Pareço aquelas tontinhas da internet, que vão para as redes escrever às pessoas que já morreram.
RIP, dizem elas. Até sempre, dizem elas. Até já, dizem as tontas mais tontas. Ou amo-te. Como se os mortos as lessem.
RIP, dizem elas. Até sempre, dizem elas. Até já, dizem as tontas mais tontas. Ou amo-te. Como se os mortos as lessem.
Eu não, pai. Faço agora o que faço em tantas horas da minha vida, em todos os meus baques, leva-me o primeiro impulso a pensar: Esta, tenho que contar ao pai. Não me lembro que isso já não pode ser, porque pode: conto na mesma.
Como quando olho para a ponte nova.
Passou-se tanta coisa entretanto - ai, teria tanto para lhe contar: a internet, o 11 de Setembro, a Amália, o tsunami, os títulos do Dragão, nem saberia por onde começar -, mas aquela ponte é o monumento das minhas saudades. Diz-me ela que veria - e não vejo - os seus olhos cintilar durante a construção, e depois, de cada vez que pousassem nela, acabada. Sempre que um homem sonha, o mundo avança. Não é vermelha, não soa a Salazar nem a 25 de Abril, mas diz-me - o teu pai não volta.
Aquela ponte é gigantesca.
Esmaga-me de saudades.
Aquela ponte é gigantesca.
Esmaga-me de saudades.
Eles não sabem nem sonham.
A PIDE era o gato no jogo do gato e do rato - um constante sobressalto, livros proibidos, textos censurados, e a Guidinha, pai, a Guidinha, que o fazia rir e a mim, só de o ouvir rir. O lápis azul não pousava na Guidinha do Sttau Monteiro, que, desabridamente, escrevia crónicas anti-governo.
Era um amigo de madrugada lá em casa, escondido dois anos atrás dos cortinados de cada vez que tocava a campainha - tão giro, o Pedro, pintava os cabelos de encarnado para não ser reconhecido, e dançava sevilhanas para nos fazer rir. E saía pela noite, gato pardo e clandestino, trocando os papeis ao jogo.
Era o chiu, cala-te, rapariga!, quando eu me punha em cima do banco da cozinha, a cantar o hino nacional - na cozinha ouvia-se tudo, prédio acima, abaixo, afora, adentro - não podes cantar isso, cala-te. Começava então a versão alternativa, nozes podres, maçã reineta do meu quintal - Cala-te, rapariga.
Eram as reuniões no café, proibidas, mais que três à mesa é reunião, reunião é conspiração, conspiração é prisão, os empregados podiam ser chibos, havia bufos em todo o lado - em todo -, as paredes tinham ouvidos, e também boca e olhos, só não tinham nariz -, excepção às do Monte Carlo, às do Vá-Vá, e poucas mais, de resto, as paredes tinham uma cara inteira, feia e delatora.
Eram cortes na emissão, no rádio, na televisão, cortes a golpe na amizade e na família, a PIDE levou-o, e, às vezes, o regresso, de outro homem, outra mulher, tantos Luís de Sousa - Quem és tu? Ninguém -, livros e jornais pela sanita adentro, as sanitas de Portugal tragaram, engasgadas, um enorme espólio, feitas fogueiras da Inquisição.
Era um amigo de madrugada lá em casa, escondido dois anos atrás dos cortinados de cada vez que tocava a campainha - tão giro, o Pedro, pintava os cabelos de encarnado para não ser reconhecido, e dançava sevilhanas para nos fazer rir. E saía pela noite, gato pardo e clandestino, trocando os papeis ao jogo.
Era o chiu, cala-te, rapariga!, quando eu me punha em cima do banco da cozinha, a cantar o hino nacional - na cozinha ouvia-se tudo, prédio acima, abaixo, afora, adentro - não podes cantar isso, cala-te. Começava então a versão alternativa, nozes podres, maçã reineta do meu quintal - Cala-te, rapariga.
Eram as reuniões no café, proibidas, mais que três à mesa é reunião, reunião é conspiração, conspiração é prisão, os empregados podiam ser chibos, havia bufos em todo o lado - em todo -, as paredes tinham ouvidos, e também boca e olhos, só não tinham nariz -, excepção às do Monte Carlo, às do Vá-Vá, e poucas mais, de resto, as paredes tinham uma cara inteira, feia e delatora.
Eram cortes na emissão, no rádio, na televisão, cortes a golpe na amizade e na família, a PIDE levou-o, e, às vezes, o regresso, de outro homem, outra mulher, tantos Luís de Sousa - Quem és tu? Ninguém -, livros e jornais pela sanita adentro, as sanitas de Portugal tragaram, engasgadas, um enorme espólio, feitas fogueiras da Inquisição.
E eu não tinha nenhum vestido encarnado.
Sempre que um homem sonha, o mundo avança.
Sempre que um homem sonha, o mundo avança.
O pai sonhou, mas só acordou um mês depois de realizado o sonho. Não viu os cravos e a festa, a PIDE na ratoeira, os chaimites na rua, a nossa rua com nome novo. Nomes novos, revolução, democracia, partidos, voto, opinião. Liberdade.
Henrique, houve uma revolução, somos livres, acabou o pesadelo.
O sonho de liberdade, todo em todos os tons de vermelho, fez-se de todas as cores - e agora está, como sempre acontece às paletas de mistura, quase negro.
