23/11/2021

Eu, tu, ele, nós

Hoje encontrei-me num desconhecido. Era eu, noutro corpo. Estava parada diante do dispensador de senhas daquela loja parafarmácia, perfumaria, óptica, cosmética, estética, dietética e ortopédica, tudo a um tempo, tentando em vão perceber qual a senha mais indicada para uma pobre mortal que apenas pretende adquirir um lápis para pintar os olhos — e, assim, obter um olhar entre o enigmático e o ó-pá-deixem-me —, e, uma vez que nenhuma das várias possibilidades que a máquina me apresentava se afigurava a correcta (saúde, estética, óptica, outra qualquer tipo banha da cobra e prioritários), ali me pus um bocadinho da minha vida a decidir, quando ele se acercou e perguntou se podia ajudar-me. “Sabe, estou aqui confusa, porque só quero um lápis para os olhos e nenhuma destas senhas serve para a minha necessidade.” Um ondular lateral da cabeça, ombros e anca, “Escolha uma qualquer, isso vai tudo dar ao mesmo” — devia referir-se ao balcão, onde ninguém verifica o papelinho que levamos na mão —, e eu logo a pensar, “Este era eu, se fosse homem”. Acompanhou-me, então, até ao expositor dos lápis, onde, após aturada busca com recurso a uma fotografia que eu levava comigo para facilitar o achado (sou uma pessoa absolutamente incapaz de decorar nomes de frascos, bisnagas e caixas, só não vou à farmácia com os recortezinhos dos medicamentos porque existem telemóveis), encontrámos o almejado. Reparei nessa altura que, em vez de anunciar que se aguenta agarrado ao olho por dezoito horas, este agora diz que são vinte. “Pergunto-me quem é que quer ter os olhos pintados durante vinte horas.”, “Quem só dorme quatro.” Era eu, não tenho dúvidas. O Criador também pode ter fases de crise de criatividade, passe o pleonasmo.


16/11/2021

Bonita, bonita, era que este dom me servisse para alguma coisa

Estou necessitada de um golpe de sorte. A minha estabilidade, o meu equilíbrio e até a minha felicidade dependem, neste momento, de uma resposta que está para me ser dada nos próximos dias. Ando numa pilha de nervos, num credo, num ai Jesus de dar gosto ao diabo. Não fora ser uma senhora e não fazer essas coisas, e já estaria desintegrada em estrume daquele altamente fertilizante, pardonnez-moi o grafismo e a gráfica desta singela e escatológica imagem.

Hah. 

Sempre fiz apostas comigo mesma, desde que me lembro de existir como gente. Sei que não sou a única, o que me conforta, pois, embora isso signifique que não sou nenhuma pérola irrepetível, dá-me também a ilusão de não ser uma bela aberração. Lembro-me, por exemplo, da Dolly do Hello, que pediu um sinal ao falecido para que lhe desse a anuência quanto ao casamento com o Horácio. Percebem o raciocínio?

Assim, estava eu na fila única do hipermercado, e, sem ter olhado para as caixas — isto é fundamental para se entender o contexto —, apostei assim: “Se eu for chamada para a caixa 21, é sinal de que a notícia que aguardo será boa”. [As caixas são para aí trinta e cinco.] Eu gosto do vinte e um por egocentrismo e superstição, nasci num dos doze do ano, e deixem-me. Deu-se então a minha chegada ao primeiro lugar da fila, e, ao olhar para a 21, verifiquei que a operadora ainda estava a receber o pagamento de uma pessoa e havia uma outra à espera de ser atendida, com as compras já no tapete. Arrependida, um pouco zangada comigo mesma, quase furiosa — porque tanto acredito nas minhas perguntas como nas respostas que o cosmos me dá —, ainda pensei em desfazer a aposta, “agora não vale”, à pita da escola, “não vale salvar todos” no jogo das escondidas. (De resto, nunca percebi essa cena de salvar todos, uma batota como outra qualquer.) Estava eu mergulhada nestes pensamentos, prestes a afogar-me neles, quando o altifalante chama: “Caixa número vinte e um”.

