27/03/2020

Das idiossincrasias - das dos outros e das minhas

Nesta fase coronoviral, queria escrever um post por dia, mas o desalento e a ocupação constante com mil coisinhas mo impedem.
Realmente é bem verdade que a roupa não se passa sozinha, ao contrário desta aqui que vos tecla. Estou a brincar, raramente me passo, por isso é que ando sempre com os olhos raiados de sangue.
Agora a sério, não me tirem o ferro de engomar. Há muitos anos que é o meu escape, o meu momento zen, cada um tem o seu. Antes isso do que enveredar pelas drogas adentro. 
Tenho conseguido continuar a maquilhar-me religiosamente (não num sentido literal), vestir-me como em dias de normalidade, apenas desci do salto e ando rasa ao chão, ora de ténis, ora de sabrinas. Em compensação, há dias vi a minha vizinha da frente de pijama, em plena rua, como se estivesse em casa. Uma completa inversão de valores.
Tenho ido correr dia sim, dia não, o que, não sendo famoso, também não é mau. Faço corridas curtas (3,5 km), que me sabem pela vida. É esquisito correr por ruas vazias em pleno dia, cruzar-me com a senhora da farmácia, com o carteiro, com a vizinha que vai às compras, e agora ser tudo diferente, acenamos à distância, apreensivos, nervosos, acho que até tristes.
Quando se anda na rua de dia, parece que se entrou na quinta dimensão: tudo fechado, poucas pessoas a circular. Assim que cai a noite, é tal e qual como quando se sai de casa às quatro da manhã. O silêncio e a inércia pairam no ar, mesmo que sejam sete e meia da tarde. 
Noto que os automobilistas estão ainda mais agressivos, sobretudo com os peões na passadeira. Desconheço se é porque têm uma ilusão de impunidade, se lhes cresce a raiva do "go home" (como se eles estivessem em casa), ou se é algum jogo novo, tipo electrónico, mas com pessoas a sério, "corre ou morres".
Por falar nisso, preciso de estudar afincadamente o fenómeno dos automobilistas com máscara. Por vezes, vai mesmo o casal completo, dentro do carro, os dois de máscara. Não estão no seu habitáculo "esterilizado"? Não vivem juntos? Não comem da mesma malga? Tende mas é juízo e deixai as máscaras para quem efectivamente delas precisa.
Já agora, se a DGS recomenda o uso de máscaras apenas a quem está infectado, e ainda que quem está infectado deverá obrigatoriamente permanecer em casa catorze dias, quem são afinal aqueles cinquenta por cento de transeuntes que andam mascarados pelas ruas? 
(Muita gente que não lava os dentes e nos poupa, assim, ao seu fétido. Bem hajam.)
Vi uma senhora de idade na televisão, os cabelinhos muito brancos, afirmando que não senhora, não está em risco. "Para além de ser diabética, não tenho mais nada, graças a Deus".
Queria ir dar sangue, porque recebi uma mensagem do IPS, mas a minha tensão arterial diz-me que nem pense, e isso tem sido mais um motivo de frustração, a acrescentar aos restantes. Numa ida à farmácia, li na porta que os hipertensos também são um grupo de risco e apeteceu-me ter um ataque de nervos. Depois li "Soraia, está a ser filmado", e lá me acalmei, apesar de não me chamar Soraia. Só após um curto raciocínio percebi que se tratava do verbo sorrir e até sorri. Ou já estou chanfrada da marmita, ou a precisar de uns óculos de sombra. 
Uma pessoa que, diante da fila (exterior) da farmácia queria que existissem senhas de vez, com o argumento que "de manhã havia, por isso achei que agora também devia haver". E então, encostou-se a um muro a desabafar o quão incrível considerava que houvesse gente que vai à farmácia por tudo e por nada.
Por falar nisso, pessoas que vão à farmácia acampar desabafar: para quando uma multa? Uma pena de prisão não remível?
Tenho fé nos portugueses, mas só de segunda a sexta. Ao fim-de-semana julgam que estão de férias e são multidões junto aos rios e oceano. Vão claramente contribuir para medidas de restrição ainda mais apertadas, talvez assim nem vejamos o mar, todos nós, este ano.
Tenho a capoeira a metade, dois dos meus pintainhos estão fora. Embora saiba que estão bem, e que, em ambos os casos, foi a melhor solução, isso é assunto para me doer em, pelo menos, metade do coração.

