quê, quase demos duas beijinhas e adeus e Boas Festas. Cada uma foi à sua vida, que a mulher tem mais com que perder tempo, quanto mais quando são duas. 

Homens? Era não ter avançado do local onde havia raspado, empandeirar o trânsito local e depois da cidade toda, era o acordo, era o telemóvel, era a identificação, era o telefonema para a companhia de seguros e para o amigo mecânico, era o croquis do sinistro, tudo muito sinistro. 


12/12/2023

red velvet

A doença envelheceu-te muito, diz-me ele à mesa, onde fica a maior parte do tempo calado, apenas atento. Está ao meu lado esquerdo, quero ver-lhe os olhos — os mais lindos que já vi, para além dos outros três pares — para perscrutar-lhes a emoção de, pela primeira vez desde que nos conhecemos, ele dentro da minha barriga, comentar qualquer coisa de negativo em mim. Por breves momentos, pensei “Não cortes o cordão que, na verdade, é uma corrente de ferro sem aros abertos, não existe ferramenta para tal”. Nesta pausa, ele retomou sem precisar de novo fôlego, e então compreendi que não era uma crítica, tão pouco um dito momentâneo para me magoar ou provocar — que jamais esperaria vindo dele —, e sim só uma constatação de facto: a doença envelheceu-me, cansou-me, desalegrou-me, levou-me aos píncaros da tristeza. E fisicamente, achas que também? Ele em consciência, breves segundos de impasse e, sem olhar para mim, caso contrário talvez me dissesse a verdade que custa a todas, “Não”. Não. Não me mentiu, simplesmente desarredou subtilezas femininas desimportantes. 

Fiz anos há umas quantas semanas e queria soprar as velas num bolo red velvet. Porém, em casa mais ninguém concordou, a não ser ele. Bolo delicioso, cor de sangue, sangue do meu sangue foi comprar os ingredientes, meteu-se umas horas na cozinha com aquele par de mãos que são as mais bonitas que eu já vi — para além dos outros três pares — e, no final, apresentou-me o bolo do meu capricho — ou do meu sonho guloso —, onde espetei as velas e cantámos todos a um ritmo alucinante, impróprio para aniversários. Houve abraços e desejos de muita saúde e houve também a prova de que nada me envelhece. Nem quando eu já for velhinha — se lá chegar —, enrugada e encolhida, haverá sempre aquele olhar que, com a desculpa de que me vê todos os dias, não me verá envelhecer.


04/12/2023

Parque de estacionamento - 1; Linda Blue - 0

A pessoa até já vai nervosa quando se acerca de um parque de estacionamento. Tinha mais uma consulta das centenas que já tive, esta para verificar se o braço está mais gordo do que o outro ou não. Vivo um bocado aterrorizada com a ideia, porque, caso se verifique, vou deixar de saber que número visto. Nada é impossível comigo: tive um pé maior do que o outro durante anos a fio, agora o maior encolheu e passei a calçar o número abaixo [já vi desculpas melhores para renovar o calçado todo], ou seja, todos os sapatos me chinelam, e isso provoca umas dores que ninguém supõe, uma vez que tenho que fazer imensa força com os dedos para que não me caia um sapato nalguma escada rolante, venha um príncipe atrás de mim e tenha que lhe aventar com o outro para correr mais agilmente.

A facilidade com que me perco nos assuntos. Pareço o tio das Derry Girls

Aproximei-me do parque, esperei pacientemente a minha vez (porque tinha tempo, pois aquela lesmice só dá vontade de uma pessoa perder o amor ao carro e empurrar os caracóis todos para dentro do parque), depois chegou o cruel momento em que tive que abrir o vidro e esticar o braço ao máximo e, mais uma vez, faltava-me cerca de um Danoninho para chegar ao botão da Via Verde. Veio imediatamente um cavalheiro muito solícito, e, sem eu lhe pedir nada, espeta o dedo em "retirar ticket", enquanto eu digo "Via Verde, por favor". O bilhete saiu mesmo, mas a teimosa até ganhou braço, qual Senhora Incrível, e pumba no botão verde. A cancelinha abriu, eu acenei gudebai ao senhor, ele de bilhete no ar, "O que é que eu faço a isto?", "Deite fora, que eu saio com a Via Verde". Estacionei Rosinha de forma a revelar o meu TOC — carro direito e com as exactas distâncias entre os extremos do dito e o tamanho do lugar —, saí um bocado contrariada porque o pavimento era daquele cheio de hexagoninhos, que qualquer humano que tenha calçado uns saltos altos joga ali um bocado à roleta russa, "a ver se o raio do salto não se mete nos buracos desta m.", mas avancei. Ao passar pela casota onde se esconde um senhor que já está irascível às nove da manhã, deu-me cá aquela dúvida "e se...?", sabem? Lá fui gritar para o acrílico que nos separava: "Bla, bla, bla, um senhor tirou um bilhete, bla, bla", e ele estende-me um cartãozito, "É este, minha senhora. A senhora não saía do parque com a Via Verde, porque tem prioridade a primeira escolha". Olha que bem pensado, existe sempre a possibilidade de alguém se pôr a tocar piano com os botões daquela coisa. Lá lhe agradeci e fui-me, na direcção da entrada do parque quando, de repente, vejo uma barra enorme na direcção da minha cabeça e só tenho tempo de dar um salto para o lado e dizer "Ai!". Sinceramente, em que mundo estamos? A ver se alguém me avisou. Se calhar, queriam ver o que é que acontece quando uma pessoa leva com a trave na mona. Eu também apreciava visionar os carros deles a levarem com aquilo no tejadilho. Será que tem uma lâmina, qual guilhotina? Fiquei a pensar nisso, seria coisa para me deixar para ali rachadinha nos meio. Mas não, como cheguei à consulta com as duas metades agarradas, tive a grata notícia de que os braços continuam da mesma absurda grossura. Ordens da médica: "Dance, dance, dance". Pelo menos, não me disse "Faça flexões, pranchas e burpees", senão também não me apanhava lá outra vez. 


27/11/2023

Valor sentimental

Ora aqui está uma expressão da qual não gosto, mas uso. 

Estou desde sexta-feira a passar tormentas sem boa-esperança, pois perdi a minha pulseira mais querida, e de que dependia quase toda a minha alegria e o meu esplendor estético. Sobretudo, porque me foi dada por uma das minhas crianças, há não sei quantos anos, tantos que são. 

Sei que a perdi entre a manhã e as cinco da tarde da passada sexta-feira. (Não sei se já aqui disse, mas todas as minhas sextas-feiras são 13.) Quando punha o relógio, era impossível não notar a falta da pulseira, que dormia comigo, tomava banho comigo, tomou todos os banhos de mar comigo, só não fez alguns exames e tratamentos incompatíveis com ela. Assim que me apercebi que não a tinha, para além da tontura e vontade de me amandar pela janela, desatei rapidamente a fazer um rewind do dia todo. Fora de casa, supermercado e duas vezes papelaria. Liguei para ambos, nada. Mesmo assim, fiz o caminho até à papelaria pela escuridão das noites antecipadas e voltei na desolação que já me enchia o peito. Procurei nas mangas do casaco, nos bolsos, na roupa toda que tinha vestida, fui ao carro, que tem uma zona que é Nárnia, as coisas caem para lá e nunca mais aparecem, desviei banco do condutor, liguei a lanterna, fui ao porta-bagagens, fui ao fundo do poço (esta é exagero, ainda bem que não tenho um poço, senão já andava a descer as escadas de fato de mergulhador e óculos e tubo e garrafa de oxigénio). Procurei nos lugares mais inóspitos do lar: frigorífico, congelador, gaveta dos talheres, gaveta dos utensílios, área da máquina que diz que cozinha por a gente, bolso do avental, tudo à minúcia, pois tinha estado a cozinhar de manhã e à tarde (na tola esperança de não ter trabalhos ao fim-de-semana), por baixo de todos os armários que não são rentes ao chão (tenho uma gata que é gatuna e esconde tudo por baixo de tudo), dentro da minha cama (desfizi-a, sim. E sei perfeitamente que se diz desfi-la, mas perdi várias capacidades por causa disto), sacudi almofadas, edredon e coberta, às tantas já me sacudia toda e então fui dançar para desenervar. Sábado de manhã estava desvairada a dizer aquela frase estúpida: "A esperança é a última a morrer", quando isso até me lembra uma mulher que eu conheço e se chama Esperança. Tem uns pêlos no nariz que é de não prestar atenção nenhuma ao que ela diz. Depois da dança de sábado, pedi a cônjuge que me deixasse no supermercado (a frota estava em situação precária, um sem bateria, outro emprestado a uma das crianças), pois queria encontrá-la, nem que fosse esmagadinha por pneus, era minha, homéssa! Quem por lá passou no sábado perto da hora do almoço, era ver uma idosa de lanterna em punho, leggings e saia curta de dança, anorak de capuz, a revistar todos os lugares - por baixo dos carros incluído - e zonas adjacentes, com um ar tão suspeito que até um segurança se me acercou, mas não tinha tempo para conversa fiada e fui-me para o supermercado. Corri os corredores todos, varri à mão salsa e coentros e frango e bifes e tofu e seitan e laranjas - aquela rede que as envolve parece feita para pescar pulseiras - e tomate pelado e gelados e queijo mozzarella, num inacreditável desvario, sem carrinho nem cesto, a remexer em artigos (aparentemente) de forma aleatória, devem ter um filme meu lindo de se ver. Fui ao balcão do apoio ao cliente, e sim, precisava de apoio, precisava urgentemente que alguém me desse um ombro, enquanto eu gritava "Ai, minha rica pulseira!", tirei a senha e sequei enquanto um casal de idosos mandava embrulhar quatro brinquedos gigantes e eu lhes rezava pela pele. Chegou a minha vez, foram ver ao dossier e depois a uma caixa, e nada. Voltei para casa a pé, num desconsolo que só eu é que posso avaliar. 

Como tenho cinquenta por cento de possibilidades de a minha pulseira estar em casa, só ainda não levantei móveis, mas de resto, afirmo aqui sem vergonha que me tornei um perdigueiro. De repente, lembro-me de um sítio onde poderá ter caído (gaveta das meias, gaveta da roupa interior, sete gavetões e em todos os roupeiros), e lá vou eu farejar mais um recanto. 

Caso a tenha perdido na rua, estimo que a pessoa que a encontrou a perca também e tropece no tapete da entrada de casa, parta os dentes da frente e ainda lhe dê uma copiosa diarreia, daquelas que não se seguram na rua e é necessário fralda. E lhe dê a sarna. E uma incontrolável camada de piolhos. 

Se fosse eu, entregaria a pulseira nos perdidos e achados? Claro que não. Fazia o que faço sempre: ia lá e deixava o meu telemóvel sem descrever o que tinha encontrado. Só "pulseira", com a advertência de que entregaria a quem me desse a melhor descrição. Então não encontrei já um pc? Não encontrei já uma carteira cheia de documentos (vazia de dinheiro, óbvio)? Não encontrei já uma enorme quantia em dinheiro dentro de um envelope (e também encontrei logo a pessoa que o tinha perdido, que não me viu apanhá-lo do chão, era mesmo a dona, descreveu quanto era e tudo)? Preciso lá agora das coisas alheias? Para isso, ia roubar, não andava cá nesta penúria de trabalhos freelancer (que me matam e esfolam viva por uma merreca), e tempo para textos destes, que têm um interesse equivalente ao da reprodução das ervas daninhas.

