Tinha um sinal estranho (agora acho tudo estranho em mim, menos o que é verdadeiramente estranho) (agora o sinal já não é estranho porque já fui mostrá-lo a um especialista). À saída para a consulta, disse-lhe:
- Vou agora ao médico para ele ver um sinal que tenho, que acho suspeito.
Resposta:
- Eu tenho uma nódoa negra no cotovelo que não imagina. Está roxa e preta. Foi ontem, fui bater com o braço no puxador da porta da minha cozinha, nem sei como é que lá fui dar. Foi com tanta força, que até fiquei zonza e tive que pedir ajuda. Isto também pode ser da anemia, que eu, com estas hemorragias todas, ando anémica. Por isso é que me dói tudo, é pulsos, é joelhos, é braços, é pernas. E tenho medo de cair, tenho tantas tonturas. Mas isso deve de ser derivado aos cristais.
Senão, vejamos: consulta semestral de oncologia. Em vez da minha médica, sou atendida por um maçarico daqueles que ainda seguram a ponta da caneta com os dedos todos. Sorridente, nervoso, deixou logo que eu dominasse a sala, o que nem sempre joga a favor de um médico. Tive a impressão que podia mandá-lo fazer o triplo mortal encarpado à retaguarda, que ele faria. Achou logo muita piada à minha falsa surpresa: “Dra. Rita, está tão mudada!”. Perguntou-me o peso e eu recusei-me a dizer. Chega de indiscrições. Levei-lhe todos os exames que fiz ultimamente, uns por auto-recriação, outros nem por isso. Gostou de tudo menos dos vómitos. Eu também não aprecio, propriamente. Disse-lhe que já não padeço desde que tomo uma cápsula em jejum. Não se ficou, mandou-me fazer dois exames, um deles extremamente invasivo. O que vale é que estarei a dormir. Pode ser que sonhe com coisas puras. Tipo “A música no coração”, sem a parte das S.S.
Depois o delfim resolve perguntar-me se tenho diarreia. Eu, apesar de me parecer que a conversa já ia a extrapolar para a intimidade indesejada, respondi: “Sr. Dr., eu estive muito tempo presa”. E ele com os olhos a pularem pelas órbitas, aposto que a traçar mentalmente o caminho para a Psiquiatria do hospital. “Não reclusa, não detida. Ainda assim, agora sou livre”.
Volto lá qualquer dia. Espero que a minha médica já não esteja constipada [rolling eyes].
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Fui a uma loja comprar cuecas. Agora decidi que sou alérgica aos elásticos e a tudo o que não seja algodão. Ou muito me engano, ou acabaram-se as cuecas da coboiada, sob pena de a pessoa ter que ter ao lado um frasco de Betadine. Entrei na loja onde sei que há roupa dessa sem costuras e com o tecido pretendido. Comprei umas quantas, ainda me ofereceram mais um par, e toca para casa. Na minha rua, abro a mala do carro, o saco cai-me de boca para baixo e as trezentas e cinquenta mil cuecas espalham-se pelo passeio. Devem ter-se multiplicado, porque eu metia umas no saco e espalhavam-se mais duzentas. Fora, é claro, dois sacos de víveres num braço e um saco cheio de frigideiras lá da enorme superfície, que eu, durante a batalha Linda-cuecas, nunca quis largar. Quando, finalmente, venci a coisa, passou por mim um papá com seu bebé, com um semblante extremamente preocupado e disse-me: “Bom dia”. Eu, descabelada, exausta, com cara de cueca, carregada e com a vergonha toda perdida pelas ruas da amargura, respondi: “Bom dia”.
Passei o reveillon numa festa do maior luxo e abundância, entre peles verdadeiras de marta e arminho, perfumes daqueles que nunca mais nos saem do nariz, nem que o arranquemos, penteados armados com duas embalagens de cola laca, bâtons de tons histriónicos, gargalhadas falsas e champanhe Moët & Chandon a escorrer pelas goelas delas e deles, ou delos, ou lá como é que agora temos que dizer, senão ainda nos açoitam, ai de mim se digo que sou heterossexual, apontam-me logo a unha gigante (como é que limpam o rabo com aquelas garras?) em guinchos de "binária!", dizia eu, eram cigarrilhas, música que nunca ouvi, à meia-noite silvos de foguetes e de gente inebriada com o espelho e...
Ah, era eu de pijama e robe, aquilo tinha sido um delírio ou um pesadelo acordada, tirem-me de ambientes desses, eu bebi uma garrafa quase inteira de Champômix e fiquei logo viciada, garanto que vou tornar-me dependente daquilo, como se fosse verdade que tem mesmo maçã. Ao passar do ano, chamada via whatsapp dos filhos todos, uns longe, outros perto, mas todos fora da minha asa, gargalhadas autênticas e votos bons, de coisas doces.
Meia-noite e trinta, a bela adormece, para só acordar ao meio-dia e meia, já do dia 1. Sento-me na cama e digo a cônjuge que vou correr. Era o prometido para o primeiro dia do ano, mas não àquela hora. Indiferente, a cidade dorme como eu até há pouco. E lá vamos, ele mais veloz, eu a meditar por que raio me meto nestas aventuras logo assim que raia o dia para mim.
Mas corri. Estava a terminar os seis quilómetros para os quais me determinara, quando vejo, a atravessar o caminho de todos os grandes atletas como eu, uma corda muito bonita. Parei (boa desculpa) e observei. Pensei: "Oh, uma cobrinha tão comprida, mas tão magrinha!". Uma vez que a minha prioridade não era alimentá-la, mas sim salvar-lhe a vida — em claro risco, devido à velocidade a que se deslocava e à quantidade de humanos que ali passavam —, pelo que agarrei num pauzinho, a ver se ela enrolava ali a cabeça e depois eu poderia atirá-la para as relvas, ou assim. Mal lhe toco com o pau, a coisa começa a desfazer-se como um Lego mole, em pedaços de três centímetros. Só assim percebi que se tratava de uma comunidade, pelos meus cálculos com sessenta e tal elementos — não tinha menos de dois metros de comprimento — e resolvi ir-me embora, a Natureza que seguisse o seu curso e eu o meu percurso.
Só mais tarde fui informada, de forma informal, que se tratava de uma fileira de lagartas do pinheiro, relativamente perigosas. Ainda bem que me pus à fresca. Não quero apanhar mais porras. E estava demasiado preocupada com o facto de ter dormido mais de metade do ano, até àquela hora.