28/07/2022

The radio star

Acho que me criaram expectativas demasiado altas, ai que aquilo não custa nada, ai que é só deitares-te lá e esperares que o tempo passe, ai que são quinze minutos e está feito, tudo muito cheio de ais, seguidos da peta.

A sala de espera, onde permaneci para lá de uma hora (ninguém me manda chegar mais cedo, mas quarenta e cinco minutos foram derivados ao atraso no atendimento), é uma caixa de gritos. As únicas pessoas silenciosas eram quatro mulheres daquela etnia que Deus me livre dizer o nome — não venham de lá os histericofóbicos e me soltem os cães —, cônjuge e eu própria. Quer dizer, nunca me calei, mas porque tive sempre urgências para debater, e tudo num tom aceitável. Entraram dois bombeiros daqueles do transporte de doentes, que suponho que o maior incêndio que viram na vida foi o de algum fósforo que acenderam lá por casa, não desmerecendo nas suas funções, mas que fizeram um chavascal de tal modo — porque se puseram a conversar com pessoas na sala, ao invés de tratarem do assunto que ali os levava —, que o homem do altifalante teve que gritar “Silêncio na sala!”, parecia mesmo um juiz zangado em plena audiência, usando aquele sistema de som dos hospitais públicos, cheio de ruído e zero de percepção. (Eu só percebi porque precisamente a mesma frase já me gritava aos ouvidos há bastantes minutos.)

Depois lá me chamaram. Estava a estrear um vestido lilás para me dar sorte. Foi nada, apeteceu-me comprá-lo e ir dressed to impress com alguma moderação. Logo passou uma enfermeira por mim, que disse: “Que senhora tão bonita!”, o que me fez encolher porque não incho, mas registei a parte do “senhora”. Sou uma bruta, porém sorri e agradeci. Na verdade, estou cansada de ser bonita, linda e querida. Queria só sair deste pesadelo, dá licença?

Depois foi despir, deitar numa marquesa que parece uma cama ginecológica, mas ao contrário — os estribos são para pôr os braços, não os pés — e obedecer a ordens: respire normalmente, encha o peito de ar, tranque a respiração (uma eternidade de quarenta segundos que parecem duas horas), pode soltar o ar todo (sorte delas que eu não sou dada à flatulência e compreendi de que ar se tratava), isto por cinco ou seis vezes, p. da minha sorte, que nem a radioterapia pode ser feita a limar as unhas. Mais depressa fazia duas sessões de quimioterapia do que uma disto, embora não queira voltar para lá, hã? Lagarto, lagarto. Mas isso sou eu, que tenho a mania que sou diferente. 

Já só faltam vinte e nove iguais às acima descritas. Logo à noite já serão só vinte e oito.



23/07/2022

Tetratlo # 4

Consulta de Fisiatria: a ver se não é preciso fisioterapia, para não ficar com um braço mais gordo do que o outro. Só me falta mais essa. É acontecer-me semelhante desgraça e passo a levantar diariamente pesos com o outro braço, para ao menos ficarem iguais. 

O hospital é um labirinto, projectado por um arquitecto esquizofrénico, penso eu de que, enquanto percorro quatro corredores, dois em cada piso, e de já ter apanhado, pelas minhas contas, dois elevadores. Isto, depois de ter ido bater a duas portas que não abriam e tocado a uma campainha que não funcionava. Enveredei então por um outro corredor, onde não se via uma alma viva, mas se ouviam martelos e marteladas. Uma voz, atrás de um guichet escondido num canto escuro, perguntou-me para onde ia, respondi que para a Medicina de Reabilitação (não me lembrava do nome da médica), e a pessoa disse-me que era lá ao fundo do corredor, depois das portas automáticas, e que eu seria chamada pelo nome (que ela não perguntou qual). Percorri aquilo, não passei por portas automáticas nenhumas, mas sim por uma obra a céu aberto, uma parede destruída que dava para a rua, que local tão seguro. Sentei-me quietinha quando vi umas cadeiras, embora continuasse sem ver uma pessoa para amostra. Ao fim de quinze minutos, abre-se uma porta e surge a médica, muito sorridente, muito simpática, muito faladora. Cansou-me a beleza, falou durante meia hora seguida. Mediu-me os braços, deu-me a grande novidade de que eles são milimetricamente iguais (o que eu considero bastante anormal, visto que todos temos assimetrias por todo o corpo. Devo preocupar-me?), mandou-me fazer uns exercícios em casa para a mobilidade do braço e chutou-me para a próxima consulta, em Outubro. Saí de lá exausta, mas — e talvez por isso — consegui atingir a porta da rua sem me enganar no labirinto.