20/03/2020

Hoje está a chover

O dia de ontem foi tão extenuante que nem pau para escrever tive. Esta noite dormi nove horas de seguida, coisa que não me sucedia desde que nasceu o meu mais novo, vai para décadas, assim no plural, não tarda. Tinha-me levantado, altas horas da madrugada, e feito uma aula de zumba, isto ainda antes de me lavar. Depois pareceu-me pouco e fui para a varanda dar no ferro, que é como quem diz, abdominais, braços, glúteos e alongamentos. Devo ter exagerado em alguma das coisas, que hoje sinto a excruciante. Deus me livre de tossir. Mais logo retomo a actividade física. Agora preciso de tratar do intelecto. Aguarda-me na box uma sessão de telelixo.
Entretanto, pintei o meu cabelo, era o que faltava deixá-lo encher-se daquelas nuances descoradas, mas agora sou a Elsa do Frozen, ou quê? 
À tarde fui à farmácia, mas tive o cuidado de escolher a mais longínqua do bairro relativamente ao lar, para poder desfrutar não sei de quê. Constato que os donos dos cães, que agora surgem do chão como cogumelos, são mais do que os próprios (donde se conclui que o mesmo cão é diariamente passeado, pelo menos, uma vez por cada elemento de uma casa), e também deixaram, definitivamente, de apanhar as poias dos seus animais, agora que "ninguém vê". Portanto, a mentalidade não mudou nada.
Em contrapartida, a rua cheira a rua. Cheira a árvores, a flores, a vento, a pedras agora molhadas, no lugar do aroma a combustível queimado, alcatrão e pneus. Ainda assim, não sei o que prefiro. Sou demasiado urbano-dependente para apreciar ambientes bucólicos por mais de três dias, ainda para mais a este preço.
Ao fim da tarde baldei-me a outra aula de dança* e fui caminhar (a minha companheira de corridas está desancada de um mau-jeito que deu no ballet) uns quilómetros largos, a aproveitar enquanto não me ferram em casa como se eu fosse uma criminosa. Apesar de tudo, isso ainda é menos deprimente do que sair e só ver gente mascarada e diabólica, e a fugir de se cruzar connosco como se fôssemos todos leprosos carregássemos a cruz que efectivamente carregamos. 

*@dianaxana7, não sei colocar links do Instagram, é procurarem. Esta menina merece o Mundo, está fechada em casa, a dar 4 aulas por dia em directo da sua varanda.


18/03/2020

Street

No Verão passado apareceram na minha rua dois pequenos gatos, talvez com quatro meses de vida. Nessa altura, ainda tinha a minha Mia viva, ou seja, tinha duas gatas em casa, pelo que não me passou nem de longe pela cabeça adoptar mais um, quanto mais, mais dois. De qualquer modo, achámos - porque nem sequer foi iniciativa minha - por bem deixar um pouco de alimento e água aos gatinhos, que, como todos os animais de rua, pareciam precisar. Os dias foram passando, depois as semanas, os meses, e nós sempre a deixar um bocadinho de ração, latinhas, pescada de sobras nossas (o que eles se pelam por peixe cozinhado!). Um dos gatos é preto com malhas brancas, desconheço se é um macho, mas recebeu o nome de Street, que dá para todos os sexos, enquanto o outro, tigrado com mais de duas cores, certamente uma fêmea, foi "baptizado" de Juliana (don't ask). De resto, Juliana tem vindo a engordar de tal forma que, ou muito me engano, ou qualquer dia dá frutos (Coisinha, Clavícula, Meu Óculos e Gil Prada, tudo nomes possíveis para a ninhada que se anuncia). 
É ao cair da noite, pelas 19:30, que desço à rua e vou deixar a refeição dos "meus" gatinhos. Esta era, até há pouco, uma hora sossegada, com menos gente e movimento de carros. Agora todas as horas são de um sossego inquieto, mas Street - que é muito mais fiel à refeição do que Juliana - não sabe nem sonha o que se passa no mundo, e é a essa hora que me espera, os olhos como duas lanternas acesas, metido debaixo de um carro, ali perto da caldeira da árvore onde costumo deixar-lhe o sustento. 
Espero que, sendo decretado o estado de emergência, abram excepções como em França: alguns trabalhos, compras básicas, assistência a idosos, passeio de animais e prática de desporto, desde que não em grupo. Porque eu, garantidamente, e pontualmente às 19:30, vou descer até à rua para alimentar meu Street, e, quem sabe, a sua companheira Juliana. Nem que tenha que vestir o traje desportivo, nem que tenha que alugar um cão. 

