25/02/2025

Uma de nós

Começámos o programa um pouco por curiosidade e interesse em informação acerca do que nos traria a vida pós-cancro, éramos todas desconhecidas, unidas por um laço triste como são os da pouca sorte, iguais àqueles que domam à força um cavalo selvagem.

Com o passar das semanas, algumas desistiram por motivos lá delas, outras mantivemo-nos intactas, procurando, através do exercício físico, respostas para os nossos corpos retalhados e as nossas cabeças quebradas. O ambiente foi sempre cordial e, às vezes, alegre.

Mas ontem houve abraços e houve lágrimas. A uma de nós apareceu “uma coisa” num pulmão. Todas vivemos com esses dois monstros a ensombrarem-nos os dias e as noites, sejam de sol, de chuva ou de lua cheia: os pulmões e o cérebro, para onde dispara, quando prime o gatilho, o que tivemos, umas há três anos, outras há cinco, cada caso é um caso, cada organismo é um organismo. Temos estes chavões gravados com ferro em brasa nas nossas almas, agarramo-nos a eles nas horas mais aflitas e também nas mais aliviadas.

Dei comigo a dizer-lhe: “Deus é grande, não há-de permitir. O pior já nós passámos”, logo eu, que só acredito num Ser maior, que tudo pode e nem sempre nos faz a vontade, mas não me levem aos padres, que eu não fui feita para aqueles rituais sem nexo nem lógica.

Deus é grande, não há-de permitir. O pior já nós passámos.


24/02/2025

Dez dias, três borboteiras

Precisava com urgência para anteontem de uma borboteira, e então mandei vir daquela megastore da China (já sei as vossas opiniões, as quais partilho, porém também me farta pagar a multiplicar por dez pela mesma m. que posso pagar a dividir por dez), 

(aliás, aprendam comigo, que eu, injustamente, não duro para sempre: também havia mandado vir da mesma mega um par de sapatos de dança, depois recebi um mail a confirmar o envio, depois recebi outro a anunciar que o meu pagamento tinha um defeito qualquer, refiz a encomenda, acrescentei três itens à minha vontade, um dos quais os sapatos de dança e, antes de pagar, lembrei-me que a primeira encomenda já vinha a caminho, fechei a aplicação sem ter pago a segunda, e não pensei mais nisso, até ao dia em que me chegaram a casa os cinco artigos, dois pares de sapatos de dança incluídos. São tão extremamente confortáveis que só me apetece dormir com eles, e custaram doze paus — um par, porque o outro, conforme já disse, me saiu de graça e ofereci logo à que fala tanto, a ver se ela se calava. Não calou.)

porque até havia uma no lar, mas não a encontrei na balbúrdia da minha casa nem no caos de uma das arrecadações, pelo que presumo que deu o peido mestre e foi com a vara. Chegou-me uma coisa que fazia o barulho de borboteira, praticamente não tinha depósito para borbotos e era recarregável como um telemóvel, algo de inalcançavelmente evoluído. Vai que só tinha cerca de cinco minutos de autonomia, o que nem chega para a manga de um pullover, e depois era preciso esperar talvez doze horas para que a máquina se autonomizasse de novo. Como não sei falar mandarim, fui em demanda por outra. 

Chego à loja da catedral, onde normalmente sou bem servida pois fujo a sete ou oito pés da que começa por Wor e acaba em ten (nunca comprei lá nada que não viesse avariado, ou não avariasse no espaço de uma semana), acerco-me de uma funcionária cujos olhos dispararam na minha direcção um "odeio-te" muito claro, vá-se lá perceber porquê (havia de ter-lhe perguntado por uma rebarbadora para o buço, mas nunca me lembro destas piadas no momento certo), e digo: 

- Boa tarde. Ando à procura de uma borboteira.