Tetratlo # 3

Consulta de Oncologia: a médica é uma simpatia, mas não há dúvidas de que eu gosto mais de homens e eles de mim. Não perdoo ao destino nem à m. do meu seguro ter tido que abandonar o meu oncologista giro. Disse-me ela que estou livre de consultas por três meses e que as idas ali serão cada vez mais espaçadas. Estou com ela há cinco meses e não cinco semanas, como estive com o cirurgião, e não houve abraço de despedida. Perguntou-me apenas se já comemorei a remissão do tumor, e respondi a verdade: “O vinho tinto ainda me sabe a aguarrás”. Sugeriu outra bebida, mas nem a cerveja marcha neste momento: arde-me a boca de tal maneira, que parece que a enchi de álcool etílico e depois lhe meti um fósforo aceso. Estou tão abstémica como era aos quatro anos de idade. 

Despedi-me dela com um: “Espero que não tenhamos que nos ver antes dos três meses que referiu”. Sorrimos, acenámos adeusinho com as mãos e pronto. Sem espinhas, sem lágrimas.



Tetratlo # 2

A seguir, fui tratar da injecção que faz com que, de três em três semanas, saia daquele hospital com uma das coxas a valer milhares de euros, quais Pretty Woman, quais quê, walking down the hospital. Burocracia inultrapassável, retiro senha para a triagem das enfermeiras, para que peçam à farmácia do hospital que envie a preciosidade, o que costuma levar uma hora, mais minuto, menos minuto. Dada a distância da farmácia para a Oncologia, cerca de duzentos metros, imagino que a injecção faz o trajecto a rebolar sozinha. Espero meia hora para ser atendida na triagem, o que faz com que me convença que são três da tarde e não duas, tanto sinto que esperei. Imploro que ela escreva no mail que aligeirem o processo de envio, pois tenho uma consulta às 16:00 (o que é verdade), e que diga que a injecção é para uma senhora muito ansiosa, que vem da Psiquiatria e até têm que lhe misturar uma dose de calmante na seringa, que ela está a começar a partir tudo. A enfermeira ri-se muito e escreve o mail, desconheço em que termos. Volto para a sala de espera, onde as mulheres discutem cabelos e respectiva queda, e apercebo-me das horas. Volto à triagem e digo: “Senhora enfermeira, esqueça tudo o que lhe disse há pouco. Julguei que já eram três da tarde, vi mal as horas. Escreva outro mail para a farmácia e diga que a ansiosa não sabe ver as horas e que agora já pode esperar. E que até podem demorar mais do que é costume”. Noutros tempos, ter-me-ia deixado ficar na sala de espera, envergonhadíssima da minha impaciência/ insistência inútil contra esta espécie de establishment secular. Agora, depois de ter perdido tanta coisa, mas tanta, o pouco filtro que ainda me restava também ter ido na cheia, é das minhas menores preocupações.

Tetratlo # 1

Quatro compromissos agendados para o mesmo dia, no mesmo hospital. Primeiro, às 13:18 (gosto. Podia ser 13:19 ou 13:17, mas era mesmo 18), análises clínicas. Sou de tal forma pontual, so british, que chego e falta uma pessoa para a minha vez. Sei que não vou demorar, são quinze gabinetes e aquilo é sempre a aviar. Enquanto espero, um velhote cai na rua, fica sentado no passeio, as pernas na estreita estrada onde passam as ambulâncias, um braço esfolado. A mulher grita mais do que ele. Noutros tempos, iria a correr ajudar, perguntar se podia fazer alguma coisa, não sei quê, não sei que mais. Mas agora tenho um calhau no lugar do coração, não posso — nem quero — fazer esforços, e apercebo-me, livre de eventuais culpas, que são precisos três bombeiros para içar o homem. Esqueço logo o assunto, até porque chega a minha vez, gabinete 13. Já estou sentada na cadeira da sanguessuga quando irrompe o casal velhote e mulher aos gritos, ela pedindo ajuda para o marido, que está a sangrar do braço e precisa que lhe façam um curativo. Gabinete 13, repito. Acredito que a personagem veio a correr atrás de mim, pois teve que correr o corredor todo desde o 1 para se ir enfiar no meu. A técnica em protesto pouco veemente, que ali não se faziam curativos, mas após uma frase onde se incluía a palavra “órina”, lá pôs um penso rápido no braço do homem. Entrementes, eu bufava a minha sorte macaca, mas por que raios a mulher havia arrastado o homem até ao gabinete que era nada menos do que o décimo-terceiro mais longínquo da porta? Noutros tempos, ainda era capaz de limpar a ferida ao homem, ralhar com a sugadeira de sangue que um band-aid não era suficiente, accionar connects para o internarem e ainda me alistar nas Carmelitas Descalças. Mudei muito. Ando a aprender a pôr-me em primeiro lugar em todas as ocasiões da minha vida. Não que antes me pusesse em segundo (plano), era em último, mesmo: nos escafundós da fila, onde já ninguém me via, nem eu própria a mim mesma. Isso acabou, agora tenho que olhar-me ao espelho e pensar: “Linda”.


