Deixem-me que vos relate as últimas vinte e quatro horas da minha vida. Eu preciso. Este buraco é meu, meto-me nele quando quiser, a espernear o que me apetecer. Para vocês, existe sempre a possibilidade de mudarem de canal. Mas eu fico aqui, no meu guichet, a desabafar.
Ainda estou nos cascos. A tentar descomprimir. Só lamento não ter uns ténis de corrida (tenho de dança, dois de ginástica, e de andar a armar que vou derreter a celulite — das outras, que eu não uso isso. Querias), que hoje já ninguém me agarrava de volta, a não ser lá para a meia-noite, de pés inchados e um téni solto, à laia de Cinderela da Bobadela.
(Por falar nisso, qual é o singular de ténis? E de Paez? Bom, não interessa.)
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Ontem ingressei (hah) num trabalho novo. Não sei se já ficou aqui claro o suficiente que a minha mãe, sendo psiquiatra, nos deu a conhecer uma panóplia infindável de exemplos práticos de gente muito doida. Salvo raras e honrosas excepções, onde, se calhar, me incluo, consigo fazer um diagnóstico a um chanfrado só de lhe tacar o olho. Vá, e assustem-se: também de lhe ler os textos. E sim, há por aí muitos mais à solta do que nós, ou melhor, vós imaginais.
A mim calhou-me um chefe peculiar.
Eu já trabalhei para muito maluco, que aquilo de ser chefe deve bater-lhes mal, mas, como este, jamais. Também, foram só vinte e duas horas. Hoje despedi-me. Prefiro morrer de fome. Calem-se as mimimis que ah, isso é porque não sabes o que é ter fome. Sei sim senhora, era ouvirem o meu estômago aí pelas 11 da manhã e já iam ver. Parece que tenho cá dentro um leão a devorar-me as entranhas.
Comecei a aperceber-me de que qualquer coisa estava muito errada quando ele me chamou para me dar instruções acerca do posicionamento dos objectos na sala de reuniões. Aquilo tem duas mesas quadradas, cada uma com um desenho na madeira, que forma uns vértices. Então, eu tinha que garantir que os dois cinzeiros ficavam precisamente em cima dos vértices, e equidistantes um do outro. E que as cadeiras ficavam alinhadas, com os braços encostados às mesas, e também equidistantes umas das outras. E que as pastas, postas em cima de um aparador, ficavam equidistantes umas das outras, e perfeitamente alinhadas com a parede e os cantos do móvel, em perfeita esquadria. Depois levou-me para a casa-de-banho (mau), e disse-me que a saboneteira, quadrada, tinha que estar alinhada com a parede e o espelho, sendo que as margens entre uma e outro tinham que ser rigorosamente iguais. E que o tampo da sanita tinha que estar baixado. E o papel higiénico enrolado. E a torneira do lavatório completamente posicionada ao meio. E não podia haver um pingo de água, nem na torneira, nem no espelho. Nem nenhum pingo de chichi no chão (achei melhor não perguntar pelo cocó, aquele que fica esparramado pela rampa de loiça abaixo, mas acho que os clientes dele se devem borrar nas calças e nunca chegam a fazer nada de jeito naquele monumento à limpeza e à arrumação simétrica). Ora, eu não fui contratada para empregada das limpezas. E o recado era: se aparecer alguma coisa destas fora do lugar, por um milímetro que seja, és tu quem limpas, imediatamente antes de te torturar com requintes de malvadez. Mas alto!, a minha mãe não me andou a criar para isto.
Uma pessoa tinha uma aflição para fazer chichi e tinha que descer a uma cave, para aí com uns quinze degraus e zero patamar de segurança, arriscava-se a partir ali o pescoço só para dar uma mixadela, depois tinha que ligar quatro interruptores diferentes até alcançar a sanita, já quase com a bexiga aliviada nas calças, aí arriscando-se a electrocutar-se pela união dos factores urina + corrente eléctrica.
Nesta altura, já eu lhe tinha feito o diagnóstico com uma perna (das dele) às costas: evidentemente, um granda TOC. Vários TOCs juntos, mais concretamente.
De repente, tudo eram rituais: a posição dos agrafos, a forma como o telefone tinha que estar posicionado na mesa (em linha recta com o vidro), o quadro da parede que tinha que se endireitar de cada vez que o metro passa (386.957 vezes por hora), a máquina do café que é só para os clientes (e, a mim, quem me tira a droga, põe-me neném sem chupeta, Romeu sem Julieta, mas bricamos ou quê?), as portas todas fechadas de cada vez que alguém tocava à campainha (outras 386.977 vezes por dia) e mais mil e uma pintelhices que não lembram ao marreco, quanto mais ao menino Jesus. O homem vive obcecado com o caos, perseguido pelo caos, e eu espero mesmo que o caos o alcance e lhe faça conhecer o gozo pleno, metaforica ou literalmente falando.
Cansei. Cansei de ser sexy. Cansei de dar para peditórios destes. Nem aqueci a cadeira. Distratou-me, vesti o meu casaco, muito bem abotoado, rodei os saltos e ala, Vou-me embora. Só faltou escrever um bilhetinho daqueles, Minha sinhôra num aguemto mais voumimbóra.