- Boa tarde. Hã? Borboteira? — E era ver o nariz dela, ou lá o que era aquilo, alçar-se todo para cima, os dentes de cima, ou lá o que eram aquilos, todos à mostra, a chispar. Lembrou-me aquelas hienas do Rei Leão, mas eu estava em missão, não queria perder o foco. — A senhora quer dizer 'uma máquina para tirar borbotos?' [Oh, pá, está aqui uma sumidade linguística a perder-se a vender tralha eléctrica, agora percebo a revolta.] [Que nome sugeriria sua sumidade para uma máquina que só serve mesmo para tirar borbotos? "Depilaborbotos"? "Saca-bolas da lã"?] 

- Sim.

Mostrou-me duas ou três marcas, modelos todos iguais, pequenas e frágeis como eu já tive uma, que arrancam um borboto de cada vez e não os trinta mil de que cada pullover de cônjuge já padecia, além do que mordem que se fartam, à pincher, e fazem buracos na lã.

- Muito obrigada, quero daquelas grandes que parecem um ferro de engomar. Lá terei que ir à Wor ten.

E fui. Muito bem atendida, desta vez era um homem, que entendeu a palavra "borboteira", me fez a encomenda para a fábrica/ armazém e prometeu que a teria daí a três dias. Assim aconteceu, máquina maravilha, limpou duas ou três camisolas e, ao terceiro dia, descansou. Eternamente. Confirmada a minha teoria pela enésima vez, devolvi-a e recebi a quantia que despendera por ela. 

Meti-me numa loja de rua que vende quase tudo o que é eléctrico, pedi por uma borboteira, o senhor percebeu a palavra e simplesmente vendeu-me uma máquina decente, que já limpou o que faltava limpar e está ali para as curvas que as lãs também têm. 

Moral da história: nenhuma. Foram três borboteiras em dez dias. Nada má, esta média, como sempre, em mim. 


14/02/2025

Tenho um timor, senhora

Foi o que ouvi ao velho negro, quando lhe pedi mais uma obra na minha casa, que só me lembra a Casa Inacabada lá de baixo, da Expo, que as minhas duas filhas mais velhas um dia acabaram e foram expulsas do jogo, pois era suposto nunca se terminar aquela obra, como grande parte das públicas, que geram cadernos de encargos dignos de Eça, arrastamentos e deslizes de prazos de execução e orçamentos finais engordados como porcos para a matança.
Não sei por que escrevo tudo isto, quando venho apenas aqui contar que entrei em 2025 com os pés tortos, ainda por cima na ilusão de que estava a bailar uma dança sabida de cor, até de olhos fechados. Apanhei o susto destes últimos três anos, quando o médico me disse: "Tem um lipoma, se calhar vou ter que lhe cortar um bocado do intestino", isto eu ainda desacordada de um sono bom e justo (paguei-o, não é?) e sem sonhos — prefiro não os ter, desde miúda que sofro de terrores nocturnos e depois de graúda acordo cônjuge com gritos, choros ou, mais raramente, gargalhadas, no lugar dele eu já tinha mudado de quarto —, tudo o que termina em "oma" me congela de medo, eu "Ó senhor doutor...", já a pensar "Olha, queres ver? Agora são timores atrás de timores, vai um deles um destes dias e leva-me embora daqui", mais exames, mais análises, mais esperar por resultados (escutem, que eu não duro sempre: mais cruel do que qualquer exame — qualquer — é a espera pelos resultados), mais nervos, mais pensamentos com palavrões, mais preparação para mais uma cirurgia. Depois de dias intermináveis, eis que surgem relatórios de sol e luz, cirurgia desnecessária, timor benigno, gordura no intestino, conclusões à gaja: “Agora sou gorda no intestino. E se eu pedisse ao médico para me tirar o oma e, de caminho, recolocar-me a cintura de solteira, eu era a ´Vespa´ para um colega de faculdade” que, por acaso, morreu ontem. Estamos velhos. Nunca mais terei cintura de vespa, ele nunca mais coisa nenhuma. 
Vou viver com o meu timor com alegria, festa e dança, até me cansar dele. Ou ele de mim.