É o valor sentimental. A própria criança que ma ofereceu, disse: "Deixa lá isso, é só um item. Já me deste uma ideia para o Natal". Não é só um item, era mais um dos meus pés de laranja lima, filha adorada minha.


 

22/11/2023

guerras

Chegava da rua com três insignificâncias no saco, e estavam de um azul igual ao do céu de hoje os olhos do homem de rabo-de-cavalo e grandes entradas, arrumando coisas na bagageira. Viu-me, endireitou-se e disse Bom dia, eu instintivamente repeti o cumprimento sem saber de quem se tratava, mas depois estaquei diante dele, Ah, o ucraniano que faz toda a obra nas casas e também já esteve na minha. Viu-se obrigado a deixar a minha obra a meio, por ter que ir à sua terra natal, visto que o pai piorara da doença. Por lá ficou seis meses mas, quando voltou, ainda a guerra não rebentara e o mundo vivia na santa paz das inflações. 

Perguntou-me se estava melhor, eu disse que sim, mas ele não ficou muito certo disso. Expliquei-lhe da vigilância apertada, das análises, exames, consultas, medicamentos, e ele, com os olhos cada vez mais azuis e cristalinos, disse-me: “Tens os olhos a brilhar”. Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça, “Custa muito não poder sonhar a longo prazo”. “É uma guerra. O meu pai perdeu essa guerra”, e era mágoa em estado líquido que lhe ondulava nos olhos, sem nunca os baixar. “É uma guerra, sim. Uns morrem, outros não.”

15/11/2023

O universo também não ajuda nada

Fui a uma palestra sobre alimentação de senhoras que tiveram cancro da mama, no âmbito de um programa em que me inseriram. Deixei Rosinha, minha canoa, num parque ao ar livre, porém debaixo de uma passagem superior. Lá chegada, sentei-me, observei as restantes pré-palestradas, todas significativamente mais velhas do que eu, menos uma, que é a que tem o ondulado mais bonito de todas. A primeira vez que a vi, perguntei-lhe se era consequência dos tratamentos (o cabelo renasce com outra textura e, às vezes, outra cor. O meu veio encaracolado e branco, vá-se lá explicar esta última). Ela respondeu-me que sempre o teve assim, e eu anunciei-lhe, como se ela soubesse o truque: “Eu quero igualzinho”. Nas outras, vi muitos edemas, muito peso a mais (por falar nisso, as minhas calças 38 deixaram todas de me servir, comprei umas 40, agora caem-me), muita grisalha, muito sobretudo num dia não tão frio que justificasse. A palestra foi dada por uma nutricionista magra (aleluia!) e, basicamente, era a explicação da roda dos alimentos: o que podemos ingerir, o que não podemos e em que quantidades. Tirei imensos apontamentos, a minha letra foi diminuindo de tamanho até quase chegar a invisível. Tenho a motricidade fina toda lixada. Saí muito esclarecida e pouco convicta de que me vou meter naquela prisão redonda só para ter mais alguns anos de vida. Engordei para aí uns três quilos nestes dois anos,  provavelmente derivados dos tratamentos e da pastilhagem diária, mas não vou amandar-me a um poço a propósito. Danço cinco vezes por semana, é essa a minha roda.

Mas não era a isto que eu vinha. Chego ao parque de estacionamento, coloco o bilhete lá naquela coisinha óptica e diz a máquina: “bilhete inválido”. Entretanto, formava-se uma bichinha atrás de mim, tudo muito solidário, “Ai, agora como é que a senhora sai daqui?”, “A senhora venha atrás do meu e, quando a cancela abrir, passamos juntos” (eu já a ver-me finada, degolada por uma cancela de parque de estacionamento), “A senhora peça ajuda”, já eu ligara para cônjuge, “O que é que queres que eu faça? Vem para casa e amanhã vais aí buscá-lo” (a ver se não me esqueço de o retirar dos contactos de emergência), já eu premia com todas as forças de meu indicador o botão de SOS da máquina e nada, o homem devia estar a dormir lá dentro, já eu ligava para os dois números de assistência, um não atendia, o outro dizia que só funcionavam num raio de um horário que, obviamente, não incluía o meu. Tentei outra vez na porra óptica, “bilhete inválido”, Cristo, que merdas tão grandes que só a mim sucedem. Carreguei então de novo no botão de SOS e lá hei-de ter acordado o humano, “O senhor desculpe…”, “Ó minha senhora, eu estou a trabalhar” [ninguém diria, há dez minutos, se calhar tinhas ido fazer cocó enquanto eu me espremia aqui dos nervos]. Mas foi útil. Fez-me ler o bilhete todo, hora de entrada, número de código, nome do parque. “A senhora está no parque errado”, ah, eureka, fico-lhe muito agradecida e até estimo que a sua inoportuna evacuação tenha decorrido pelo melhor. Mas a sério, fiquei desconfiada que mudaram os parques de lugar só para medirem a minha capacidade de sair de uma situação.

Quanto a mim, não sei se estou pior ou só mais velha.

12/10/2023

Agora eu sabia fazer malas e o meu cavalo só falava Inglês

A noiva do cowboy era você além das outras três

Algarve em Outubro, em cheio na semana de calor, férias marcadas com um mês e meio de antecedência. 

Tive trinta e seis horas para fazer esta mala, não seguidas, pois entretanto houve que dormir, satisfazer outras necessidades básicas, cozinhar, lavar, estender, recolher, passar a ferro, limpar cantos mais visíveis - Mlle. Que Fala Tanto adoeceu após três semanas de férias (provavelmente, fazem-lhe mal. Para o ano já só goza duas semanas) e meteu baixa por outras quatro. Esta que tecla não quis chamar outra de substituição, pois cada uma que vem é pior que as anteriores todas. O ano passado tive cá uma que me partiu o cano do aspirador e me torceu irremediavelmente o cabo do ferro. Cheira-me que andava às piruetas pela casa com os meus electrodomésticos na mão. Não me lembro como é que ficou a bicha do duche. Só devia apreciar eléctricos. Tive diálogos com as substitutas de minha Sandra dignos de filme de terror: "Senhora, eu não sei dobrar camisas"; "Passe-as, que eu as dobro". Fim do dia: camisas todas dobradas por ela. "Senhora, eu não sei passar a ferro, mas fui ver ao Youtube e acho que aprendi". E não é que passou tudo eximiamente? Fico-te a dever uma, You.

Ora, esta mala, comecei a fazê-la de antevéspera, porque já sei que me falha sempre qualquer coisa. Mas também aprendi que posso começar na semana anterior, que vou sempre esquecer-me das cotonetes. Ou do único champô que faz iludir que o meu cabelo não parece tanto acabado de sair de uma permanente. Desta vez até nem me esqueci de coisas muito importantes, a não ser dos dois biquínis de que mais gosto (e os únicos que não demonstram por A + B que me sobram coisas), do corta-unhas (não as cortei, portanto) e do espelho que aumenta a imagem por dez e nos revela pormenores na cara que desconhecíamos ter e dos quais devíamos envergonhar-nos: pêlos, manchas, altos, baixos, rídulas (quais rugas, quais quê). Já estive para escavacar aquilo, só para não ter mais trinta e quatro preocupações diárias, mas diz que dá azar por sete anos, e não esquecer que este multiplica por dez. Há cinco anos, partiu-se um espelho enorme no lar (durante uma das mil obras que o dito já sofreu), estava na varanda para ser transportado para outro lado, lá veio o vento e tudo levou, escaqueirando-me a grande porra e a minha vida por sete anos. Ainda faltam dois, ando aqui mais direitinha do que na trave olímpica. 

Enfim, revelei ao mundo que me rodeava as chichas que, se pudesse, arrancava à naifada, cheguei à cidade com umas unhas boas para esgrimir com Eduardo, Mãos de Tesoura e com pelitos vários a assomarem-se no sobrolho, dando-me aquele ar mais sóbrio com que a pessoa fica.

(Férias maravilhosas. Levei comigo primogénita, que tem exactamente os mesmos ritmos biológicos que eu, o mesmo humor - o bom e o mau, nas mesmas proporções -, só que é francamente mais inteligente.)


26/09/2023

A sala das pegas *

*

Entro na clínica que fica num rés-do-chão, porta sempre encostada, é só empurrar, e sou invadida pela animadíssima conversa das cinco mulheres que ali se encontram, uma senhora de idade com o cabelo extremamente curto, queixas de unhas negras e os pés sempre levantados ao nível da anca — cada vez que os baixou, percebi que não chegava com eles ao chão e então mexia-os para trás e para a frente —, uma mulher gorda — ela é que disse “Eu sou toda gorda” —, a trabalhar no portátil e ao telemóvel qualquer coisa de carregamento de trezentos e quinze cabazes de Natal, enquanto falava com as outras quatro, uma terceira, completamente vulgar, cabelo pintado de vermelho, sandálias rasas, prateadas, que disse calçar o quarenta (outro dia ouvi, numa série de crime, um detective dizer acerca do esqueleto humano que havia sido encontrado, “Só pode pertencer a uma mulher muito jovem ou muito baixinha, o pé corresponde a um trinta e sete”, por acaso achei piada, porque nem uma coisa nem outra, mas acho que a tabela americana deve ser diferente da nossa), uma quarta mulher, a mais jovem de todas, seus quarenta anos bem estampados, vestida de adolescente, mascando ruidosamente uma pastilha elástica, declarando-se incapaz de usar os mesmos ténis brancos duas vezes, logo para lavar, e, de facto, os sapatos brilhavam como novos, os atacadores impecáveis, e, por último, mas não a última, a histriónica, vestido transparente com riscas largas muito coloridas, botas de cowboy, peito gigante e gingante, falando ininterruptamente, rindo a cada pausa, gabando seu gesto e modo a cada frase, um ruído impossível de ignorar, uma tormenta igual a um álbum inteiro de metal. As cinco taca-taca-taca, sobre roupa, sapatos, lide doméstica, truques secretos para a despachar mais rapidamente. A faladora entrou no gabinete de psiquiatria e julgo que ficou lá a viver, pois não voltei a vê-la. Pergunto-me até que ponto a alegria e a euforia não estão intimamente ligadas com a tristeza. As restantes quatro tinham ido só para lhe fazer companhia. Quando me apercebi que a minha consulta estava bastante atrasada, disse para comigo que talvez fosse melhor ir arejar a cabeça e o resto do corpo. Devia estar em transe ansioso quando abri a porta e saí, porque respirei fundo o ar misturado de árvores e escapes e considerei o barulho dos automóveis e das gentes que passavam uma verdadeira entrada no céu.

Ainda bem que nasci mulher. Se já tenho alguma dificuldade em aturar-me a mim, que direi aturar uma toda a vida?

