21/08/2023

Chico-espertice

Entro na farmácia do hospital convencida de que vai ser canja de galinha despachar-me num instante: Agosto, toda a gente fora, só peregrinos pelos passeios, nenhum iria ali tomar a vez de ninguém. Afinal, foi fígado. Com ossos e espinhas e nervos: sessenta pessoas à minha frente. Esquecera-me que a doença não mete férias. Mas não posso ir-me dali, que é a vontade que tenho, porque preciso mesmo daqueles comprimidos para sobreviver: são os que evitam que o cancro desate a passear pelo meu corpo. Prescrição de mínimo cinco anos, máximo dez. Se sobreviver até à última toma, já dou por ganha esta coisa, sei lá que nome lhe dar. 

Faço o que é costume fazer quando tenho muita gente à frente: conto o número de guichets, o tempo médio de atendimento de cada um e faço a divisão, para calcular quanto tempo vou esperar. São seis, um deles não tem ninguém, conta cinco. Assim à queima-roupa, não consigo fazer cálculos: entra uma mulher com uma farda de auxiliar e fica quinze minutos a conversar com a farmacêutica do guichet 3. Depois sai, a outra abandona o local de trabalho e, ao cabo de cinco minutos, ambas voltam, para conversarem mais um quarto de hora. Começo então a desconfiar que o tereréu não é sobre trabalho, mas quem sou eu? A mulher sai de lá com um saco de plástico com seis caixas de magnésio e é aí que puxo as antenas para fora, uma vez que o contador das senhas não anda para a frente (nem para trás, vá lá). Entra um homem com uma menina no carrinho, aí pelos seus cinco anos, sem qualquer espécie de incapacidade para andar. Atrás dele, uma mulher cheia de saúde, mas agarrada aos rins e com uma expressão de sofrimento bastante circunstancial. Já cá ando há demasiado tempo e vi demasiadas caras em agonia para cair na daquela. Começo a sentir as tairocas a enfiarem-se-me nos pés, revejo mentalmente a lei - crianças ao colo com menos de três anos - e já pondero ir atrás dos três para lhes dar uma breve luz jurídica, qual fada Sininho falante, quando me lembro das doutas palavras de uma das minhas orientadoras espirituais (Respire fundo e conte até dez), respiro como se tivesse acabado a maratona, conto até dez saltando os ímpares e já vou levantar-me quando aparece um rapaz com meias cirúrgicas vestidas e um par de muletas, a cabeça até ao chão, todo ele um calvário que me dá para pensar que talvez seja primo daqueles pedintes dos semáforos da Praça de Espanha e de Sete Rios, que são demasiadamente deficientes e coxos para ser verdade. E então, ao cabo de uma hora disto, percebo que os prioritários são tantos que os outros vão ficando para trás e a m. do ecrã das senhas não avança nem à paulada. Calma, Maria Linda de Blue. Vai-te informar. Boa tarde. Pode informar-me se quem tem atestado de incapacidade também é prioritário? Voz de desenho animado: Sim, sim, a senhora exibe o atestado e é atendida com a senha de prioritária. Os cinquenta e dois que ainda faltavam para a minha vez transformaram-se em dez. 

Chico-espertice? No fundo, não. Uma, foi tomar meia-hora a quem estava à espera. Outros, foram com uma criança enorme no carrinho. O outro levava meias brancas e canadianas. 

Usei o atestado. Não gosto, não quero ser definida por uma doença ("Aquela que tem cancro", como dantes "Aquela que tem quatro filhos"), mas, já que tenho que a carregar e ela me confere pequenos alívios, que carregue o diabo os outros que vão para lá de meias e coisas assim parecidas.

(Já muitas vezes ponderei ir para os hospitais, repartições de finanças, centros de saúde e outros infernos que tais, a arrastar chinelos, de bata de nylon vestida - que, como se sabe, cheira a bedum -, o cabelo com um carrapito oleoso ao alto da cabeça, desmaquilhada, sem verniz e a chuchar nos dentes, aos berros para um telemóvel assuntos da vida da Lina e do Mário, porque acho que, assim, seria mais bem tratada nesses lugares.)