(Eu sou dada a estes questionários existenciais.)
Faz uma pausa na compulsão?
Mente na mesma, permitindo que toda a gente lhe chame mentiroso, por um só dia no ano?
Só diz verdades-verdadinhas, verdades como punhos, verdades absolutas, verdades daquelas que só estão no fundo de uma garrafa ou na boca de uma criança?
Ressalva prévia, tipo prólogo das minhas coisinhas, para dizer que eu gosto de gente imaginativa, de gente viva, de gente delirante. Pode até ser um pouco louca. Mas também gosto que conheça os seus próprios limites e os meus, e saiba distinguir a realidade da ficção — mesmo, e principalmente, aquela que é sua obra criativa —, o que viveu do que sonhou à noite, no vale dos trapos em que se enrola quando cai a noite na cidade, ou lá pelas aldeias de onde é natural, naturalmente.
De entre outros que já me passaram pela vida, mais ou menos cómicos, conheci em tempos uma mentirosa compulsiva, daquelas da deslavada, que chegava ao cúmulo de se perder nas suas próprias tangas, tamanho era o estendal em que as pendurava, pendurando-se delas. Basicamente, nada do que dizia era verdade, muito em particular as historietas que relatava, designadamente quando — e era sempre — ela era a figura principal daqueles enredos. Mais tarde, casou-se com um grande mentiroso, pessoa bastante respeitada na área, pelo que, naquele caso, não se estragaram duas casas. Desconheço completamente em que dimensão é que estes dois vivem nos dias de hoje e de amanhã, se dá para terem um diálogo trivial sem que desconfiem que o outro lhes está a mentir (Fechaste a porta? - Fechei; Queres mais pão? - Não; Sabes se há ovos no frigorífico? - Há), vivendo perseguidos pela própria mania, ou se são felizes assim, nem colocando a possibilidade de, assim como tão bem (ou tão mal...) mentem, o outro lhes possa estar permanente e reciprocamente a mentir também.
Ora, deu-se que a amizade com aquela dupla rompeu toda pelas costuras, porque parecia mesmo uma mentirinha: hoje eu contava-lhe um episódio que aconteceu comigo — que, conforme sabeis, sou protagonista da melhor sitcom da minha vida. E também da sit-tragi — e, o mais tardar para a semana, recebia ouvidos adentro (ou boca adentro, tal era a dimensão com que a pobre ficava) a mesmíssima história, mas em que, ha-ha, tudo se processava na primeira pessoa: a dela.
Ora, isto cansa. Desgasta uma relação. Desgasta uns nervos. Desgosta uma pessoa humana.
O pináculo deu-se no dia em que me garantiu que a filha, com quatro meses, já gatinhava. E eu, apesar da paralisia maxilar, ainda fui capaz de responder, às escancaras, um fio de baba escorrendo pescoço abaixo (vá, esta parte é mentira, mas hoje a mulher pode):
- Vaizépôlanochãoagoraeaquiquéssasóvendoparacrercomosãotomé.
Ela pô-la. E a miudita, subitamente, não se moveu. Nem gatinhou, como os gatos, nem se arrastou, como os invertebrados todos.
Pronto, isto passou-se. Assim como a amizade, que, qual invertebrado, ou qual gato assanhado, se deslocou para muito longe, e nunca mais a vi.
Ainda hoje não sei se estas pessoas nunca saíram da faixa dos 3 aos 6, em que a realidade e a fantasia são a mesma coisa, mais os super-heróis, as fadas e os unicórnios, ou se se convenceram de tal maneira que os outros são todos parvos, que passam a vida inteira a fazer figuras disso mesmo.
À cautela, corri com ela (e, pelo mesmo caminho, com ele).
(Quem rima sem querer, é amado sem saber.)
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