(Foi uma alegria tão grande que paguei a despesa de um rim que lá deixo praticamente todos os dias sem um pestanejar de rímel, toda eu risos e simpatias para a funcionária. Não presto para nada.)

Desculpem, mas isto não é altamente científico?


08/11/2021

Leave me breathless

Já aqui me insurgi, não contra, mas a propósito do despropósito que constituem as campanhas daquele hipermercado que responde por um nome começado por Conti e terminado por nente, e que nem foi capaz de adaptar o nome ao estaminé quando se instalou nas nossas ilhas.
Cá vai mais uma, que, como sempre, não passa de um exercício de matemática simples, tipo quarta classe, como se dizia no meu tempo.
Agora são facas. Diz que são de cortar a respiração, o que é credível pelo aspecto dos retratos: as naifas são perfeitas para talhar uma jugular, quiçá uma boa carótida.


Uma delas, por ter o mimoso nome de santoku, há-de estar destinada ao golpe na veia femural. (Pareço uma cirurgiã — ou uma talhante — a falar, mas é que fui estudar.)
(Esta m. está a centrar-me o texto, derivados às imagens, mas defequei. Sei muito bem que, se for à html, posso alterar, mas não vou.)


Mas o que me traz aqui, efectivamente, são aqueles cálculos esdrúxulos a que sinto que tudo isto me compele. Então, imaginemos que eu quero uma faca multiusos, como outro dia me apeteceu: junto vinte selos, sendo que cada um corresponde a vinte paus de compras, logo, a minha faca custa-me quatrocentas mocas, em não me falhando a calculadora (nhé, fiz de cabeça, sou um crânio). E depois, vou à caixa trocar os selos pela faca, e passam-me um recibo de quarenta e quatro e noventa e nove dele — que há-de ser o valor de mercado da coisa —, mas a zeros.


Ou seja, o cutelo custou-me quatrocentos, ou quarenta e quatro e noventa e nove, ou zero? 
Agora que pus isto assim, nestes termos, já não consigo dormir sem uma resposta. Às vezes (raramente!), mais valia estar calada.


07/11/2021

Ouço coisas

As pessoas não percebem que têm que fechar o tampo da sanita, mas isto é para homens e mulheres. Porque, quando puxam o autoclismo com a tampa aberta, as bactérias vêm todas cá para fora e espalham-se por todo o lado, e vão até às escovas de dentes, se for preciso.

[No cabeleireiro, aquele espaço onde, conforme se sabe, as mulheres vão relaxar e tratar da cabeça, mas eu, em constante contramão, vou apanhar camadorras de nervos e saio sempre mais velha. A sério, fico com mais dez anos em cima, ou seja, com a minha idade biológica, se me esticarem a franja, ou lá o que é isto.]

Se ela for uma abusadora para o bem, tudo bem. Se for para o mal, é que já não.

[Aleatoriamente, de passagem pelos passeios desta cidade. Não, meu jovem. Não existe o conceito de “abusadora para o bem”. Nem mesmo esse da palhaçada em vale de lençóis, que devia ser no que as tuas hormonas estavam a mandar-te pensar. Se é abusadora, é sempre para o mal. Pode é ser uma boa maluca na hora da potrilha, mas não chames abusadora à criança. Isso é crime.]

Adirem… adirem… adirem… Fazem a aderência…

[Numa Loja do Cidadão perto da pessoa humana. Vais para trocar um selo de residente de um carro para outro — a frota sofreu uma pequena alteração, na verdade bastante grande: o camião que transportava sete finou-se por avaria fatal (daquelas de ficarem mais dispendiosas do que o valor de mercado da coisa), de modos que foi substituído por um de cinco almas, visto que está a dar-se a debandada do ninho e já não necessitamos de levar a filharada toda mais a criada, hah, era a gozar, a filharada toda mais as gatas, mas esta última parte também nunca aconteceu —, e ficas diante do senhor que te atende, à espera não só do selo novo, como também que ele decida em que tempo vai conjugar o verbo. Pronto, depois lá opta pela aderência no lugar da adesão, pois cada um sabe com que linhas é que se cola.]


