05/03/2023

Cá na aldeia

Os cães ladram e a caravana não passa. Estão metidos em casas e em pátios mais pequenos que quartos. Há gatos às janelas nesta espécie de aldeia para onde vim morar, enquanto a minha casa se maquilha, embelezando-se. Quero-a azul, dois quartos terão que ficar brancos porque o meu pé fincou mais fraco do que o de dois deles. Aqui há limoeiros carregados do fruto, que me impulsionam a meter um em cada bolso, pois é com dois limões que faço a limonada que bebo. Mas prefiro comprar na loja mais próxima, que é também muito longínqua, e vende tudo ao preço do ouro porque fica do lado de lá do muro que diz “amo-te”, e carregar ladeira acima quatrocentos metros do fruto que facilmente tomaria como meu na passagem por uma das árvores. Simplesmente, estou agrilhoada a um código de conduta que nunca vi escrito em lado nenhum. Há muitas mulheres velhas, que ralham aos cães e às crianças com o mesmo modo. “Cala-te”, “Ponho-te na rua”, enquanto descascam batatas para um alguidar. Estas não fazem tricô. Tenho um vizinho na porta ao lado que passa os dias a arranjar o motor de um carro com a idade dele, acelerando aquilo com o cigarro no canto da boca. O espaço entre a porta e o portão tanto pode chamar-se pátio como logradouro, ou até pérgola. Eu chamo-lhe deck, porque só lhe falta a piscina, e esse é um pormenor de somenos. Há um melro que se tomou de estimação pela cerca de palhas, e passa os dias a cantar ali pousado. Na primeira semana, era um zangão enorme, depois uma osga, agora o pássaro. Vai-se a ver e é sempre o mesmo animal, que se transmuta. As gatas estão felizes e fazem ginástica todo o dia. Às vezes vão lá fora, parecem miúdos no recreio. A minha cama é dura como uma rocha, mas eu durmo nela como uma pedra. As camas moles fazem-me doer as costas, que nunca me doeram. A casa é fria como um frigorífico, qualquer ida à casa-de-banho a meio da noite significa atravessar um corredor de quinze metros a tiritar. São trinta metros até regressar à rocha aquecida pelo meu corpo. Todos os radiadores estão ligados vinte e quatro sobre vinte e quatro e, mesmo assim, aninho-me de manta, como um gato. O duche é surrealista de tão desconfortável e praticamente impossível de tomar. Nada funciona a cem por cento nesta moradia camarária.

E sei que vou sentir falta disto tudo, quando a obra da minha casa acabar.