A memória, de facto, prega-nos cada partida. As duas pequenitas, que cresceram debaixo do meu nariz e eu nem vi, exactamente como as flores nos fazem, estão a um tudo-nada de pegarem num carro e saírem por aí, sem precisarem de boleia nem de companhia. As asas servem p'ra voar. E isto lembrou-me que a nossa perspectiva de todas as coisas muda, à medida que crescemos, evoluímos - há quem regrida, também, e há quem estagne - ou mudamos de lugar nas situações.
Eu era a melhor passageira da frente, copilota maravilha, antes de tirar a carta. Acompanhei, pelo menos, dois recém-encartados, que fizeram os disparates que todos os acabadinhos de tirar a carta fazem. Ia sempre descontraída e bem disposta, mas pode ter contribuído para isso o facto de ter 17 anos.
Foi há quinhentos, para aí.
O nosso pai entregou-lhe, para treinar, o carro mais improvável que existia à face da Terra: um Ford Cortina XL, bege. Sem buzina. E era ver-nos avenida dos Estados Unidos acima, avenida de Roma afora, ela com 18 e eu com 17 anos, a abrasar no Cortina, Ih, agora, um cruzamento - Acelera! - E aquele peão, não vai sair da estrada?, copilota de vidro aberto - Saia da frente! - Olha ali, vai ficar vermelho! - Mas agora vou lançada...
E chegávamos ao nosso destino, cheias de nervos, até suadas.
Uma vez, demos voltas e mais voltas em Alvalade, e nada de encontrar lugar para estacionar a grande banheira. Até que eu avistei um lugar, paralelo entre dois carros, que tinha a exacta medida do nosso carro. Exacta, disse bem. Sempre fui mestra em medições a olho. Devia ter ido para a construção civil.
O que se passou a seguir, só os nervos e o cansaço conseguem explicar.
Eu lembrei-me de lhe dizer: Se acelerares, o carro entra na perfeição naquele lugar.
Só me lembro de a ter ouvido perguntar: Achas?
E dei-lhe mais força à intenção. Que grande ideia a minha. Acho.
E ela acelerou. E enfiou o carro no lugar, que era à justa medida da grande banheira.
Todo raspado, de um lado e do outro. Os outros dois, raspados de uma ponta à outra.
E ela: Acho que raspei.
E eu: Eu também acho. - Isto tudo, ao ralenti. Parecia um filme.
Problema seguinte: Olha lá, e como é que, agora, saímos do carro?
O carro não tinha tecto de abrir, caso contrário teríamos, certamente, saído por cima e ido à nossa vidinha. Mas estávamos encurraladas.
Vou tirar daqui o carro e tentar arranjar outro lugar.
Tão tolas. Ainda achávamos que aquilo era um lugar. A juventude é tão estranha. Ainda bem que acaba depressa.
Cada vez que dava um nadinha de aceleração ao carro, os outros dois abanavam. E o ruído era tão denunciador.
E agora, o que é que eu faço? - dizia-me ela, transpirada em bica.
Não sei. Agora, acho que só sais como entraste. Aceleras isto, de repente, e não páras de acelerar, até tirares daqui o carro.
E foi assim que, para sempre, ficou baptizada uma sui generis forma de estacionar em Lisboa como o método do aconchego.
Aquilo correu tão mal. As minhas memórias são tortuosas.
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