Quando eu era miúda, já noutro século e milénio, havia dois tipos de crianças: as crianças espertas e as crianças burras. Assim como havia miúdos loiros e miúdos morenos, o gordo da turma, a menina das trancinhas, a das sardas, a mal-cheirosa, o caixa-de-óculos, o génio e a graxista. Eu enquadrava-me no papel da totó por ser a mais nova da turma e tão tímida que, para me arrancarem uma palavra, quase tinham que me ameaçar com uma moca de Rio Maior. Depois, no recreio, soltava a besta e transfigurava-me num rapaz imparável até tocar outra vez a campainha e fazer justiça aos kilts com meias até aos joelhos, agora completamente esfolados (e as palmas das mãos, oh as palmas das mãos a arder...). Eram papeis muito bem definidos, ninguém tinha dúvidas quanto às capacidades intelectuais de ninguém. Uns sabiam ler, outros não. Uns sabiam fazer contas, outros não. E ninguém ficou traumatizado nem achincalhado porque o João Pedro se fez neurocirurgião e o Luís Manuel se tornou instrutor de condução. Hoje em dia, não. Há todo um leque de pessoas que as escolas albergam que ou já entram com um diagnóstico de défice de atenção, ou adquirem-no - os psicólogos passam atestados e os pais pagam por eles - mal a coisa lhes começa a correr mal lá dentro. Isso dá-lhes acesso a um "currículo alternativo", o que quer dizer que passam a gozar de benevolência nas avaliações, ou seja, que transitam de ano para ano com uma facilidade relativa, por comparação com aqueles que não beneficiam do tal currículo e que têm a infelicidade de ser dotados de inteligências normais, não lhes restando outro remédio senão trabalhar para obter os mesmos resultados. Tudo isto se passa com a condescendência das escolas, das direcções regionais e, no fim da linha, das professoras (sempre no feminino, já que o universo masculino é quase residual, em todos os graus de ensino, excepção feita ao superior, mas não é desse que estou para aqui a falar agora). Que, maioritariamente, entraram num registo de tômacagar, já que elas próprias acedem à profissão chateadas, contrariadas e mal preparadas. Portanto, apresentam-lhes um aluno que é o coitado-do-filho-da-bêbeda-precisa-de-mais-atenção e elas nem se questionam, adiante com a burra. Pode ser só um miúdo que é estúpido, que não quer trabalhar e nunca vai trabalhar na vida toda, que elas só têm uma de duas atitudes: ou abraçam a causa e até exageram na dose, fazendo do menino que é um cancro dentro da sala de aula um ai-jesus, ou então ignoram-no, quando até podem estar a ignorar um caso daqueles que, com um pouco mais de atenção, dava um diamante delapidado. O que é pena é que pouca gente ainda tenha percebido que sempre haverá neurocirurgiões e instrutores de condução. Mas anda-se há décadas, neste sistema de ensino que cá temos, a achar que todos vão acabar em neurocirurgia. Porque não se pode chamar os bois pelos nomes e não se pode assumir sem dramas que há miúdos espertos e há miúdos burros, como sempre houve. Assim como há miúdos de olhos azuis e miúdos de olhos pretos. Ninguém os quer segregar, só não se pode querer obrigar uma pessoa anã a saltar em comprimento ao lado de uma pessoa com 1,90 metros. O que se devia era acabar de uma vez por todas com a demagogia estúpida de nivelar por baixo, para não traumatizar os "menos capazes", esquecendo que os outros, os "mais capazes" também podem ficar traumatizados com um sistema educativo que não os apoia, antes os força a marcar passo e a perder tempo.
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