17/03/2020

Filhos sem Deus

Ainda tudo isto vai no início e já a tristeza a querer tomar conta de mim. 
(Tenho que, urgentemente, começar a fazer ginástica cá no lar. Sair à rua, neste momento, é mais angustiante do que ficar em casa.)
Nunca pensei viver estes dias, nunca imaginei o meu paraíso à beira-mar plantado devassado desta forma. O máximo que equacionei foi, remotamente, um terramoto na minha cidade. Uma guerra impossível. Um ataque terrorista improvável. Esta coisa de não sabermos para onde nos virarmos (se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come - como se diz no Brasil), por não haver um canto seguro e todos parecerem mais tenebrosos, nunca algum dia considerei. 
Ouvir que vamos ser milhares de infectados e não teremos ventiladores para todos; que a selecção se fará dos mais velhos para os mais novos - tenho medo, pessoas, tenho tanto medo. Sem motivos pessoais (porque, infelizmente, já me restam tão poucos velhinhos), mas por prever então uma espécie de eutanásia passiva. Depois dos mais velhos, quais se seguem? Os doentes crónicos? Os deficientes? Os gordos? Os pobres? Qual vai ser o critério, então?
Aqui há uns dias, que agora me parecem longínquos, num supermercado ainda sem contingentes, mas já com mais gente do que o normal para o dia e hora, passava por mim um jovem casal como outro qualquer, não fora o pormenor de serem ambos deficientes: ele empurrava um andarilho, a imperfeição das pernas desenhando um perfeito S, ela empurrava o carrinho das compras, e, a avaliar pela divergência do estrabismo e todo o semblante, muito provavelmente teria uma limitação cerebral. E foi quando ela o chamou para que desse opinião sobre um artigo, 
Oh, amor,
que senti o coração transbordante, agora num aperto doloroso. 
Porque não existe um deus capaz de seleccionar sem cometer injustiças atrozes, estou hoje a perguntar-me pelo destino deste amor, se a mão implacável, o dedo aleatório, tiver o capricho de - através daquela outra mão que dita quem vai e quem fica -, apontar na direcção de um destes dois seres humanos.

16/03/2020

A pessoa humana metida na bolha

Estou a fazer um esforço de reclusão. Qualquer dia imponho-me uma farda, um horário rigoroso de alvorada e recolhimento, autoflagelo-me caso prevarique (a mera chegada à porta do elevador, por exemplo) e crio mesmo uma solitária, para me castigar de atitudes mais rebeldes.
No entanto, anteontem fui correr para o Campo Grande (sim, eu era aquela gira dos calções pretos - comprei-os há dias e era urgente estreá-los, ainda que chovessem gatos e cães, como na Inglaterra). Ontem fui caminhar uns poucos quilómetros, dei uma volta ao Estádio Universitário (sim, eu era aquela gira) pelo perímetro mais alargado, tudo em nome do anti-ensandecimento. Não é que eu seja uma pessoa muito arruaceira, mas a ideia da clausura forçada desinquieta-me. Tenho planos para me entreter, alguns deles sem piada nenhuma a partir do dia em que dê carta de alforria à minha empregada (tipo amanhã) (é que acho que ela não pode trabalhar a partir de casa) e passe a ter que cumprir as tarefas domésticas quase todas, qual cigarra. Tenho a casa reduzida a quatro elementos (eu sou um deles), uma porque foi de Erasmus e não quer voltar agora (apesar de estar confinada a uma residência universitária e com a faculdade fechada; outra porque já foi fazer ninho para outras paragens), dois ainda a trabalhar, um a ter aulas online, isto à conclusão: quem é o sortudo do designated shopper, quem é? Ah, pois, então se posso encostar a barriga ao fogão e as ancas à vassoura, também posso ser eu a mula de carga vacuda que vai às compras, caso isto dê para o estado de emergência (que vai dar). 
De resto, tenho mantido as minhas rotinas higiénicas e estéticas, embora verifique que, ao terceiro dia, o povo já está a desmazelar-se, alinhando no fato de treino em alternativa ao pijaminha. Qualquer dia não se barbeiam nem se depilam. E não se lavam. Tipo Robinson Crusoe.
O ginásio fechou, portanto só me resta ir buscar o colchão à arrecadação, os alteres e as caneleiras e ir para a varanda gemer, isto assim que o tempo permita, que só me falta apanhar uma constipação só para chegar ao Verão fit-not-fat. Pronto, e se, por um absurdo que ainda não está fora de questão, este ano não puder pôr os dois pezinhos na areia, hei-de poder pôr na varanda. Nem que vá buscar a caixa de areia da gata, mas isto assim é que não fica. E tudo menos flácida.
Vá, pronto, também vou ler mais e ver mais filmes. Calma.