12/07/2022

autoestima <--> subestima

Isto é uma espécie de Novas Oportunidades, que no meu tempo de adolescente dava pelo nome de Novas Profissões: estar doente é toda uma agenda. Neste momento estou, já não petrificada, mas até um pouco fascinada, com a quantidade de marcações que tenho para o mesmo dia, vá que todas no mesmo hospital: análises, a injecção que me é dada — literalmente duas vezes: na coxa e na bolsa, pois não pago os milhares (envergonho-me de dizer quantos são) de euros que ela vale (?) — e duas consultas, cada uma de sua especialidade, que é para não me enjoar. 

Ando revirada, se não de pernas para o ar, pelo menos do avesso: perdi a conta ao número de TACs, ressonâncias, análises, consultas e testes de covid que fiz nos últimos sete meses. Passei em todos com distinção, nem eu sei bem como. Lembra-me isto aqueles exames na universidade, em que a pessoa vai totalmente às escuras, com a sensação/ certeza de que não pesca um boi e depois tem uma nota injustíssima de tão boa para a ignorância que para lá carregou no lombo, arre burra. 

Estou farta, mas também enfiada num túnel que não tem volta atrás — porque se recuar ainda será mais escuro — e o caminho é sempre em frente. Não posso sequer sentar-me no chão e fazer a birra que me apetece, a bater com os pés e os punhos. Tenho que continuar, por muito que a vontade que tenho seja sair deste corpo e ir para outro (mesmo que mais feio e velho e gordo, deixem-me lá ser este estupor), ouvindo a voz exterior dos outros e a minha voz interior: "O pior já passou, já subi a montanha mais alta". Passou? Se calhar, mas eu também tenho medo da planície, sou esta caguinchas que fica a relaxar depois do esforço mais cruel, a pensar "E se...?".

Em matéria de autoestima, atingi quase o pináculo. Nem aos dezoito anos recebia tantos elogios (até porque, nessa idade, infelizmente, alguns eram assédio porco, como qualquer mulher sabe). Conforme já disse aqui, agora sou querida e linda. Posso dizer, fazer ou escrever as maiores barbaridades, que nada é levado tão a sério que me faça cair em desgraça, pois que talvez não exista, aos olhos dos outros, maior do que aquela em que já caí. 

Aprontava-me para fazer treino respiratório de preparação para a radioterapia, que mais não é senão obrigarem-nos a estar sem respirar uma eternidade até estarmos azuis, mas tudo pelo bem dos pulmões e do que perfeito coração. As técnicas disseram-me que teria que tirar Natércia (não sem antes perguntarem se era cabelo meu, ganda Nat) e eu tirei. "Ainda fica mais bonita", assim ouvi logo, enquanto exibia o meu cabelito de Mariza na época em que ela usava rente à cabeça. Depois retiraram-me a máscara e "Mais bonita ainda". (Estão tão habituadas, que já dizem aquilo quase sem olhar para os doentes.) Até que me pediram para abrir o fecho das calças — para que pudessem monitorizar a minha respiração pela barriga —, mas eu, que sou mal intencionada, pensei (juro que apenas por breves segundos) assim: "Tu queres ver que agora também...? E ainda irão dizer-me: 'Ainda mais bonita'?”.


04/07/2022

… deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.

Andava há cinco semanas a fazer penso pós-cirúrgico, uma vez, duas vezes por semana, e esta minha mania de me aconchegar nas rotinas, já estava a ser um programa qualquer, as enfermeiras amorosas, o médico um prato cheio, todos os meus pensos foram uma paródia pegada, cada vez que me lembro que de uma das primeiras idas a enfermeira me disse: “Eu sou a Mónica das mamas” — por ser especialista em amamentação —, e eu, que já conhecia aquele nome e alcunha de outro lugar, escancarei olhos e boca, “O quê? A Mónica das Mamas da Bumba na Fofinha? A mesma que mexeu nas mamas da Bumba está a mexer nas minhas!?”.

Então hoje o cirurgião disse-me que já não era preciso voltar lá, deu-me alta e aquilo pôs-me em baixo. A enfermeira igualmente desolada, “Espero que tudo lhe corra bem, foi das pessoas mais simpáticas que por aqui passaram”, e eu de beiça caída, “E agora, senhor doutor?”, ele de braços abertos para mim, “Agora…”, e abraçámo-nos quase longamente, “Vai tudo correr-lhe bem, é muito querida, gosto muito de si”. 