02/11/2021

Gente que não sabe estar

O homem entrou-me porta adentro, óculos de sol agarrados à cara — que nunca tirou —, suspeito que para ajudar a namorada a desnegociar um contrato que tinha connosco, coisa simples, apenas uma assinatura de denúncia e ala. Ambos na faixa da quarta década, ela muito enfiada, não sei se tímida, insegura, ou medrosa, mas de quê, de quem, valham-lhe os santinhos? Não percebi a presença do mânfio, será que para segurar por ela na caneta assinante, caso tudo — nomeadamente o punho — falhasse? Ela na sombra dele, um murmúrio de boa tarde, eu curiosa para conhecer a maníaca das limpezas, que tudo desinfecta com lixívia, mas deixou o espaço que ocupou num esterco de dar gosto ao aspirador e ao esfregão, nem cheguei a tirar-lhe as devidas medidas, já o macho alfa me dirigia um 

Atão,  jovem, tá-se?

Eu parva, sem perceber para quem se dirigia tal dislate, pondo a máscara sem jeito nenhum,

Olha, ficas mais confortável se eu também puser a máscara?

Talvez ficasse mais confortável se te pusesses nas p., pensava a jovem, gradualmente mais exangue — e também burra, a perceber que ok, aquele despropósito era todo para mim, mas a filha da minha mãe já foi muito melhor em charadas, reacções imediatas e respostas prontas, e então esperei que o magano ajudasse a maníaca a escrever o nome no papel e se eclipsassem rapidamente, o que fizeram ao cabo de escassos minutos — felizmente, ela tem um daqueles nomes curtinhos, se fosse aqui o da senhora marquesa ainda lá estávamos —, saindo, ela na cola da silhueta dele, ele a acenar,

Jovem, fica. É preciso é saúde e alegria.


Lamento profundamente ter-me tornado nesta ameba proteus, incapaz de arrumar o coiso com a lapidar frase “Olhe, não seja parolo”, dirigida certa vez por alguém das minhas relações próximas a uma deslocada social deste calibre, aniquilando-lhe qualquer intenção de protagonismo escandaleiro. 



01/11/2021

Leve cruz

Somos vizinhas há para lá de duas décadas, ela é dessas que fazem falta, que dá revistas cor-de-rosa quando acaba de as “ler” — se é que chega a pôr-lhes os olhos em cima —, mas agora anda a morar numa ilha, desde que o vírus veio e o casamento começou a desmoronar-se, levou o homem com ela, como se não arranjasse melhor do que um careca esquálido e choninhas, que, disse-me ela certa vez, andava embeiçado por uma “fulana” que vivia três prédios adiante, nem para trair foi capaz de ir longe, mas o amor tem destas porcarias, e quem sou eu, que sou só vizinha, para avaliar o que se passava entre quatro paredes e um tecto e agora rodeados de oceano por todos os lados, a céu descoberto?

Nunca lhe conheci mãe, pai sim, zeloso e dedicado ao único irmão, deficiente grave de uma maleita que não sei identificar, atrasos e incapacidades a todos os níveis, só não é deslocado numa cadeira de rodas por, acredito fervorosamente, teimosia de pai e irmã. Vi-o passar outro dia, naquela espécie de andar de pernas arrastadas, apoiado, de um lado, no pai — que nunca vi envelhecer —, do outro numa das filhas dela, ambos carregando, a pequeníssimos passos, o corpo a cada dia mais deformado e sofrido, como uma cruz que, por motivos que quem, como eu, assiste só da bancada, não compreende o quanto, muito mais do que lhes pesar, os faz felizes. Não por esse motivo, mas por todos os outros, nada mais me veio à cabeça, que não fosse, “Que sorte que tu tens, Ester, que ainda tens o teu pai”.