12/09/2023

O já velho e eterno problema de fazer uma mala condigna

Vamos aceitar sem cerimónias que não sei fazer malas. Desta vez, despejei a gaveta das cuecas para dentro da dita, levei o dobro dos biquínis para os dias que ia ficar, levei apenas uns calções e uns ténis, um vestido para cada dia e umas calças caso chovesse, apenas uma parte de cima de pijama e seis de baixo e zupa com ela. Resultado: voltei com dezenas de cuecas limpas, usei todos os biquínis porque me dava ao luxo de fazer pausa de almoço, passei o tempo a lavar os calções de treino no bidé do quarto pois frequentei o ginásio até ao estoiro (dois quilómetros de cada vez na passadeira transformavam-me numa torneira de suor, o que vale é que não cheiro. A retirada de gânglios não tem só coisas más e a outra axila solidariza-se e também não cheira), usei as calças porque choveu mesmo, e tive que improvisar pijamas com t-shirts giríssimas que tenho. 
Este ano fiz férias no sul da nossa Espanha, escapando airosamente ao sul daquele Portugal seboso e chineleiro, que adora fazer filas para tudo, até para o pão que o diabo amassou. Do lado de lá, sessenta por cento dos hóspedes eram portugueses, o que também não é só vantagens. Queres perceber onde está um português, nem que seja na China? É o homenzinho que tropeça. É o que desconhece em absoluto a noção de espaço vital e fala alto e escuta tudo o que dizes. É o que come três pães ao pequeno-almoço, ou então ovos mexidos com um estrelado (saw it) e fatias de pão com bacon. Eu comi todos os dias um Donut, ora pequenino, ora grande, ora médio. Bem feita que me venha parar tudo ao donut pneu. 
No geral, a Península Ibérica é uma fartazana de varizes e celulite, e não é só nas mulheres. Mas as criaturas estão tranquilas com aquilo, quem sou eu para me ralar?
No geral, apreciei assaz as férias. Fiz muita praia, num mar que até permitia nadar, muita piscina, apanhei muito sol e a minha pele não berrou que só tem um ano de radioterapia, o meu cabelo não ficou com aquela cor de cocker spaniel (muito protector, muito chapéu), dormi e comi em excesso mas não pus um grama (devo ser muito criteriosa ou tenho uma balança burra), não bebi senão água e cerveja sem álcool. É por estas e por outras que julgo que um dia me canonizam, nem que seja à força.
No regresso, porque perdemos uma hora para fazer dez quilómetros derivados a um acidente (um carro foi parar ao talude, desconheço como é que se faz semelhante manobra) e tínhamos, ao todo, para almoço, quatro barrinhas de cenoura, dois Actimel* (ou Actimeis, como diz o povo), um pacote de batatas fritas com sabor a ketchup e um chocolate branco, para além de um pequeno saco de ração para gatinhos, porque nos tomámos de amores por uma gata com uns dois meses, que baptizei de Mira. Repartimos aquilo tudo, prescindindo da ração, mais porque ficámos empanturramos com a mistura anterior, e foi o nosso almoço, já não havia cá tempo para paragens. Não percebo como é que o meu aparelho digestivo não me manda à merda. 

* NMPPI

23/08/2023

Sutiãs chineses

A loja do chinês do meu bairro já pertenceu a vários donos — tanto quanto me lembro, os primeiros foram o casal Zhu e Jy —, e, de há uns bons anos para cá, está à frente do negócio um outro casal, de quem desconheço os nomes, porque não os oiço conversar. Ele percebe e fala um Português cheio de LL, mas corrente. (Fico sempre a pensar o que será da vida de um chinês que não consegue dizer os LL, como Feuisberto Uorenço Uauande. Em vez de “Não estlague”, se calhar diz “não estuague”.) Já ela, é uma verdadeira desgraça, tanto a entender como a falar. Mas ri muito, com os olhos em linha, o seu carrapito e o metro e meio de altura, acha divertido tudo o que eu digo. Há-de ser porque não entende. Encontra-me na rua, eu digo “Bom dia” e é vê-la toda grisada.

Vou lá muito, à loja deles. Têm sempre mil merdinhas que, se não fazem falta, passam imediatamente a fazer. Outro dia, andava eu a deambular pelo espaço comercial asiático quando me deparei com os sutiãs da minha vida: sem aros, sem copas, sem elásticos, sem costuras. Vi os tamanhos e, dos que havia, só me servia o preto. Vai de preto nas meninas, que bem precisam de ser bem tratadas.

Gostámos tanto da peça de lingerie, que vai de comprar as duas outras cores básicas: bege e branco. Entro na loja, faço sinal à chinesa que venha comigo e ela hi-hi-hi, lá me acompanha até ao recanto das intimidades. Pergunto pelas cores, ela hi-hi-hi, apercebo-me de que não há o meu tamanho, aproveito para perguntar se dá para tirar as duas almofadas, e ela, como não percebe um boi, apesar de eu ter gesticulado, grita, enquanto simula com as duas mãos dois enormes peitos: “Glande!”. E mais dez hi-hi-his, os ombros encolhidos até lhe desaparecer o pescoço, um toque solidário no meu braço e eu: “Gostaria ao máximo de não ter que discutir sutiãs com o seu marido, mas apercebo-me de que tal é impossível”. O que a doida riu.

Foi só chegar ao balcão, dizer o que queria e, passados dias, já lá, e depois cá cantavam os ditos suportes. O homem não se riu vez nenhuma, mas, em compensação, também não chorou.

21/08/2023

Chico-espertice

Entro na farmácia do hospital convencida de que vai ser canja de galinha despachar-me num instante: Agosto, toda a gente fora, só peregrinos pelos passeios, nenhum iria ali tomar a vez de ninguém. Afinal, foi fígado. Com ossos e espinhas e nervos: sessenta pessoas à minha frente. Esquecera-me que a doença não mete férias. Mas não posso ir-me dali, que é a vontade que tenho, porque preciso mesmo daqueles comprimidos para sobreviver: são os que evitam que o cancro desate a passear pelo meu corpo. Prescrição de mínimo cinco anos, máximo dez. Se sobreviver até à última toma, já dou por ganha esta coisa, sei lá que nome lhe dar. 

Faço o que é costume fazer quando tenho muita gente à frente: conto o número de guichets, o tempo médio de atendimento de cada um e faço a divisão, para calcular quanto tempo vou esperar. São seis, um deles não tem ninguém, conta cinco. Assim à queima-roupa, não consigo fazer cálculos: entra uma mulher com uma farda de auxiliar e fica quinze minutos a conversar com a farmacêutica do guichet 3. Depois sai, a outra abandona o local de trabalho e, ao cabo de cinco minutos, ambas voltam, para conversarem mais um quarto de hora. Começo então a desconfiar que o tereréu não é sobre trabalho, mas quem sou eu? A mulher sai de lá com um saco de plástico com seis caixas de magnésio e é aí que puxo as antenas para fora, uma vez que o contador das senhas não anda para a frente (nem para trás, vá lá). Entra um homem com uma menina no carrinho, aí pelos seus cinco anos, sem qualquer espécie de incapacidade para andar. Atrás dele, uma mulher cheia de saúde, mas agarrada aos rins e com uma expressão de sofrimento bastante circunstancial. Já cá ando há demasiado tempo e vi demasiadas caras em agonia para cair na daquela. Começo a sentir as tairocas a enfiarem-se-me nos pés, revejo mentalmente a lei - crianças ao colo com menos de três anos - e já pondero ir atrás dos três para lhes dar uma breve luz jurídica, qual fada Sininho falante, quando me lembro das doutas palavras de uma das minhas orientadoras espirituais (Respire fundo e conte até dez), respiro como se tivesse acabado a maratona, conto até dez saltando os ímpares e já vou levantar-me quando aparece um rapaz com meias cirúrgicas vestidas e um par de muletas, a cabeça até ao chão, todo ele um calvário que me dá para pensar que talvez seja primo daqueles pedintes dos semáforos da Praça de Espanha e de Sete Rios, que são demasiadamente deficientes e coxos para ser verdade. E então, ao cabo de uma hora disto, percebo que os prioritários são tantos que os outros vão ficando para trás e a m. do ecrã das senhas não avança nem à paulada. Calma, Maria Linda de Blue. Vai-te informar. Boa tarde. Pode informar-me se quem tem atestado de incapacidade também é prioritário? Voz de desenho animado: Sim, sim, a senhora exibe o atestado e é atendida com a senha de prioritária. Os cinquenta e dois que ainda faltavam para a minha vez transformaram-se em dez. 

Chico-espertice? No fundo, não. Uma, foi tomar meia-hora a quem estava à espera. Outros, foram com uma criança enorme no carrinho. O outro levava meias brancas e canadianas. 

Usei o atestado. Não gosto, não quero ser definida por uma doença ("Aquela que tem cancro", como dantes "Aquela que tem quatro filhos"), mas, já que tenho que a carregar e ela me confere pequenos alívios, que carregue o diabo os outros que vão para lá de meias e coisas assim parecidas.

(Já muitas vezes ponderei ir para os hospitais, repartições de finanças, centros de saúde e outros infernos que tais, a arrastar chinelos, de bata de nylon vestida - que, como se sabe, cheira a bedum -, o cabelo com um carrapito oleoso ao alto da cabeça, desmaquilhada, sem verniz e a chuchar nos dentes, aos berros para um telemóvel assuntos da vida da Lina e do Mário, porque acho que, assim, seria mais bem tratada nesses lugares.)

07/08/2023

É preciso tão pouco para me fazer feliz # 16

Não sei se as pessoas já repararam que os nadadores profissionais, que até concorrem em competições, assim como as bailarinas da natação sincronizada, colocam uma peça no nariz para que a água não lho penetre e não lhes atrapalhe as performances. 

A pessoa que digita estas coisinhas também é assim: não pode permitir que a água — seja do mar, seja do rio, seja do lago, seja do poço, seja da piscina, seja da torneira, seja do charco, seja da Fonte Luminosa (da chuva nunca experimentei) — lhe entre narinas acima, qual teste de covid, caso contrário aquele jacto faz uma ligação directa com a garganta e é ver-me à beira-mar ou a qualquer beira de água a jorrar água por todos os buracos da cabeça, excepção feita às orelhas, acho.

Então, há muitos anos, comprei uma mola de nadador. Pus aquilo — e atenção que o meu nariz é pequeno — e pensei, em pânico, que mais valia ir à água com uma mola da roupa no nariz (quem nunca?). Arrumei a tralha e voltei ao sistema antigo: mergulhos de mão no nariz e a outra à frente, não fosse ali a passar um golfinho e se esbarrasse com a estranha. Mais tarde, comprei outra mola, mas acho que a perdi logo na gaveta dos trajes veraneantes e, tanto quanto me lembro, também não era lá muito confortável. Isto foram-se passando os anos e, teimosa, comprei a terceira mola. Só que esquecia-me sempre dela em casa. Até ontem, dia em que empunhei a dita, coloquei-a no nariz, primeiro ao contrário, depois correctamente, e lá fui eu até ao mar, todos por quem passava a olharem curiosos (“A tia partiu o nariz”; “A tia fez uma rinoplastia que correu mal”; “O piercing da tia é fixe”; “A tia pôs uma argola do gado para se sentir estupendaça”), esperei pela primeira onda daquelas grossas, com para aí trinta centímetros de espuma e a velocidade de uma locomotiva, e brrrrruuuum, passou-me ela por cima e eu com os dois braços à frente da cabeça, como convém.

Nunca mais poderei encontrar um rochedo, um banco de areia, um coral, quanto muito, parto um braço, o que é certamente melhor do que ficar numa cama toda a vida. 

Tenho a teoria, que acho altamente científica, embora ainda por provar, que o fenómeno da entrada da água no nariz destapado é de quem se viu obrigado a arrancar os adenóides. A água entra até ao cérebro, faz lá uma centrifugação qualquer, depois sai e está a gente todas desmanchadas, que parece que não nos ensinaram a nadar. Isto é bastante nocivo para a dignidade de alguém que, ainda por cima, já não vai para nova.