Devia ter saído do hospital aos pulinhos, mas nunca achei graça nenhuma a despedidas. Flutuei até ao carro, embargada, apesar do quase doce sabor de mais uma pequena vitória.

https://youtu.be/ifm00JEjSeo


 

03/07/2022

Dançar é como andar de bicicleta (sem rodas e sem rodinhas)

A última vez que tinha dançado tanto tempo seguido tinha sido há uma semana, aquando do Rock in Rio, mas, antes desse memorável evento, estive quieta de bailaricos talvez meio ano. Claro que tinha que vir para aqui gabar-me que fui ao RIR (hahaha). Fui no dia dos fósseis, em que tocavam Ub4, A-ha e Duran Duran, eu à espera de só encontrar thios de calças encarnadas e camisa branca, sapato de vela sem meia (ugh), acompanhados de thias cheias de extensões, botox e casaco de couro amarrado à cintura, afinal foi pacífico: média etária, meio século, mas muita canalha miúda e até duas senhoras idosíssimas (uma delas de cadeirinha eléctrica, a outra de bengala), havia de tudo um pouco, só não bebés (especialmente daqueles que guincham). Perdi praticamente todo o concerto dos Ub4, mas tinha que jantar sem ter que me meter numa bicha do demónio. (Meu pequeno grupo, hambúrgueres ao preço do ouro, eu um Pai Thai vegan ao preço da platina.) E sim, também estive mais de uma hora numa fileirinha pirilau para receber à borla uma cadeira insuflável, como tanto critica esse povo influencer (?), que não só tem menos quinze anos do que eu, como também vai parar a tendas vip e sentar-se em maples feitos de rabo de boi. Adiante: assim que me apanhei com o pufe, dei em dançar toda a noite, pelo que não usufruí praticamente nada dele, mais valia tê-lo oferecido a um pobrezinho que fosse ali a passar, sei lá.
Mas não era a isto que eu vinha: era também para me gabar, é certo, mas sobretudo para comunicar ao mundo que hoje voltei às minhas danças no ginásio. Levei três ou quatro abraços da treinadora, agradeci-lhe a frase que me inspirou durante estes sete meses e que saiu da boca dela, fiz a aula a sentir-me a maior, a não errar praticamente nada nas coreografias todas (embora suspeite que só fiz m., mas soube-me tão bem!), sempre com Natércia a assar-me a mioleira, ao fim de quinze minutos pensei: “Olha, faleço feliz!”, mas aguentei até ao último minuto, soubesse eu o que sei hoje e ter-me-ia voluntariado para os Comandos, pois desconfio que numa tropa especial é que eu me encaixava bem. 

01/07/2022

O António e os dedos no rabo

Sim, se calhar estas coisas acontecem a toda a gente, mas dá-se que não o creio. É por esse motivo que necessito de desabafá-las por escrito, como se, ao fazê-lo, elas se me descolassem da mente, ou, pelo menos, perdessem a força estrondosa com que me atormentam.

Era eu a chegar à bicha (blhá) da estação de serviço, e reconheci-o logo, de costas: careca, envergando o tipo de calças que usa sempre — skinny jeans, o homem já passou dos sessenta e aquilo ainda lhe aumenta mais o perímetro da cintura e lhe diminui o volume do traseiro a níveis praticamente inexistentes —, camisa desportiva entalada por dentro das calças, todo um menear de anca enquanto se queixava do aumento do preço dos combustíveis. Quando se apercebeu de que era eu que estava atrás dele, perguntou-me como é que eu estava, deu-me dois beijinhos extremamente perfumados e eu respondi a verdade: "Agora estou melhor". "Ah, do quê?", "Cancro.", "Aaaah, de quem?", "Meu.", e ele de nariz franzido, óculos a subirem para o intervalo das sobrancelhas, olhos exageradamente escancarados, boca a tomar aquele formato da das influencers quando se fotografam em selfie, "Aaaah, não fazia ideia!", lá veio a retórica das amigas que tiveram, milhares de amigas que tiveram e estão óptimas, olha que maravilha, ter um cancro é o prelúdio de ficar óptima, imagino o que ficarei, se óptima já eu era. 

Estava nestes pensamentos etéreos — não esquecer que o cenário era uma bomba de gasolina —, quando ele larga de lá, depois de me dizer que o Paulo é como um filho para mim, sendo que eu sei que o Paulo e ele vivem maritalmente: 

- Eu faço o exame da próstata todos os anos. Os meus amigos recusam-se, dizem que ninguém lhes mete os dedos no rabo, ou então aquele aparelho, mas eu não. 

E eu a pensar que sorte a dele, amigas pós-cancro óptimas, amigos pré-cancro com medo dos dedos no rabo, agora finalmente concluo que isto de ser mulher é um privilégio muito maior do que eu pensava, talvez me pirasse daqui neste preciso momento, antes que ele seja um nico mais gráfico.