27/06/2015

O ancinho não serve para nada

Estava eu outro dia a meditar, e a dizer para com os meus botões, fecho éclair, colchetes e aviamentos vários de retrosaria, mas sem cofiar o bigode, só porque não o tenho, senão até isso, que o ancinho da praia é aquele brinquedo inútil que se vende há décadas, remonta à minha meninice — que, convenhamos, ocorreu há extremamente —, a criança que é criança não lhe liga nenhuma, porque, efectivamente, e parafraseando-me, ele não serve para nada. Não me servia para nada a mim, nem serve a criança nenhuma, porque ninguém vai para a praia arar a areia, nem abrir estradas às riscas com ele, nem rasgar sulcos em construção nenhuma. Aquilo serve só para encher o kit, mas acredito que ai do kit que não traga ancinho, por uma questão de princípio e tradição.  Lembro-me claramente de escavar na areia até encontrar ouro, ora usando a pá, ora usando as mãos — e ainda tenho tão nítida a sensação dos grãos dentro das unhas, quando já precisavam de corte — ou com uma concha grande. O mar chamava por mim, com aquela voz melodiosa de sereia, todo de prata, no preciso momento em que estava prestes a encontrar o ouro, e só pode ser por isso que nunca o encontrei mesmo a sério. 

Estava eu outro dia a recordar uma época longínqua da minha vida, em que levava um mega-saco para a praia, com milhares de brinquedos de areia, vários baldes, pás, ancinhos, forminhas, noras e até um camião. Chegávamos ao areal, espalhávamos aquilo à beira-mar e, rapidamente, se fazia ali o cantinho das construções, uma coisa muito Movimento da Escola Moderna, mas na praia. Aproximavam-se dois, três, dez miúdos, que traziam os seus brinquedos e participavam todos numa construção — mais os rapazes — ou a fazer forminhas — mais as meninas. Ao fim da tarde, recolhidos os brinquedos para o mega-saco, sobravam sempre ancinhos, que não eram de ninguém. Esquecidos, rejeitados, lá me iam parar ao mega-saco que, ao cabo de alguns anos disto, tinha mais ancinhos do que qualquer outra peça.

Estava eu hoje estendida ao sol, e, à minha frente, um casal com uma menina de cinco anos. Chamou-me a atenção, porque não me escapa aos olhos criança nenhuma, mas aquela matava-me saudades de uma outra: ainda rechonchuda de bebé, já torneada de rapariguinha, o cabelinho escuro, encaracolado, preso num rabo de cavalo. O pai e a mãe, completamente indiferentes — eu não disse ocupados nem distraídos, disse indiferentes —, sentados à sombra, sem livro, sem jornal, sem mirar o horizonte, sem uma palavra trocada. E ela, sentada na areia, o balde à frente das pernas, com areia e água lá dentro, o ancinho numa mão, a outra a mergulhar no balde — e a beber água do mar, a comer areia. Silenciosa, entretida. Completamente sozinha.

Estava eu a ponderar a possibilidade de ir avisar os pais de que, se calhar, areia e água do mar não são a melhor coisa para se comer, quando o pai, acordado sabe o diabo de que pensamentos tortuosos, lhe começou a ralhar. Não o ouvi gritar, não o vi tocar na criança, sequer segurar-lhe um pulso. Ralhou, ralhando, em tom de raiva, os olhos a chispar, os lábios desaparecidos, a têmpora a latejar, Estou farto de ti! E ela — cinco anos — encolhida como um bichinho-da-conta, nem um ai, nem uma lágrima, à espera, perfeitamente consciente e habituada ao que viria a seguir. E esse a seguir, estou certa, só não veio porque, entretanto, várias pessoas pararam de viver para (também estou tão certa), em caso de necessidade, poderem evitar a violência maior, física, que ele dava a adivinhar. Mas o homem-pai estava desvairado de tanta fúria, e foi quando pegou no ancinho, cor-de-rosa, e o partiu em dois. Enquanto se deslocava para o ir pôr ao caixote do lixo — extremamente civilizado, excessivamente cruel —, a filha, desesperada por consolo para as lágrimas que, finalmente, pôde deixar cair, teve que abraçar a mãe pelo pescoço, que, seca, nem com um braço lhe rodeou o corpinho, quanto mais com os dois.

Estou hoje a pensar na minha vida, e a achar que devo ser uma pessoa muito anormal.

De facto, o ancinho não serve para nada.



6 comentários:

  1. Um ancinho serve, pelos vistos, para mostrar que se pode tudo a quem nada pode. Lamento que não se tenha partido de forma a entrar carne dentro desse... ia chamar-lhe homem mas acho melhor chamar-lhe energúmeno.

    Um beijo, LP.

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    1. Isso é que tinha sido. E, pela expectativa que o sarnento criou nas pessoas que o rodeavam, ninguém ia mover uma palha para o ajudar.

      Um beijo também para ti, Maria.

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  2. Fonix, for real? Alguem disse mm a um filho, de 5 anos (tivesse a idade q tivesse, é certo) tou farto de ti??!
    Mas anda tudo doido?
    Dizer q se está farto de uma birra, de estar farto de avisar q... Ainda vá, mas da filha?

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    1. Eu só me pergunto é o que é que estas pessoas tinham projectado quando decidiram ter um filho.
      Também me pergunto que desculpas têm para serem uns psicopatas.
      E pergunto-me ainda por que é que não chamei a polícia e denunciei a violência doméstica. Mas a esta, respondo-me: para evitar um mal maior àquela criança, em detrimento de um mal já suficientemente grande.

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    2. Pois, é por ai é. Mas devia haver assim una espécie de citizens arrest para estas coisas devia :) (estas e outras)

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    3. Eu percebo cada vez melhor as pessoas que fazem justiça pelas suas próprias mãos...
      :)

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