03/08/2023

Vinde a mim os peregrininhos Editado

Post editado, que a pessoa também podia amandar para os rascunhos, ou então eliminar sem dó, mas que não sou feita dessa raça (nunca aqui contei que, só numa manhã, salvei a vida a cerca de quarenta mosquinhas da fruta, através do método copo + papel, e não o fiz porque sei que o Planeta berraria de troça de mim), mas (e aí vai mais uma oportunidade para o Mundo o fazer) é que juntei João Paulo II com Francisco num só, o que apenas denuncia a minha completa abstracção por estas lides, e não que já estou varrida, se acreditarmos nas dezenas de milhares de exames, análises e outros dói-dóis que me fizeram nos últimos vinte meses. 


Aqui fica um pedido aos milhões que já leram este coiso: tenham paciência e boa continuação.


A cidade está um veludo azul, só contrastando esta ventania enviada pelo Cão, aparentemente para fazer arredondar as saias do papinha e, eventualmente, fazer-lhe voar para parte incerta a tigela que ele usa na cabeça. Não se engane quem pense que eu sou contra a liberdade religiosa e blás, só estou um bocadinho danada, ratada e frenética com o preço daquele palco, a origem do capital para o construir e depois o destino do lucro com a festarola, sobretudo porque calculado por Moedinhas, aquele presidente autárquico com voz de pífaro que só percebe de cêntimos, a avaliar pelo modo como multiplicou o número de jovens, gastos diários e resultado final. Tenho mais coisas contra padrecos, mas agora não me apetece vomitar.

Como sempre em Agosto, Lisboa partiu para parte certa e ficam apenas os resistentes ao massacre dos supermercados pejados de pegajosos humanos de xnelo, óleo bronzeador (ou será dos fritos?) e vernáculo, das praias diminutas com colmos ao preço de um apartamento na capital, das filas para tudo, dos restaurantes de décima categoria a servirem-nos uma lasanha congelada às dez da noite, todo um pesadelo do qual fujo como do fogo do inferno. Normalmente, há menos de metade do trânsito, mas este ano está como o diabo gosta (e eu): quase não se vê uma alma viva na rua, apenas rapaziada de t-shirt amarela (isto mói-me: será que usam a mesma toda a semana?), chapéu e colar com a identificação, deambulando sem rumo (por exemplo, há bocado vi um grupo a atravessar entre o Hospital de Santa Maria e a Universidade Católica, ou seja, no sentido oposto ao do Parque Eduardo VII). Não incomodam, não estrilham, não se metem com ninguém. Tragam-nos de volta em todos os próximos Agostos, se faz favor.

Não fui ver Sua Santidade. E explico: já o vi duas vezes, ambas em Lisboa. Na primeira, era petite petiza, na segunda, já um pedaço de mau caminho. Referia-me a JP2.

(Quando fui a Roma, não o vi, mas, em compensação, ele também não me viu). Referia-me a Chico. No fundo, temi que El Papa dissesse, apontando para mim: “Olha-me aquela! O tempo não passa por ela!”, e ainda me ver na contingência de revelar o meu segredo, como fizeram à Lucy. Isto não poderia acontecer, já que o actual Papa nunca me pôs a vista em cima. Lamentável.

(Ponto mais awkward desta visita papal: aquele Marcelo a recebê-lo na pista, ele em cadeira de rodas e o outro resolve dançar o rock and roll com Francisco.)

Foi a terceira, mas está bem.


18/07/2023

zzzzzzzz

Tenho sono. Durmo como uma criança toda a noite, mas basta que me forneçam algo de muito aborrecido ou interessante, que preciso de dormir como se tivesse muita vontade de fazer chichi. É que nem sou esquisita, não necessito de um colchão galáctico nem de almofada ergonómica, nem de silêncio, nem de luz rebatida. Até um chão de pedra fria me serve. Quero dormir.

Claro que ando a pastilhar como gente grande. Só para a tola, tenho duas terapeutas. Ontem estive com as duas, a primeira reprovou simpaticamente uma atitude/ decisão minha e só não me mandou lá voltar para a semana porque vai de férias. A segunda aplaudiu a mesmíssima reacção que tive e mandou-me lá voltar daqui a dois meses. Desconheço os critérios. Procurei fazer a mesma cara, usar o mesmo timbre, a luz que me iluminava era praticamente a mesma. No entanto, as sentenças de uma e da outra foram diametralmente opostas. Bem me queria parecer que um dia ia pirar de vez, só nunca pensei que fosse tão jovem (chiu, já disse) nem por este motivo. (Até parece que há uma lista taxativa de razões. Se é para emaluqueceres, emaluqueces e prontos.)

Hoje sou acompanhante de cirurgiado. Pedi para ficar à espera no quarto, mas negaram-me a excelente ideia. Ao invés, vou ficar sentada numa poltrona de dois lugares semi-(des)confortável, mas não quero abandoná-la, não vá alguém tomar-ma: tenho uma ficha mesmo ao lado para carregar o telemóvel — cuja bateria consumo como tremoços, à custa de um jogo — e também a casa-de-banho. De toda a maneira, nem que se me arrebente a bexiga, não tenciono arredar daqui. Dói-me um bocado o final das costas, mas vou aguentar. Tenho um espírito de sacrifício inigualável, creio mesmo que só não serei canonizada porque já matei um gato e um melro com o carro, inadvertidamente. 

Quem olhar para mim neste momento, nunca dirá que aqui se encontra uma aflitinha por satisfazer quase todas as necessidades fisiológicas: vestidinho que cai sempre bem (também não engordei nada, apesar da criminosa doçaria que tenho consumido. Ou os nossos espelhos mentem-nos, “És tu, minha rainha”), sandalinha de salto alto, que me põe vertiginosamente (porque tenho vertigens) alta e me faz esquecer que, afinal, não tenho 1,68 metros, mas sim 1,65. Não encolhi, acontece que aí pelos vinte anos bati a pestana ao funcionário do centro de identificação, “Não me desconte os saltos” e ele ofereceu-me três centímetros, para além dos ditos, e aos seguintes foi só dizer: “Ponha lá a mesma altura, eu não mirrei entretanto”. Eis a verdade.

Parece-me que vou deitar-me na poltrona, como aqueles passageiros das low cost e dos aeroportos com vendavais.


01/07/2023

Nunca subestimes

Atrás de mim, um estrondo metálico, que me fez virar, constatando que um rapazinho tinha batido com a bicicleta no passeio, embora ainda estivesse em pé quando o vi. Começou a gritar uns gritos de dor lancinante, mas dizia-me a subestima que era “mais um puto do bairro que se estoirou de bicicleta”. Porém, o tom, o volume e, sobretudo, a aflição dos gritos, fizeram-me questionar “E se…?”, e despertar em mim a tal bombeira, que tudo acode, que prefere arriscar perder um minuto a roer-se de remorsos para o resto da vida. Os carros passavam por ele, abrandavam e seguiam, eu estava a uns trinta metros e corri para ele, vi-o pálido como uma mortalha, verifiquei que não tinha nada fracturado, umas feridas sem importância no joelho e na mão, agarrei-lhe os dois pés, “Tu estás a desmaiar, dá-me os teus pés”, ele já calado a fazer que sim com a cabeça. Entretanto, chegou gente que palpitou bastante e a mim fez-se-me aquela luz “Mas eu conheço-te!”, pedi aos opinativos que não o deixassem mexer dali, corri outra vez, mas desta na direcção da casa dele, chamei os pais pelo interfone e depois, quando voltei, já alguém da pequena multidão chamara o INEM. 

Lembro-me da carinha dele, a entrar na ambulância, um breve sorriso a piscar-me os dois olhos. Foram dez semanas mais um dia, de melhora, piora, cirurgias, tratamentos, esperanças, desânimo: pâncreas esmagado, hemorragias várias, líquido num pulmão. Na queda, bateu de frente e depois caiu em cima do topo de um dos pinos de ferro que separam a ciclovia do passeio.

Fui vê-lo no dia seguinte a ter chegado a casa. Menos doze quilos, aos quinze anos representa vinte por cento do peso total. Demos um abraço muito demorado, ralhei-lhe baixinho ao ouvido “Que susto, meu menino, nunca mais nos faças isto. E agora alimenta-te para ficares fortezinho”, enquanto lhe acariciava o cabelo e lhe dava um beijo no que sobrou da bochecha. Ele tinha na cara aquele mesmo sorriso de quando entrou na ambulância, serei para sempre a primeira pessoa que o acudiu na enorme dor. Só porque não subestimei.


21/06/2023

Quem não sabe o que dizer | Quem devia ficar calado

Caminhava eu a passos estreitos pela ladeira, rodeada de arbustos e flores exageradamente aromáticas — madressilvas, lavanda —, quando ela se cruza no meu caminho e me prega o susto do dia: conheço-a há décadas, mas não me lembro do nome dela. Já era, ao tempo do início da primária da minha primogénita, e ainda é, auxiliar. Agora tem um nome mais pomposo, tipo hospedeira de solo infantil, ou técnica superior de pim-pam-pum, mas não me lembro de qual é. Acho-a sempre igual, só muda a cor do pêlo — cabelos, sobrancelhas e pestanas branco-branco, aquele da neve e da cal. Abre-me os braços, muito espalhafatosa — sempre me deu a ideia de que ia desatar a cantar o fado a todo o momento, aquela inclinação da cabecita para trás enquanto fala dois tons acima do necessário, é algo sugestiva —, prega-me dois beijos, pergunta pelos meus e queixa-se que não me vê há muito tempo. Digo-lhe porquê sem entrar em pormenores sórdidos — o de ter arranjado caminhos alternativos no bairro para que ninguém me visse, por exemplo —, e então ela sai-se com esta:

- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — E nisto, aquele gesto polegar-indicador, que percorre da cabeça à pança.

Devo ter ficado tão atónita, que ela repetiu, agora com mais ênfase:

- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — Juro que a vi empunhar um par de bandarilhas, que me enterrou no cachaço e até gritou “Olé!”, a bater os pezinhos no chão.

Lá acabei de subir a ladeira, sangrando do pescoço e rindo não sei de quem, se dela, se de mim, que nunca na minha vida fui uma fortaleza, nem nunca me fui abaixo. Acontece que adoeci. Sei que vou deparar-me com estas pessoas para o resto da vida. Quando menos esperar. Quando estiver, como estou, cada vez mais forte. Não tenho vergonha de dizer que à custa de muita terapia.

Balas perdidas? Apanho-as com a palma da mão. Não me atingem a cabeça, enterro-as com um pé.