Ele, ficou indiferente. Eu, fiquei diferente: muito mais aliviada — e não da tripa (mas caguei nele na mesma).
(Devia ter-lhe pregado uns cacos naquele quadro dos girassóis, que muda dois milímetros de lugar de cada vez que o metro passa.)
(Hoje vi lá isto num papel, e foi um dos motivos que me levou a fugir daquele lugar. Vá, e chiu, que não é violação do sigilo profissional, que esta empresa existe mesmo.)
Vou mas é dormir, que esta noite a passei em escuro, só cus nervos.
Pensei que toda a gente das imediações de Lisboa sabia que segundo os alfacinhas que povoam a dita cidade, o singular de ténis é téni (sim téni como o diminutivo amoroso daquele verme que pessoas que querem dizer mal dele tratam pelo nome comum, ténia) :p
ResponderEliminarO resto... eu acho que o senhor deve estar numa fase menos boa da vida (daquelas que parecem não ter fim e põem as pessoas azedas).... ou isso ou tem lá em casa uma mulher com a mania das organizações ao milimetro que lhe chateia tanto o juízo, que ele agora até tem pesadelos com isso :p
Acho que nem tem singular :)
EliminarO senhor tem vários distúrbios associados. Eu só descrevi uma ínfima parte. O mais grave de todos é uma gigantesca falta de educação, e isso não há psiquiatra nem lítio que trate.
Pesadelos tenho eu :P
LB ,
ResponderEliminarÉ verdade? Ou estás a dar bailarico ao pessoal ? Vou consultar o Anónimo .😩
É cada tiro ...
A minha total solidariedade !
Beijo,
José
Pura e crua, para não ser nua e dura.
EliminarObrigada, José.
Beijo
E o singular de lapis? E de sandes? :P
ResponderEliminarLápi e sande :P
EliminarTu nem me fales em lápis, que o homem não pode ver um lápi (:P) pousado na mesa, que tem logo que o desviar 2 milímetros.
HAHAHAHAHA
ResponderEliminarPá, podia ser pior...
(pode sempre ser pior, na verdade!)
...mas isso não era um chefe, era o Jack Nicholson em "Melhor é impossível"!
LOOOOOOOOOOOOOOL
:)
Podia sempre ser pior, bem dizes tu, e diz a minha companheira Sister V. Podia partir os dentes da frente nas escadas da casa-de-banho.
EliminarIgual! :D
:)
Medo! Eu também não ficaria, por vezes, também me confundem aqui no trabalho com a senhora da limpeza mas eu nem me importo. Até sabe bem largar os números e a papelada e dar largas à imaginação atracada a uma esfregona ;) Daí a ter de ser escrava das obsessões de alguém vai um passo muito grande.
ResponderEliminarEsse senhor sofre de um distúrbio grave de compulsão/obsessão ou algo do género, fizeste bem em "fugir".
Já essa empresa, digo-te já que tê-la culta não é para todos :)
Be, esta pessoa vai acabar metida numa camisa de forças (espero que com gravata incorporada), sob pena de se arranhar todo quando descobrir um risco novo na mesa da sala de reuniões.
EliminarA mim não me caíam os parentes na lama por limpar chichi. Mas ele não soube pedir com jeitinho. E eu sou sensível... :)
Do melhor. Em sendo culta, pelo menos não deve dizer asneiras :D
Não devias ter saído sem :
ResponderEliminarEntornar os clips em cima da secretária
Rodar todas as cadeiras da sala de reuniões
Atirar com um jacto de água para o espelho e chão da casa de banho
Deixar a máquina de café a trabalhar
Enfim, deixando de parte estas palermices (mas que sabem TÃO bem), acho que fizeste bem, ao fim de uns meses estavas um caco!
Boa sorte
Sabes por que é que não o fiz? Porque quem ficava a limpar era a minha colega, grávida e queridíssima.
EliminarO homem ia pôr-me a babar na gravata (dele!).
Obrigada :)
Isso aconteceu comigo, mas eu não me fui embora. Engoli o orgulho de ter saído de uma redoma onde todos me adoravam, e me ter enfiado no buraco mais escuro do planeta. O Rule of Law.
ResponderEliminarEu não tenho hipótese alguma de aguentar um esquema daqueles. Nem que ele me pagasse o dobro do que ia pagar. No meu caso, não se trata de orgulho. É falta de estofo, mesmo.
EliminarNão é falta de estofo, é personalidade. Eu é que sou uma fraca galinha. Tenho sempre imensa fé que as pessoas mudam.
EliminarJá eu, leio isso ao contrário. You got guts, girl. Já eu, sou uma ameba proteus: ao primeiro grito, nunca mais me vêem os dentes. É que não gosto.
Eliminaropá e eu que não me canso de ler os teus textos!
ResponderEliminar:) Obrigada.
EliminarEste ficou enorme, mas muito ficou por contar. Foram as 22 horas mais weird da minha vida. Que manicómio (com um único louco, a valer por cem)!