06/03/2020

As minhas doenças e eu

A cidade está numa paz podre de dar gosto. 
Obrigações relacionadas com um pecado capital levaram-me ontem e hoje à grande superfície do shopping, onde inacreditavelmente houve lugar para a viatura, elevador vazio, corredores praticamente sem pessoas. Parece Agosto, mas sem emigrantes. Significa que o povo em geral, a chunga em particular, teme-se do vírus e meteu tudo para a toca, aquela mesmo de onde nunca deviam ter saído. Na loja que responde pelo nome de uma erva de cheiro, comunicou-me a menina que me atendeu que têm uma nova colecção, da Barbie, comemorativa do dia da mulher. Esclareceu-me, ignorando o meu pasmo por estar a tentar vender a uma pessoa da minha idade gangas a dizer Barbie a cada 5 centímetros e t-shirts cheias de glitters, que "A Barbie simboliza a mulher que pode ser tudo o que ela quiser", e eu, que possuo um destrava-línguas incorporado desde o nascimento, respondi "Designadamente de plástico", porque já me bailava aquela melodia no cérebro.
De resto, e como sou não só a pessoa mais afortunada que conheço, como também a mais azarada, fui acometida por estes dias de um ataque de rinite/sinusite derivados aos plátanos, que tem sido um verdadeiro sucesso aquando em público, uma vez que me dão ataques de tosse quando e onde menos convém, originando olhares panicosos, uns de soslaio, outros mesmo penetrantes, eu só à espera que alguém me atire uma máscara daquelas que se compram na loja do chinês, oh, ironia. Acresce que fui educada a tossir para a mão (e não para o cotovelo, como alguém aconselhou), de modos que a seguir fico sem saber onde meter a mão tossida, pois parece que o germe pode ficar ali alojado e nem sempre tenho logo ali um frasco de lixívia/álcool/whisky à mão, passe o pleonasmo, tão pouco posso pegar-lhe fogo. Sei, no entanto, que gozo da grande fortuna de não frequentar transportes públicos, hipótese que, a considerar, já me teria valido uma sova linchadeira, tamanho é o histerismo mal contido das pessoas humanas que ainda não fizeram o raciocínio de que há outras que são, simplesmente, alérgicas aos plátanos. Mas esta é uma população que desconhece o conceito de água, sabão, desodorizante e roupa lavada, como explicar-lhes que era lavarem as mãos quando vão fazer chichi e cocó, rigorosamente sempre, e não só em épocas virais?
Não estou apta para desenvolver uma hipocondria desde o dia, ainda recente, em que vim a saber ter tido meningite na primeira infância. Depois fiz a lista mental de todas as doenças que tive - difteria, papeira, rubéola, toxoplasmose, varicela, sarampo, e é óbvio que também hei-de ter tido figuras afins, tipo rogéola, a 5.ª doença e outras escarlatinas (e ainda vou descobrir mais umas quantas até ao juízo final) (e vamos fazer tábua rasa de quinhentas otites, amigdalites e talvez duzentas lombrigas) -, e cheguei à conclusão de que é altamente improvável - embora não impossível, é certo - que um euromilhões saia duas vezes à mesma pessoa. É claro que o ter tomado conhecimento da minha meningite me deu a volta à cabeça (ou às meninges, se quisermos ser mais rigorosos), mas compreendo que me tenha sido poupada a informação: naquele tempo, quem tinha uma dessas, ou ficava tolinho ou morria, e, pelos vistos, eu não morri. (Partindo dessa premissa, requeri ao hospital que me atendeu um relatório médico da ocasião, mas recebi uma carta registada a notificar-me de que o meu registo daquela época já foi destruído - obviamente uma carta-tipo, parecem as respostas às minhas reclamações no livro do consumidor. Ou seja, eu sou claramente uma vítima de queima de arquivos. Vá que não me silenciaram, os mafiosos.) Hoje em dia, ou se morre ou se foi vacinado, portanto deixou de haver tolinhos com a desculpa-caldeirão, onde agora cabem todos os meus lapsos. Por exemplo, ontem, farta da tosse, meti-me num banho turco, apesar da minha hipertensão e de todas as envolvências vasculares ao nível dos membros inferiores. Acontece que decidi arriscar rebentar-me toda para ali, a bem de acabar com este mal. Foi uma experiência como outra qualquer, em que fiquei a saber o que sentiria o franguinho quando vai a assar, caso estivesse vivo. Mas confesso que os dois primeiros minutos dos dez que me aguentei lá dentro foram uma descida aos infernos onde um dia hei-de residir de vez, que culminaram numa exclamação desabafada, "Eu tive meningite, portanto eu posso", perante a estupefacção (e rápida saída. Maricas) dos ali presentes. Um alívio, o banho turco só para mim, parecia o shopping hoje pelas 11 da madrugada.