13/06/2023

Ricardo

Uma febre que não cedia há oito dias, acompanhada de outros prazeres semelhantes, levou-me ao hospital, consulta de urgência de oncologia. Fui atendida por uma médica que era de uma exímia antipatia, tendo começado a esgrimir argumentos de que eu deveria ter aposta a máscara, uma vez que tinha uma infecção respiratória — que ela deve ter cheirado no ar, pois não era isso que me levava ali —, ao que respondi: “Não tenho dores no peito, dificuldade em respirar, tosse, ranho e espirros”. Mas a teimosa insistiu que eu não podia andar a atravessar um corredor cheio de doentes a fazer quimioterapia sem a máscara — ela pode, porque o diploma lhe conferiu uma assépsia jamais discutível — e, assim, a consulta decorreu entre uma pessoa que claramente devia dedicar-se à silvicultura e um pato de bico verde.
Havia um grande alarido no corredor, que se estendia às salas de espera e à sala de tratamentos, cujo denominador comum era “Ricardo”. Eu já vira, de costas, numa cadeira de rodas, menos cabelo ainda, alguém que me pareceu ser o meu menino aflito daquela vez, a quem menti com os olhos, dizendo-lhe que todos saímos disto. Andava uma rapariga a correr de um lado para o outro, agora é preciso um papel, agora o carimbo é lá ao fundo, e ela incansável, “Eu sou a irmã do Ricardo”. Desta vez, o corpo da mãe ia numa derrota, a cabeça caída para um lado, os dois braços a crescerem até ao chão. Pareceu-me que, mais uns dias, e aqueles dois braços se abririam em cruz e assim ficariam para sempre.
A meio da consulta, uma enfermeira foi lembrar a médica que me atendia de que o Ricardo estava lá fora à espera de vez. Pedrada da bruta, mas extremamente esclarecedora: “Pois, trazem-nos dos paliativos…”
Saí do gabinete e encarei imediatamente com o Ricardo. Os olhos dele, desta vez, não pousaram nos meus: cravaram-se. Os meus dizendo “Menti-te. Fossem quais fossem os meus motivos, menti-te”. Ouvi-lhe um ronco, os olhos: “Mentiste. Já não vou ver-te com o cabelo comprido”.

07/06/2023

Sósia

- Diz (?) que todos nós temos um sósia em qualquer parte do mundo,

diz-me a mulher que jantava comigo naquele dia.

Diante da minha incredulidade, disfarçada de curiosidade de ver até onde é que ia o delírio, balbuciei um “Ai sim?”, para que ela continuasse e desfizesse, antes de se fazer, o nó que a minha cabeça ameaçava formar, apertado. Cheia de si, continuou:

- Por acaso, gostava de conhecer a minha sósia.

Percebi, desolada, que não ia desenvolver a tese, que, embora não seja inovadora, sabe sempre bem ouvir novas versões, quanto mais não seja para atestar do QI que vai pelo planeta. Percebi também que a sósia a que ela se referia era apenas no plano físico. Logo eu, que nunca quis ter uma gémea, que nunca desejei ter filhos gémeos. Não pelo trabalho em dobro, sim porque não vivo bem com pequenas desigualdades (com grandes, nem se fala) e comparações constantes.

Vou fingir que acredito na teoria. Descontando (literalmente) o facto de que morrem milhares de pessoas por dia, será que a minha sósia ainda está viva? Que idade tem? Creio ainda que existe uma enorme parcela do globo onde ela não viverá com certeza, pois eu tenho exactamente zero de asiática e de africana.

Sou única. As minhas cicatrizes contam a história da minha vida, pelo menos desde os cinco anos. O meu corpo guarda-as todas, como a um tesouro que conquistei a pulso e é só meu. Quantas costuras tenho? Nunca contei, mas andarão próximo das de uma boneca de trapos. Não tenho sósia alguma, e, mesmo quanto ao carácter, igualmente cheio de cicatrizes, é irrepetível.



02/06/2023

Dona Isabel

Vi-a a caminhar à minha frente, ladeira abaixo em direcção à escola, de onde está oficialmente reformada, mas não emocionalmente desvinculada. É Dia Mundial da Criança e lá vai ela, certamente distribuir beijos, abraços e berros, os olhinhos muito pequenos e verdes, sempre em linha com o sorriso constante. Um dia disse-lhe que ouvia os berros dela de casa, a cinquenta metros da escola. Deu uma gargalhada, acompanhada de um soluço, como sempre faz, e gaguejou que já lhe tinham dito isso. Com a bata-bibe vestida, sempre rodeada de crianças, era ter outro porte e lembraria a Senhora da Conceição. Mas, sem romantismos nem lirismos, veio ao mundo pequenina e rechonchuda, quase quadrada, quase redonda, com um infinito e aposto que confortável colo. “Põe o chapéu, olha o sol!”, “Não ponhas os pés na poça que te constipas!”, “Ó Pedro, não voltas a bater no Miguel!”, voz de longo alcance, a tomar conta, a conhecer todos pelo nome, adorada por todos.

Agora aí vai ela, fatinho de calça e casaco preto “estilo Chanel”, com um debrum branco, a calça atrevidamente curta, a mostrar o tornozelo, sandálias rasas de inspiração inglesa, “Tem piada, esta mulher, destituída de um corpo bem feito — anos e anos de trabalho físico e má alimentação —, tem uma certa pinta a vestir-se. Não cai no ridículo da legging com a blusa leopardo”. Nunca a vi com outra idade, já a conheço há quase trinta anos e não lhe perscruto alteração alguma, e entretanto passou a bisavó. Quando me encontra, pergunta-me sempre pelos meus meninos, sabe-lhes os nomes e as gracinhas desde o jardim de infância. 

Deixo-me então ficar parada para que ela avance e se distancie o suficiente para que não nos encontremos à porta da escola. Seria demasiado doloroso para mim explicar a razão do meu cabelo curto e estragar aquele sol que raiava na ladeira quando visse os olhos pequeninos e verdes dela a perderem a luz e a encherem-se de água.


25/05/2023

Os meus tops tiveram um bebé!

Não sei se se lembram de, há uns anos muito largos e compridos, os meus sutiãs terem tido um bebé. Sei que não se lembram, ingratos. Mas eu lembro-me, não só pelo milagre da multiplicação que isso significou, como também por nunca ter conseguido explicar-me semelhante fenómeno. 

Pois, repetiu-se. 

Isto é “muito eu”: quando compro básicos, até posso comprar também verde ou vermelho, mas o preto e o branco é certinho que me acompanham até ao lar. (Posso ter sido zebra noutra encarnação.) Vai daí, há uns anos — não sei agora quantos, e fazer contas parece-me que não quero —, comprei dois tops, um branco e um preto, tamanho M. Uma das crianças passava os dias e as horas a pedir-mos emprestados, pelo que lá fui à loja no intuito de carregar com mais dois, desta feita tamanho S. Recentemente, tipo ontem, apercebi-me de que tinha os dois tops brancos na minha gaveta, pensei “Ah, ela fala tanto…”, procurei a etiqueta para entregar à petiz o dela e… eram os dois M. Fui encontrar o S dela na corda, portanto não me enganei quando lhos adquiri.

Quero explicar isto e não encontro meio. Nunca consegui fazê-lo em relação aos sutiãs. 

A ver se tal magia se dá com os biquínis, é o dás! Pago-os todos a sangrar, a suar e a lacrimejar…


21/05/2023

Vida

Aparece-me, tenho a impressão, cada vez mais magra, os olhos a saltarem das órbitas, a pele da cara caveira adentro, as veias do pescoço dilatadas, toda a musculatura em sentido, cigarros seguidos, um ciclone de gente:

- Tens uma moeda? Estou esganada de fome.

Não sei bem o que significará o verbo para aquele pardalito, mas parece-me demasiado urgente resolver-lhe a questão. Sei que deixei quase todas as moedas que tinha na farmácia — eu, que ando sempre sem dinheiro, tinha um jackpot oferecido por uma máquina de um parque de estacionamento só porque lhe meti lá uma nota —, mas sabe-se lá. Vasculho no porta-moedas e angario, ao todo, noventa cêntimos. Dou-lhos para a mão, peço-lhe que veja na máquina dispensadora se dá para duas bolachinhas — que é, como se sabe, uma faustosa refeição para um passarinho. Mais tarde encontro-a à porta da aula de dança, “Então, deu para as bolachas?”, que não, tudo caríssimo, deu para a minúscula garrafa de água. A inexistente barriga deixar-se-ia enganar por cento e poucos mililitros do líquido fonte de vida. O desapontamento cresceu-me até ao desespero, quando a música tomou conta dos meus sentidos e transportei a preocupação para aquela outra, de não me enganar na coreografia. No meio dos giros, vi uma coisa redonda e dourada no chão. Apanhei-a, era uma medalha que me parecia a inicial C, precisamente a dela. Perguntei-lhe: “É tua?”, ela negou e então reparei que era uma Nossa Senhora com o Menino ao colo.



11/05/2023

Dia da Mãe atípico

Tinha exactamente uma manhã, que podia ter sido inteira, para fazer a mala para uma semana fora, duas sopas e uma aula de dança. Simplesmente, dormi até às 11:00 horas, foi levantar, fazer a cama, decidir a balda às latinas, tomar banho, vestir-me, fazer as duas sopas (uma delas de tomate, para uma menina encaracolada e ruiva, amizade de uma das minhas, que lhe chegam lágrimas aos olhos cada vez que vê a caixa da sopa cheia e a quem eu chamo “cravinho vermelho”), e, de repente, eram 12:30 e tínhamos mesa marcada no paraíso às 13:30, a dez minutos de casa mais horas para estacionar. Decidi então maquilhar-me, já bem basta encher a mesa de adultos e toda a gente pensar que eu sou velhíssima por isso, há que disfarçar os sinais mais óbvios. Nesta altura do campeonato, já estava conformada com a inevitabilidade de só fazer a mala após o almoço. Ficámos numa esplanada que era o jardim da casa-restaurante, de modo que almocei um polvo à lagareiro com batatas fritas (as batatas cozidas e também um pouco as assadas fazem-me vómitos, desculpem o grafismo da imagem) rodeada de árvores e de flores: todas as quatro que pus no mundo.
Comecei a fazer a bendita mala às 16:00 horas e ainda não eram 17:00 quando acabei, com cosmética, sapatos e as mil merdinhas que nos vêm à cabeça e depois à mão para carregar. Parece que vamos para uma ilha deserta onde não há gel de banho. De qualquer modo, nunca fiz a mala tão depressa, o que veio a trazer-me algumas surpresas à chegada:
- Trouxe mais vestidos e biquínis do que os dias que vou estar. É para poder escolher. Mas podia ter carregado nos floridos e nos pretos, para as noites do hotel, só que não: os que trouxe permitir-me-iam a entrada num escritório em Wall Street sem dúvidas se seria ou não uma bombista;
- Trouxe duas saias e uns calções e apenas uma blusa, ainda por cima de cetim. Lá vou ter que comprar uma t-shirt, pelo menos. Que aborrecimento;
- Trouxe pastas de dentes em número suficiente para dois meses;
- Não trouxe as minhas sombras de olhos. Mesmo que queira pôr-me misteriosa, não posso;
- Trouxe todos os pares de meias de desporto que tenho, “para as caminhadas”, sendo que só vou estar em ambiente de cidade/ museus um dia e meio;
- Não trouxe o meu tratamento para o cabelo crescer mais depressa, no qual acredito piamente, quanto mais não seja porque praticamente hipotequei a minha casa para o obter. Agora o meu cabelo está uma semana a crescer ao ritmo normal, o que me causa grande transtorno porque há-de chegar ao Natal com menos 2,5 milímetros do que poderia chegar. 
O importante, efectivamente, é não me esquecer de levar ímanes para o frigorífico de cada aldeia por onde passar.


