01/07/2023

Nunca subestimes

Atrás de mim, um estrondo metálico, que me fez virar, constatando que um rapazinho tinha batido com a bicicleta no passeio, embora ainda estivesse em pé quando o vi. Começou a gritar uns gritos de dor lancinante, mas dizia-me a subestima que era “mais um puto do bairro que se estoirou de bicicleta”. Porém, o tom, o volume e, sobretudo, a aflição dos gritos, fizeram-me questionar “E se…?”, e despertar em mim a tal bombeira, que tudo acode, que prefere arriscar perder um minuto a roer-se de remorsos para o resto da vida. Os carros passavam por ele, abrandavam e seguiam, eu estava a uns trinta metros e corri para ele, vi-o pálido como uma mortalha, verifiquei que não tinha nada fracturado, umas feridas sem importância no joelho e na mão, agarrei-lhe os dois pés, “Tu estás a desmaiar, dá-me os teus pés”, ele já calado a fazer que sim com a cabeça. Entretanto, chegou gente que palpitou bastante e a mim fez-se-me aquela luz “Mas eu conheço-te!”, pedi aos opinativos que não o deixassem mexer dali, corri outra vez, mas desta na direcção da casa dele, chamei os pais pelo interfone e depois, quando voltei, já alguém da pequena multidão chamara o INEM. 

Lembro-me da carinha dele, a entrar na ambulância, um breve sorriso a piscar-me os dois olhos. Foram dez semanas mais um dia, de melhora, piora, cirurgias, tratamentos, esperanças, desânimo: pâncreas esmagado, hemorragias várias, líquido num pulmão. Na queda, bateu de frente e depois caiu em cima do topo de um dos pinos de ferro que separam a ciclovia do passeio.

Fui vê-lo no dia seguinte a ter chegado a casa. Menos doze quilos, aos quinze anos representa vinte por cento do peso total. Demos um abraço muito demorado, ralhei-lhe baixinho ao ouvido “Que susto, meu menino, nunca mais nos faças isto. E agora alimenta-te para ficares fortezinho”, enquanto lhe acariciava o cabelo e lhe dava um beijo no que sobrou da bochecha. Ele tinha na cara aquele mesmo sorriso de quando entrou na ambulância, serei para sempre a primeira pessoa que o acudiu na enorme dor. Só porque não subestimei.