Sentámo-nos à mesma mesa, e ali fiquei a vê-lo, demasiado gordo, os olhos a saltarem para fora das órbitas, a dar a refeição à boca do amigo, preso a uma cadeira de rodas há mais de vinte anos. Garfada atrás de garfada de uma pizza cheia de cebola, Agora vais beber cerveja, e o Gonçalo — assim se chama o amigo dele —, já incapaz de emitir qualquer som, de sorriso fácil e quase constante em vez de palavras, que sim, que sim com a cabeça, devia ser Dá cá a cerveja.
Estamos todos na fase em que se instalam as mazelas da passagem do tempo: rugas, papos, e também maleitas chatas, umas piores, outras assim-assim. É agora que uma má genética, conjugada com não melhores hábitos, dá mostras das suas irreversíveis capacidades destrutivas. Assim lhe calhou na má sorte uma afecção da tiróide, que, de entre outras "coisas", faz com que os globos oculares se tornem proeminentes e ameacem sair do encaixe da caveira a todo o momento. E só não literalmente porque se submeteu há pouco a uma cirurgia, que, segundo lhe profeciou o médico, há-de reverter o processo. Para já, não estão à vista alterações. Continua a comer desalmadamente, ele que nunca foi magro, mas seria o mesmo homem com menos quarenta e cinco quilos. Também nunca foi bonito, mas fazia sucesso entre as raparigas, atencioso e pinga-amores que era. Namorou duas mãos cheias delas, casou com uma das mais bonitas que algum dia vi.
Falamos de Verão, levamos a conversa até à praia, enterramos as palavras, como pés, na areia. Lembro-me de dizer que, ao pino do calor, a areia não está a menos de cinquenta graus, o que faz com que seja insuportável andar sobre ela sem calçado. É então que ele, que apenas responde ao "assunto" areia quente, diz esta coisa extraordinária:
- Quando o Gonçalo ainda estava de muletas, eu levava-o às costas, preso pelos braços nos meus ombros, até à praia. Deve ser verdade o que tu dizes, porque houve um dia em que, naquele percurso, ia a sentir os pés mais quentes do que o costume, e, quando o pousei na toalha, é que vi que tinha ficado sem pele nas duas plantas dos pés.
Ficaram então tão bonitos, os olhos dele, iluminados com as cores da amizade feita amor — mesmo assim, saídos das órbitas, mesmo naquela cara de corpo gordíssimo.
Linda Blue, tenho amizades que já duram e mantenho há bem mais de vinte cinco anos [dos dois géneros: masculino e feminino]...a mais antiga delas [tão velhota quanto eu e ela :)] vem da infância ali pelos 8/9 anos de idade e que nos transformou depois de crescidinhas em Comadres :)
ResponderEliminarHá laços de amizade que são para a vida e amigos que são como se fossem de sangue, família -- e é desta forma que interpreto, o que aqui escreveste, sobre a relação pura e verdadeira entre o Gonçalo e o ... tão bonita!
Olha, cá estou eu, mais uma vez a desejar-te, Bom, neste caso, Domingo! :)
Bjs
Também eu, Té, tenho uma amiga tão velhota quanto nós :) e desde os nossos 11 anos. Só não foi logo aos 10 porque embirrámos uma com a outra durante um ano :)
EliminarE somos bicomadres! :)
Mas assim como o Ricardo com o Gonçalo, não sei se teria algum(a). Felizmente, não preciso...
Bom resto de domingo :)
Beijinhos