02/06/2015

Feiras

Não consigo esquecer-me daquelas mãos pequenas e gorduchas, de dedos curtos e afiados, como lápis quando exageramos no afiador e os pomos numa lança de índio, o rosto redondo como uma lua cheia prestes a rebentar, onde dois olhos muito pretos, miudinhos, se moviam afanosamente, tentando acompanhar um meio-sorriso global e globalmente sem significado, a não ser, talvez, também uma meia-súplica, compra. Vinha munido de um molho de catálogos coloridos, travou-me os passos com o corpanzil opulento e a cara plástica, falou-me de vantagens e oportunidades, subentendeu-me privilégios, disse sem qualquer custo, sem obrigatoriedade, falou em aquisição, em entrega imediata, em obras, enquanto estendia uma folha de cartolina grossa, brilhante, dobrada em três — tão igual aos menus da rua das Portas de Santo Antão, incorporados nos empregados de camisa branca, Menina, quer almoçar?, às três da tarde, Então lanchar uns caracóis, oh, senhor, eu lá lancho caracóis às três da tarde, só se forem os do meu cabelo. — Mostrou-me imagens de obras que podiam ser pratos de bife com ovo a cavalo ou omelete de fiambre, e que eu, básica, basicamente, desconheço, mas que, a avaliar pelo discurso ininterrupto, me seriam entregues por muito menos de metade do seu valor — e prosseguia, sem alguma vez proferir as palavras compra, venda, preço e livro. E, absurdo, não me falou de Eça.
     - Isso que está a tentar fazer é uma venda — disse-lhe a burgessa que me habita a espaços, retomando a marcha, ignorante daquelas obras, semi-analfabeta, rampa acima, rumo à literacia e ao saco das pipocas, que Feira é feira e só faltam os carrinhos de choques e o carrossel para ser absolutamente perfeita — e lembrar, matando de morte fulminante, as saudades da Popular, enxameada de miudagem dos liceus no último dia de aulas, livros arrumados, há tão pouco tempo e tantos séculos, que dessa já só reza um esqueleto esquecido nas avenidas.

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