Eles não sabem nem sonham
o que é viver sem poder cantar, nem falar, nem escrever, nem pensar.
Têm internet, têm jornais online, têm foruns de discussão, têm redes sociais, têm blogues. Cada um escreve o que lhe vem à cabeça, ou o que nem isso. Pode-se escrever sem pensar, pai. É esta a liberdade suprema: escrever, emitir uma opinião, mesmo que destituída de raciocínio, e até impô-la, porque somos livres. Acabou a censura, que bom. Acabou o prelo, a edição de textos, o filtro.
Eles não sabem nem sonham
a quantos e a que penas custou alcançar esta ferramenta de liberdade que hoje usam como se fosse um punhal.
Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Saudades !!!
ResponderEliminarhttps://youtu.be/ti8AsJZdbDU
:) Não sei o que te responder.
EliminarSaudades, não sinto. Pelo menos, da época.
Acho é que não se pode passar uma borracha sobre o ponto histórico que representa o início de cada era.
LP,
EliminarNa 1ª leitura do post de hoje,não aparecia a 1ª parte e a referência à memória do teu Pai.
O texto começava : "Eles não sabem nem sonham.A PIDE era o gato no jogo do gato e do rato.........A quantos e a que penas custou alcançar esta ferramenta de liberdade que hoje usam como se fosse um punhal."
Daí ter-lhe dado outra interpretação .
Acho que o blogger, hoje, teve um stroke. Deve ser da chuva.
EliminarEsse parágrafo está no texto desde o início. Aliás, ele vem no seguimento do título.
Fenómenos da "natureza"... :)
Saudades do dia em si .
ResponderEliminarFui à faculdade ...e tudo fechado. Tudo para casa ,ninguém a perceber bem o "filme" , depois horas infindáveis de tv.
Foi um dia lindo que recordo cheio de saudade.
Eu não digo em que ano da escolaridade estava, para que não haja para aqui matemáticas :P
EliminarPara todos os efeitos, tenho 84 anos.
Tenho sorte, sou mais novo : 48 anos ! ;)
EliminarPois. E foste à faculdade com 7 anos :P
EliminarSobredotados ! :)
EliminarOu a liberdade de expressão levada ao limite - ou para lá do limite :D
EliminarVá-Vá ? tb fui habitué .
ResponderEliminarMonte Carlo ? tinha fama ... da pior qualidade ( bichas )
O bife do Vá-Vá...
EliminarMonte Carlo? (vou fingir que não li isso, especialmente no dia de hoje) :|
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/ExposicoesVirtuais/Alvalade/Paineis/CafeVava.jpg
EliminarQual é o problema ?
ResponderEliminarEra considerado café de engate ,lembro-me de ter ido lá e de me sentir mal !
Nada contra...mas as pessoas têm o direito de não ser incomodadas.
LP não leves a mal o que vou dizer. Gosto imenso do teu blog e sentido de humor mas, não gostei da forma como iniciaste este post.
ResponderEliminarSei que a ideia era falar do 25 Abril, contudo, não atires palavras ao ar daqueles que vão para o FB escrever sobre os que já cá não estão.
Felizmente nunca o fiz, quer dizer que nunca me morreu ninguém, todavia, compreendo aqueles que o fazem. Será talvez a forma de matar saudades, cada qual sente a dor à sua maneira.
Uns escrevem no FB, outros no Blog, pensando uns segundinhos vai quase dar ao mesmo.
Cada qual com os seus... Se isso não prejudicar ninguém mas ajudar a encontrar alguma serenidade, óptimo então!
E viva a Liberdade...de expressão!!!
Beijo
Não levo a mal, claro. Eu própria não gosto especialmente do começo do post,
EliminarA ideia era falar sobre o 25 de Abril, em forma de carta ao meu pai.
Foi uma ironia muito estúpida do destino ele ter sido um resistente anti-fascista e estar em coma quando foi o 25 de Abril.
E senti-me uma tonta a escrever uma carta a uma pessoa que já morreu. Ainda por cima, a quem nunca acreditou na vida após a morte (o parágrafo também falava nisso, mas cortei tudo).
Olha, e estou tão pouco dentro do assunto FB (por não ter) que a verdade é que apontei a crítica ao pessoal que faz murais a figuras públicas, normalmente de quem nunca ouviu falar ou de quem não conhece a obra, mas tem uma grande preocupação em ir lá pôr um RIP (de que nem conhece o significado), porque "toda a gente" vai ler.
Mas eu sou grandinha, assumo os meus lapsos - ou não tão grandinha que nem entenda este como um erro...
Viva a liberdade, sim - em todos os seus vectores!
Beijo
Um dia, visitei o Tarrafal. Era o tempo do calor, vi os buracos a que chamavam celas, os telhados de zinco que faziam de lança-chamas para dentro. Vi os buracos onde eram enterrados vivos dias a fio, para castigo sobre castigo, até que vida perdesse todo o sentido. Não, hoje não sabem, menos ainda sonham.
ResponderEliminarNão, pois não. Por isso, não estranham se ouvirem mais velhos suspirarem pelo regresso do ditador. Imaginam que ficariam do lado de cá da trincheira e nunca na ponta da baioneta dele.
EliminarLembram-me, mal comparando, os que sonham com o regresso da monarquia: nasceriam todos príncipes e princesas.
Obrigada, Xilre, pelo teu contributo - tão valioso, como sempre.