10/05/2023

Baixa sempre as expectativas

Nos últimos três eventos para os quais fui convidada, tive a oportunidade de fazer uma regra de três, simples. Não uma regra de três simples, reparai na vírgula, se não for muito incómodo: aos dois primeiros, ia com pouca confiança de que iria ser divertido e foi muitíssimo, a mim também me basta que me forneçam um quadrado para dar os dois pezinhos de dança e já acho tudo uma maravilha. Ao terceiro, considerei que estava no papo, ia conhecer gente nova, amigos de uma amiga recente e foi de cortar os pulsos. (Aos restantes convivas, não a mim.) A aniversariante destinou os lugares, pôs-nos — a cônjuge e a mim — em frente dos senhorios dela e a filha de ambos — garota para os seus quarenta e dois, ouvi várias vezes, vestida como se tivesse vinte e aborrecida como se tivesse dez — ao meu lado, mas que logo trocou para o lado da mãe, que odeia. O senhor que serviu a nossa mesa comunicou-me que tinha acabado o piri-piri e eu fiz um ar desoladíssimo, quando já percebera que tal picante, em cima de tanto fel, seria talvez a gota de água para eu fazer-me uma vontade antiga e sair dali a rebolar até às areias sujas da espécie de praia em frente. Cônjuge entabulou um diálogo com o senhorio, que parecia um daqueles inspectores das séries da Netflix, mas mais pequenino e com um fato em três peças, cujo coletinho não lhe serve há cerca de doze anos. O homem podia ser mudo, pois — felizmente, nunca assisti — cônjuge teria mais sucesso num diálogo com a parede mestra do lar do que com o inspectorzinho. Já aqui a desgraçadinha, calhou-lhe à frente a senhoria, mulher amarga que passou metade do tempo a dizer mal da filha por subentendidos, indirectas e más metáforas que não entendi e a outra metade em autoelogio, sem me fazer qualquer pergunta sobre a minha persona. Nunca tinha conhecido uma personagem que, simultaneamente, começava todas as frases por “eu”, tinha falhas de memória aleatórias, ora no início, ora a meio, ora no fim da frase (em que me via obrigada a encontrar a palavra em falta e, modéstia à parte, lhe embelezava grandemente as frases) e a estalar saliva seca, tudo a um tempo. Ainda assim, o bâton manteve-se impecável até ao fim da minha paciência, mesmo com recurso ao guardanapo. Devia ser tatuado.
Quando ela se levantou para ir fumar e me disse: “Não a maço mais com as minhas secas” (Aleluia, irmãos, alguém com um pouco de noção!?), pensei: “Pois não”, dei um abracinho à dona da festa e sumi dali antes que o cigarro da carraça acabasse.

04/05/2023

Só mudam as moscas

(Hah, achavam que a pessoa humana, por uma vez, ia falar sobre política? Também serve, é lerem este texto como uma metáfora. Não sei como, mas deve dar.)

Meu recém-nascido cabelo tem vindo a medrar, mas, como encaracola, vejo-me na contingência de o prender à frente com molas pequeninas, aquelas a que os brasileiros chamam piranhas, mas, como são mesmo de tamanho mínimo, eu chamo-lhes moscas. Ando com a cabeça cheia de moscas, ao todo cinco, mais dois ganchos, quando não três. Caso contrário, ficaria a filha da Lara Li com a Simone de Oliveira, que é como durmo. (Ninguém dá o devido valor aos homens.)

Outro dia perdi uma das minhas moscas, procurei por todo o lado e nada dela, “Olha, bateu asas e voou”, como o meu coração ateu. Substituí-a por uma de reserva e não pensei mais nisso. Hoje vesti uma blusa preta, rendada, com meia gola que me custa a passar na mona como um parto natural em que eu sou o nascituro, e vejo uma das moscas presa perto do ombro. Achando eu que era uma das que tinha acabado de pôr, procurei na cabeça, no meio do enxame, e estavam as cinco, todas tortas derivados à violência do parto, mas eram cinco. Ou seja, a mosca perdida agarrou-se com unhas e dentes à minha blusa, que foi à máquina, foi estendida, recolhida e dobrada (não necessita de ferro) sem que aquela que me serve há anos nas lides a tenha visto. Fala bastante, e isso impede-a de prestar atenção a minudências. Eu, por mim, limitei-me a mudar o nome de mosca para carraça às minhas molas.


29/04/2023

Podia ter corrido bem

Andava há três anos a treinar para uma microscópica maratona — míseros e miseráveis dez mil metros —, quanto mais não seja no plano mental, porque ao nível físico não treinei, sobretudo nos últimos meses. Mas, entretanto, covid, corrida sucessivamente adiada, o que até me deu jeito, pois houve por ali uns meses em que não passaria de claque do meu grupo, uma daquelas pessoas que não arredam pé da meta, que é também o ponto de partida.

Corrida à noite, entendi por bem alambazar-me ao lanche panqueca mais gelado, ao jantar dois bolos e ala para a partida. Ia apreensiva porque uma das minhas companheiras de luta resolveu que ia acompanhar-me durante toda a corrida e havíamos de atravessar a meta de mãos dadas, quais irmãos Castro, apesar de ela ter menos vinte e tal anos do que eu. Primogénita e cônjuge saíram disparados, nunca mais os vimos, e nós lá demos corda aos ténis dentro das nossas possibilidades, a ver se chegávamos à meta ainda vivas. Ela só tem um pulmão, eu tenho variadas mazelas de que me queixar, portanto estávamos boas uma para a outra. Estávamos. Se ela se calasse. Se ela não me ordenasse que fosse mais devagar quando eu estava com o fogo no rabo e que acelerasse quando eu já mastigava brônquios e pulmões (eu tenho dois). Queria ouvir música, que me ajuda a espantar o esforço e ela teca-teca. Quando lhe respondia, mandava-me calar para não me cansar. Uma verdadeira prova de nervos. E eu tenho um feitio de m. cada vez mais apurado, tanto que ao quilómetro sete lhe disse que fosse andando que eu já ia lá ter e meti os auriculares. Abrandei um nicochinho, quase a pular por me ter livrado da coach que não pedi, e deu-se o moche à Linda: umas seis pessoas agarraram-me, com a desculpa esfarrapada de que eu não estava bem e não podia continuar a corrida. Segundo eles, eu ia aos ziguezagues (hão-de ter pensado que eu abusara no tinto e ia com a cadela). Boa estratégia para eliminar adversários. Depois foi tudo muito rápido: eu praticamente em lutas físicas para me livrar dos socorristas, duas motas com bombeiros a chegarem, um carro da Polícia onde me enfiaram à força, senti-me mesmo uma irreverente. O polícia era giro que dói, uns holofotes azuis a fazer pandan com a sirene, eu feita coquetezinha: “Se calhar, agora tenho que pôr o cinto, não vá vir um polícia para nos multar”, ele a rir, missão cumprida. Carregou comigo para a tenda da protecção civil, onde me deitaram numa maca daquelas de guerra e eu contei a história da minha vida, saltando os pormenores sórdidos, enquanto me picavam o dedo, me mediam a tensão (nos píncaros!) e me davam miminhos. 

Passada talvez meia hora, deixaram-me sair, acompanhada da tropa que tinha ido comigo e ficaram dois bombeiros à porta da tenda, a acenar adeus. Presos nos meus braços, ficaram dois abraços que não dei por pudor, sobretudo ao bombeiro gordinho, que eu adoro abraços gordos, cheios de chicha, mas pode ser que haja uma próxima. Para o ano volto lá e, mesmo que consiga fazer os dez, vou à tenda abraçar os meus heróis.


24/04/2023

Fim da linha

Fui ali para tomar uma injecção demorada, ironia desta doença, os tratamentos destroem partes do corpo, a mim calharam-me os ossos e sei lá o que mais. Pedi o lanchinho do costume, se há coisa boa que eu levo disto tudo são os lanches dos hospitais.

À minha frente estavam eles, ambos aí pelos trinta, ela deitada, cabelo ondulado pela almofada afora, mas uma fita a cobrir a raiz, nada de pestanas, nada de sobrancelhas, e a cor, aquela cor que só as velas das igrejas têm, as velas dos velórios. Ouvi dizer que ia ficar internada, fim da linha, isso não ouvi. O olhar dele mergulhava no dela, sorrindo muito, o dela distante posto no dele, “adeus”, e o dele “não”, as mãos tocando-se, entrelaçando-se como bailarinos numa dança eterna, nem um aperto, nem um desespero, “adeus, é hoje que vou”, “não vais, eu não deixo”, o sorriso dele e a expressão inexpressiva dela.

Saí dali doente e cheia de saúde.


06/04/2023

Agora só nos falta uma praga de gafanhotos

Nos últimos dois anos, a minha vida tornou-se num rosário de amarguras com muitas continhas: covid com direito a duas semanas de internamento, inundação que basicamente destruiu a minha casa, e cancro. Resolvidos o primeiro e talvez o último, começou a obra de restauro do lar, a terminar nunca, não fora termos dado um ultimato à equipa, “Amanhã [hoje] mudamos, esteja isto como estiver”. Não sei se lançaram foguetes, se assaram para ali sardinhas, se cuspiram fogo sei lá de que parte do corpo, a verdade é que nos incendiaram a varanda, pelo que, em vez de ir “estrear” uma casa a cheirar a tintas e a móveis novos, vamos para uma que só me lembra uma chouriçada assada, e há-de ser o pitéu que me adentrará as narinas nas próximas noites. Dizem eles que caiu uma beata lá de cima e pegou fogo a uns cartões e a umas madeiras que ali estavam. Bem se vê que nunca estudaram Física e desconhecem que um objecto feito de papel e esponja, com um peso que não deve chegar a três gramas, não faz um trajecto descendente de vários metros e depois, sem mais nem menos, num dia sem vento, curva para dentro. Azar deles, que nenhum vizinho de cima dos meus fuma, ao contrário do pintor, que mais vezes vi com a pipa nos dedos do que com o pincel.


30/03/2023

Metas

Claro que fui à Corrida Sempre Mulher, no passado domingo. Fiz um longo percurso, de muitos anos, para lá chegar: comecei como fotógrafa oficial/ claque da minha primogénita, depois fartei-me de correr de saltos altos para apanhar bons planos, arriscar partir um tornozelo ou mesmo um salto, e passei à fase da caminhada, mas depressa me aborreci daquelas paredes de gralhas teca-teca-teca, que não andavam nem deixavam passar, fiz uma caminhada em que corri metade e andei a outra metade, e depois acabou: sempre corrida. Nestes anos todos, falhei uma, faz agora precisamente um ano. Posso afirmar que já fazia um tempo razoável para a minha amadorice e idade, mas agora mudei um nico e a coisa processa-se com nuances várias. 

Desta vez, foi o percurso dos Restauradores, que eu já disse cerca de mil vezes que prefiro mil vezes ao do Parque das Nações, por causa dos buracos, embora este último seja a direito e canse mil vezes menos. Já fiz um depois dos tratamentos e não se compara. O de domingo começa nos Restauradores e sobe toda a avenida da Liberdade. Digo bem: sobe. Uma pessoa larga a sentir-se uma lebre, passados cem metros já é uma mula de carga, quando atinge o primeiro quilómetro (pouco antes do Marquês de Pombal), já julga que se meteu na passadeira do ginásio com inclinação 40º e velocidade 18. Mas, porque aquele local é sagrado e já se comemoraram várias vitórias importantes para o país, siga. Ainda um bocadinho na ilusão de que o pior já passou, ataca a Fontes Pereira de Melo toda, que parece mesmo mais plana. Parece, mas trata-se de um trompe l’oeil misturado com esgotamento nervoso, portanto, ou dás à perna até ao Saldanha, ou sentas-te no passeio a chorar ranho. 

