09/06/2016

Bem sabia que já alguém havia vivido aquilo assim. E descrito, de forma tão melhor do que algum dia eu

Na sexta-feira à tarde perdi o meu filho.
Foi uma emoção aterrorizadora que jamais havia sentido. Quando contemplei, sentado, a praia do Guincho, vi na maré baixa centenas de banhistas, jogadores de raquetes ou futebol, e dezenas de crianças, que gritavam ou chapinhavam. Mas não vi o meu filho. Cinco minutos antes, deixara-o, com uma pá amarela, um balde do Homem-Aranha e um ancinho verde, a refazer o seu castelo de areia. 
(...)
A trinta metros, perdi o meu filho.
Quando voltei a olhar, só lá estava a pá, caída no chão, ao lado do balde e do ancinho. (...) Senti uma chicotada de angústia, como se tivesse sido picado por uma vespa no coração. (...) Enquanto andava, as coisas à minha volta iam perdendo a sua nitidez, como se uma estranha bruma nascesse na praia e me toldasse a visão.
(...)
O pânico entrou-me pelos poros, como um invasor maligno, e transformou-se em medo, nem sequer sentia o frio da água do mar do Guincho a lamber-me os pés, e apenas a minha cabeça funcionava, como um periscópio à tona, a examinar o horizonte, rodopiando à procura de uns calções laranja com flores brancas (...)
Desabou então sobre mim a consciência da situação: estava numa praia com milhares de homens e mulheres e crianças e chapéus-de-sol e toalhas, um território ocupado ao milímetro, como um campo de refugiados, só que felizes, uma multidão alegre e barulhenta que me engoliu o filho.
(...)
Tentei dominar a besta do pavor que rugia dentro de mim, ter mais força do que ela (...)
Descobri-o no horizonte, sem pá, sem balde e sem ancinho, mas de cócoras ao lado do meu amigo Salvador, os dois cavando furiosamente na areia. Olharam na minha direcção e acenaram os braços, como numa despedida, e de certa forma estavam a despedir-se da minha angústia, da minha curta-metragem de terror que acabou tão depressa como começou. Quando cheguei ao pé deles nem me passou pela cabeça repreendê-los, e fiquei de pé, a sentir a minha respiração e a batida cardíaca a acalmarem. E depois mais nada, regressou a normalidade.

Domingos Amaral, in 'Já ninguém morre de amor'

....

E também aqui, no assombroso mil — embora aquilo que vivi tenha tido muitíssimo menos gravidade.


4 comentários:

  1. Essa angústia que nos aperta o coração e a garganta, como se fosse uma garra.
    Descrição fantástica de Domingos Amaral. Palavras belíssimas do mil.

    Beijos, Linda azul :)

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    1. É tal e qual aquilo. Ficamos cegos, no mar de gente. Para o outro, o de água, até temos medo de olhar.
      O mil é nota mil.

      Beijos, querida :)

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  2. Domingos, 3 filhas e 1 filho .
    Linda também ... uhmmmm !
    Será ???
    ;)

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    1. Oi? O Amaral? Ai sim? Não, não é o pai dos meus :)

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