Prossegui. A metade da corrida dá-se quase a meio da avenida da República, ali ao terceiro quarteirão, se não me falha a memória, já que, nesse momento, tudo me falhava, nomeadamente o pernil. Se, por um lado, a partir daí foi a direito e depois a descer, meu pobre coração, que tanto tem aguentado nesta vida, sossegou um nico, por outro, meus membros inferiores ameaçavam fazer saltar os fémures e tíbias e transformar-se em gelatina daquela que corre mal e nunca se consegue desenformar.

Nunca parei, nunca andei, foi uma corrida muito honesta (como são todas as minhas, senão não tem piada), e cheguei num olímpico e gigantescamente péssimo lugar, suada e feliz, com aquela certeza de que a meta existe, está ali/ lá ao fundo e é possível alcançá-la. O caminho é sempre em frente, como dizia o meu primeiro oncologista.


23/03/2023

Vi-me compelida a cometer o furto

Dou cada tareia na Bimbynha que ela até pula. A sério, na fase de triturar a sopa, parece mesmo a máquina da roupa a centrifugar. Qualquer dia experimento meter lá um soquete ou um bralette, a ver se ela não mos centrifuga em minuto e meio à velocidade 7. Capaz de ser melhor não, senão à noite tenho o Rogeiro casa adentro a falar de drones. E é bom não esquecer que estou alojada num bairro social, sai-me a Bimbynha a voar pela janela e não faltará armamento para ma fazer em pó. (Não perguntem: desconheço o dia em que volto para casa. Beijinho no ombro a Santa Engrácia.)

Então, determinei-me a fazer limonada, sopa e duas quiches — uma de frango, para os carnívoros e uma vegetariana para as herbívoras. Na limonada gastei os dois únicos limões que tinha no casebre (e a máquina tritura tudo, vai casca, vai caroços, vai olhos, vai tudo. Só não os lava. Está mal. A ver se redijo uma reclamação para a marca). Depois fiz a sopa, ela aos coices, mas ficou como sempre: de uma pessoa lamber a lâmina. Foi só a meio da receita de uma das quiches que percebi que me faltava mais um limão: precisava da raspa da casca. Ora, o que é que uma pessoa normal faria no lugar desta? Usava laranja. Mas é que nem me ocorreu. Metade dos meus vizinhos têm frondosos limoeiros. (Eu só tenho salsa e hortelã, que me tenho fartado de colher, tenho o canteiro quase careca.) De modo que saí, já noite escura e toda vestida de preto, passei por um limoeiro e achei os limões um bocado mirrados, andei mais uns passos e cheguei perto daquele que me regala os olhos, de tão bonito que é. Mesmo assim, ainda tive que me empoleirar um bocadinho, pois o limão que eu queria estava longe da minha mão. Felizmente, não me tomei de amores por algum do topo da árvore. Carreguei-o para a habitação social a descoberto, uma vez que me esqueci de levar um saco para disfarçar (daqueles grandes, do supermercado, cheio de artigos). Tenho que apurar a técnica. 

Hoje passei pela árvore e estava tão esplendorosa como antes, apesar de lhe faltar o fruto mais bonito. Meu pé de laranja-limão, um destes dias começamos a falar um com o outro.




11/03/2023

111

E, subitamente, a mulher estendeu-se ao comprido na enorme sala de espera das análises clínicas. Eu ia a achar que era o meu dia de sorte: conseguira sair a tempo de fazer as compras todas, ir nas calmas até ao hospital, arranjar o último lugar para o carro no parque — e, simultaneamente, o melhor —, chegar com vinte minutos de avanço em relação à minha hora marcada, mas, mesmo assim, a senhora das senhas permitir-me a retirada de uma (já me conhece de mais de um ano de senhas, ora de cabeleira, ora de cabelo curtinho), faltava apenas um número para a minha vez, e deu-se ali o desmaio. Talvez setenta pessoas na sala, as cabeças todas viradas, nenhum corpo se mexeu, a não ser os de dois homens, que se acocoraram a dar pequenos abanões na jovem inanimada. Pronto, pensei, my turn. Afastei os dois com os braços, disse-lhes que a virassem de barriga para cima, eles imóveis, então puxei-a eu e pus-lhe as duas pernas para o alto, o que a fez reagir imediatamente, pois começou a pestanejar. Sou tão boa.

A enfermeira que, entretanto, chegara, fazia perguntas à rapariga, vi chegar a minha vez — senha 111, isto deve ter um significado qualquer — e tive que solicitar à profissional que segurasse ela nos pés da pessoa desacordada, ou quase acordada, enfim. 

Setenta pessoas. Um desmaio. É só para que saibam o número de humanos que vos acudirão numa aflição: uma, vírgula quatro por cento. O que me angustia é que esta percentagem também se me aplica e, quando eu desacordar em algum lado, não vou estar lá para me socorrer. Pode ser que esteja outra parecida.


09/03/2023

Fibra sintética

Entrámos juntas na dependência do banco para tratar de um assunto dela, e todos os meus sentidos foram atacados por um intenso cheiro a suor, que me pôs imediatamente de sobreaviso de que não vinha de lá um bom momento. A nós, dirigiu-se um funcionário de fato e gravata de retrosaria de bairro, recheado de carnes profusas e inocultáveis, cara redonda e sorriso inexplicável. Delicada, como sempre, ela desejou bom dia e disse: “Precisava de um documento…”, mas ele não a deixou completar a frase: “Precisava ou precisa?”, o que me levou rapidamente a concluir tratar-se de alguém que serviu às mesas — nada contra, mas a velha piada do “queria” denuncia tanta coisa, e não há como explicar a estas pessoas que “eu quero” não é só o presente do indicativo, mas também o imperativo, a ordem, o comando, e é só por delicadeza que os clientes dizem “eu queria [se fosse possível; se me fizesse o favor]”, para além da falta de educação que é corrigir o Português a um cliente. Adorava assistir a um diálogo entre esta figurinha e uma mulher do bairro. Nestes pensamentos, fiquei impávida e serena, com o monstro a roer-me as entranhas e a indomável vontade de lhe espetar um murro no meio dos olhos, pois é esse o único instinto que me domina quando me maltratam um filho. Afinal, a criatura não sabia como atender a minha criança e recambiou-nos para um colega, educado e bonito, que emitiu o tal documento, enquanto o carnudo falava muito alto ao telefone com uma freguesa, num tom de intimidade inadmissível, com subentendidos e gargalhadinhas, um outro colega tratava um senhor de idade por “você” (Chelas, estás aí?) e uma emproada, de saia e casaco azuis escuros, collants e sapatos azuis escuros, toda ela num full look enjoativo, permanente recente e um tacão excessivamente sonoro e fininho (quem é que ainda usa salto agulha, ainda por cima meio salto, com esta calçada portuguesa lisboeta?), toda ela cheia de si, e veio dizer um segredinho ao que nos estava a atender e afastou-se com um risinho parvo a estremecer-lhe o fato de fibra. 

(Só a mim não me saem empregos destes.)

Saí empedernida e exangue. Demasiada fibra sintética em tão pouco espaço e tempo.


05/03/2023

Cá na aldeia

Os cães ladram e a caravana não passa. Estão metidos em casas e em pátios mais pequenos que quartos. Há gatos às janelas nesta espécie de aldeia para onde vim morar, enquanto a minha casa se maquilha, embelezando-se. Quero-a azul, dois quartos terão que ficar brancos porque o meu pé fincou mais fraco do que o de dois deles. Aqui há limoeiros carregados do fruto, que me impulsionam a meter um em cada bolso, pois é com dois limões que faço a limonada que bebo. Mas prefiro comprar na loja mais próxima, que é também muito longínqua, e vende tudo ao preço do ouro porque fica do lado de lá do muro que diz “amo-te”, e carregar ladeira acima quatrocentos metros do fruto que facilmente tomaria como meu na passagem por uma das árvores. Simplesmente, estou agrilhoada a um código de conduta que nunca vi escrito em lado nenhum. Há muitas mulheres velhas, que ralham aos cães e às crianças com o mesmo modo. “Cala-te”, “Ponho-te na rua”, enquanto descascam batatas para um alguidar. Estas não fazem tricô. Tenho um vizinho na porta ao lado que passa os dias a arranjar o motor de um carro com a idade dele, acelerando aquilo com o cigarro no canto da boca. O espaço entre a porta e o portão tanto pode chamar-se pátio como logradouro, ou até pérgola. Eu chamo-lhe deck, porque só lhe falta a piscina, e esse é um pormenor de somenos. Há um melro que se tomou de estimação pela cerca de palhas, e passa os dias a cantar ali pousado. Na primeira semana, era um zangão enorme, depois uma osga, agora o pássaro. Vai-se a ver e é sempre o mesmo animal, que se transmuta. As gatas estão felizes e fazem ginástica todo o dia. Às vezes vão lá fora, parecem miúdos no recreio. A minha cama é dura como uma rocha, mas eu durmo nela como uma pedra. As camas moles fazem-me doer as costas, que nunca me doeram. A casa é fria como um frigorífico, qualquer ida à casa-de-banho a meio da noite significa atravessar um corredor de quinze metros a tiritar. São trinta metros até regressar à rocha aquecida pelo meu corpo. Todos os radiadores estão ligados vinte e quatro sobre vinte e quatro e, mesmo assim, aninho-me de manta, como um gato. O duche é surrealista de tão desconfortável e praticamente impossível de tomar. Nada funciona a cem por cento nesta moradia camarária.

E sei que vou sentir falta disto tudo, quando a obra da minha casa acabar. 

14/02/2023

Raio de sol

Pela terceira vez em trinta anos, a minha casa necessitou de obras, o que, estatisticamente, daria uma intervenção por cada década, não fora o facto de a última ter sido há quatro anos. Aconteceu que, entre um bom Covid com direito a hospital e um oportuno cancro, dois violadores de paredes entraram pela minha porta adentro, com a desculpa de consertar um cano roto, derrubaram uma parede, de caminho estoiraram um cano comum do prédio, de maneira que a água — cimentosa, lamacenta, barrenta —, entrou a jorros pelo lar adentro, destruindo tudo o que apanhou à frente, a começar no soalho dos meus encantos (que, na altura, respirava sob os meus pés há apenas três anos), em carvalho maciço, envernizado sem brilho, o chão mais bonito que alguma vez pisei, e a acabar nos meus sonhos de ter a casa dos meus sonhos. Bastaram alguns segundos, quatrocentos litros de água espalhados entre meu lar, o patamar das escadas e as caixas dos dois elevadores.

(Se eu não tenho razões para estar maluca, não sei quem terá.)

Pela terceira vez, então, tivemos que arranjar onde viver durante a obra, pois parece que é impossível dormir em cima de um chão enquanto os senhores andam a colar tacos. Tínhamos como premissa ficar no mesmo bairro, porque tudo: logística, empregada com outro trabalho na área, parquímetro, e clima. Estou a gozar, o clima era-nos indiferente. Desde que não chova e a roupa seque, por mim está de bom tamanho.

Não existem casas para arrendar em Lisboa por poucos meses, sobretudo quando não se quer sair de um círculo. Mas, ao cabo de muitas buscas, apareceu uma, numa zona social, que é como quem diz, na zona bairro do bairro. De tal forma periférica, que não está incluída no nosso parquímetro, o que não é grave, uma vez que nos basta deixar a frota do lado de lá de uma avenida, que é a que separa o norte da chique zona sul deste aglomerado: atravessamos, subimos uma ladeira em escadas, tonificamos o glúteo e estamos na moradia. De início, temi-me um bocado, só um portão ferrugento a separar o logradouro da porta, só uma porta a separar-nos da vizinhança tenebrosa, gatuna e estripadora. Nunca estive tão enganada: até posso deixar tudo escancarado e borrifado de ouro em pó, que ninguém vem cá varrer-mo. Uma tranquilidade de dar gosto ao demónio.

Hoje subia a ladeira de escadas e lá estava ela, talvez quatro anitos, mil caracoletas na cabeça e um raminho de flores silvestres na mãozinha, estendida para fora do portão da pequeníssima casa.

Queres as minhas flores?

Não posso aceitar, querida.

Porquê?

Porque tu não me conheces. Dá as flores à tua mãe, ela vai ficar feliz.

Vou dar à minha avó. Olha, e queres um chupa-chupa?

Não, guarda para ti.

Vais-te embora?

Vou, mas volto.

Queres ver a minha trotinete?

É linda, quem me dera uma igual. Olha, se calhar aceito as tuas flores, agora já me conheces.

São para a minha avó. Vais para casa do pai João?

Não, o meu pai não se chama João. É Henrique.

Dei-lhe adeus com a mão, soprei beijinhos e continuei a subir a ladeira, carregando a certeza de que a solidão é transversal, mas também a de que um raio de sol pode atingir-nos assim, a meio do nada, ou a meio de um caminho que nem sequer é o nosso.


13/02/2023

A última de umas quantas tristezas

Dia da última injecção de Trastuzumabe. Nunca decorei este nome, agora mesmo fui ao Google confirmá-lo. São dezoito ao todo, no espaço de um ano. É um processo muito demorado: venho cedo, apanho o trânsito da hora de ponta, a fila para o estacionamento, a senha para a triagem com rodos de pessoas antes de mim, e depois uma hora de espera para que a injecção seja preparada e a seguir enviada para a Oncologia. Mas tenho cabelo, que cresce encaracolado, posso pintar as unhas, ainda tão frágeis, posso pôr saltos altos se não abusar da sorte, posso ser uma aproximação de mim.

A sala de espera abarrota de gente doente. Ninguém se queixa, ninguém solta um ai, a maior parte está só ali. Uma mulher, de sapatos-pantufa e gorro de lã, costura qualquer coisa que não entendo, ora com a mão esquerda, ora com a direita, bocadinhos de pano à volta de uma rodela de plástico, que também é caixa de agulhas. De vez em quando, cai-lhe uma coisa para o chão, a agulha, a caixa, uma bolsinha com padrão de bonecos cheia de rebuçados que se espalham no chão. Diz a quem lhe pergunta que está a fazer “florzinhas”. Deve estar louca.

Está um homem com os olhos muito abertos, pregados a pregos ferrugentos no vazio, com um interesse tal, que juraria estar a encontrar respostas para todas as questões que ainda o atormentam.

Uma mulher fala ao telefone uma língua que não entendo, como acontece com quase toda a gente.

Disse-me uma enfermeira em tempos que os que têm cabelo são os casos mais graves. Pâncreas, fígado, intestino. Olho para eles com olhos diferentes, já não lhes invejo o cabelo.

Entra uma mulher dressed to impress: casaco e calças cor de tijolo, uma pele de coelho na gola e punhos, blusa branca de lamé, carteira de péssima imitação da Birkin, Hermès.

Um homem chega a arfar, assim fica durante largos minutos ao meu lado, depois tranquiliza-se. Parece que correu a maratona, mas creio que a caminhada de vinte metros desde o elevador foi suficiente.

Há muitos velhinhos neste circuito infernal. Nunca ninguém disse que a vida é justa.

Eu, por mim, saio hoje com o alívio da certeza (ou, pelo menos, a esperança) de não voltar, a não ser para consultas. Vou-me embora cheia de marcas, nem uma única saudade.


31/01/2023

Esvaziada

Dizem eles que isto é o “síndrome (ou fenómeno? Ou dor?) do ninho vazio”, que sabem eles do que significa o momento em que o teu primeiro amor pequenino sai pela porta da casa que a viu crescer dentro de ti, parece mesmo que choram as paredes, e tu agora a tremeres das asas que a envolvem, ela tremendo as asinhas aninhadas nas tuas, saiu de ti e coube sempre inteira nos teus braços, que hão-de ter esticado ao longo do tempo, ambas sem saberem muito bem como — e também porquê — segurar o que os olhos teimam em deitar, vai agora experimentar o Mundo sem que possas picar o teu voo para a apanhares se ela for a cair, sem os beijos da noite e os sorrisos estremunhados da manhã, vai também ser feliz no ninho que construiu com mérito, talento e esforço, devias estar a rir, e até estás, há um peito cheio de ar puro, orgulho e boa esperança imediatamente abaixo dessa garganta apertada de medo e saudades, já.


21/01/2023

Como uma filha

Não sei se tu és crente, filha,

diz-me, à laia de pergunta, aquela que é o legado mais precioso deixado pelo meu pai: uma tia, já velhinha, a quem abraço muito quando — dolorosa porque raramente — nos vemos. Vivemos à distância da primeira para a segunda capital do país, o que parece pouco, mas é muitíssimo, se considerarmos outras distâncias que não constam do mapa. 

Sou, tia — digo, mais para a sossegar, mas não mentindo completamente —, pelo menos, sou uma crente interesseira, pois é d’Ele que me lembro sempre nas maiores aflições, e se eu tenho tido algumas, ou até demais. Mas não me metam com padres, que isso já não dá para mim.

No Verão passado estivemos juntas, pude rever as minhas primas e apertar nos braços aquela que perdeu o único filho para a doença que me queria levar agora a mim. Foram demasiados anos sem poder fazê-lo, esperava dela alguma mágoa, interrogações várias, mas fui encontrá-la apaziguada com a vida, não conformada, mas também não revoltada. Certamente à custa de muita terapia, mas, fundamentalmente, resultado de uma educação de amor e de um carácter limpo e bem estruturado. Sei agora, pelo meu próprio exemplo, por que é que há pessoas que se afastam diante do sofrimento dos outros: ele é insuportável porque reflecte a possibilidade do nosso. Mas também sei agora que nunca mais somos capazes de esquecer esse adeus, se não tivermos a força gigantesca e a delicadeza da minha prima Teresa, mais rara que um diamante entre rochas.

Sabes, filha, eu rezo todas as noites e peço a Deus que me dê uma morte suave. Peço também pelas minhas filhas e por ti, não peço por mais ninguém.

[Nem pelos netos, nem pelos bisnetos?]

É que te tenho a ti como uma filha.

E aquilo caiu-me dentro do peito: a irmã do meu pai, que tanto mo lembra, agora é minha mãe, e isso faz um sentido tão certo que não contesto e agradeço toscamente, “Ai que bom, agora tenho outra vez mãe”.


08/01/2023

A vida continua

Estávamos à espera de começar a dançar, ambas sentadas a beber água — hidratar antes, durante e depois —, ela muito jovem, muito generosa de carnes, os olhos sempre numa tristeza de dar dó e mimo, mas a gargalhada mais fresca e absoluta dos meus últimos tempos e, seguramente, a melhor dançarina de uma sala com trinta e sete lugares, invariavelmente todos ocupados. Falámos do dia em que me senti mal a meio da aula, na verdade foi logo ao início, mas forcei-me a ficar até faltarem só uns minutos, para sair de rompante sem correr, umas quantas piruetas haviam-se transformado em dezenas e puseram-me em looping, já tinha feito uma sessão de quimioterapia e achava que podia continuar a fazer a minha vida, porque a vida continua. Nesse dia, ela tocou-me num braço só ao de leve, apenas as pontas dos dedos, os olhos naquela tristeza de sempre, e contou-me que a minha mãe também teve e está óptima. Então agora recordámos esse dia, ela confirmou, foi há treze anos, a mãe continua excelente, mas o cancro levou-lhe o pai, os olhos a afogarem-se na  mágoa, Tenho tanto medo de ter cancro, eu a pensar que mudei de dimensão, de prisma, de óptica, a palavra já não me faz medo, o significado dela também não.

Tenho tanto medo de ter uma recidiva. Mas a vida continua, como já continuava antes de ter mudado de dimensão.


01/01/2023

Só desgraças

Antevéspera de Ano Novo e a desgraçadinha do costume a sentir um incómodo todo o dia, idas ao chichi de vinte em vinte minutos, ai isto são nervos (mas de que mais?), ai ando a beber demasiada água, ai devo estar a ficar incontinente, depois era aquela dorzinha, aquela vontade de desmaiar na loja — pudera, quem não, com um casal horrendo à minha frente com dois filhos horrendos a demorarem uma eternidade para trocarem não sei que merda por um sutiã de cetim azul escuro com uma rendinha parolíssima, pináculo da sensualidade para ele (?), que dançava (pessimamente) ao som da música ambiente da loja —, todo um cenário que me disse: “Vai ao hospital, histérica, depois mete-se o Ano Novo [aprecio a expressão] e já a tua infecção te chegou ao cérebro”, porque eu sou eu e eu sou essa, que anda sempre a desafiar a septicémia, e foi assim que, à hora de jantar, pouco mais ou menos, vi na nettinha qual o que levava menos tempo a atender-me e ala para as Descobertas, qual conquistador. Lá chegada, sou logo avisada que, afinal, o tempo de espera são duas horas. Bem gemi ao enfermeiro que necessitava de uma pulseira amarela (até porque combinava melhor com o vestido do dia), mas o implacável algemou-me com uma verde. Há-de ser lagarto, com certeza. Ou estava nauseado por estar a trabalhar na antevéspera de Ano Novo, esquecido do quão aborrecido é estar doente nesse mesmo dia. Se calhar, preferia trocar comigo.

Aguardei exactamente duas horas, durante as quais aturei um excitado casal italiano, que berrava e gargalhava, ou seja, me impediu de, ao menos, dormitar um nico. Estou neste ponto de velhice. O excitado tinha pulseira amarela, o que me levou a concluir pela xenofobia do enfermeiro da triagem em relação à minha pessoa. Depois fui atendida por um médico em cerca de quatro minutos, que confirmou o meu diagnóstico e me receitou, assim como me mandou fazer urinocultura. O enfermeiro que me recebeu apresentou-me um frasquinho anatomicamente adequado para recolher urina a um recém-nascido rapaz, e perguntou-me assim: “Já alguma vez fez colheita de urina asséptica?”, veio-me a vontadinha de responder: “Fiz quatro cesarianas, quimioterapia, radioterapia, tamponamento nasal e mais mil porras, mas realmente recolher urina é que nunca”. Ao invés, respondi: “Sim. Tenho que me lavar primeiro, deitar fora as primeiras pingas de chichi e depois encher esse frasquinho minúsculo, no qual me será impossível acertar”. Afinal, não. O homem explicou-me todo o processo com uns pormenores sórdidos de tal forma, que só pensei: “Não acredito que estou a ter esta conversa com um estranho”. Depois de praticar diversas posições de ioga na casa de banho do hospital, fui aviar a receita do médico, tomei o antibiótico e, passada uma hora e meia, já em casa, tive um ataque de frio que me pôs os dentes a bater como castanholas e me levou a ponderar que me finaria em breve, tipo em minutos, mas isto já no dia 31. Mesmo à parva, falecer no último dia do ano. Pelo menos, fiquei a saber o que sente uma pessoa que morre de frio. 

Calma. O importante é que entrei em 2023 recuperada deste desaire. A ver se o ano não me é tão padrasto como o anterior. Chiça penico.