06/11/2015

Crescer e decrescer

Quando era miúda, tinha uma boneca de cabeça redonda e espalmada, quase como uma bolacha, que, de um lado, estava a sorrir — olhos redondos, pretos —, e do outro estava a chorar — olhos em linha curva. Do lado feliz, a boca era um C, como a lua crescente e, do lado triste, a boca era um D, como a lua decrescente. Mas a boca da boneca nunca mentia e o D queria mesmo dizer tristeza, porque era o lado dos olhos tristes. Era toda de pano, tinha um vestido azul de quadradinhos brancos, muito pequeninos, e um avental verde do lado do sorriso e um avental azul do lado da lágrima, pintada no pano do rosto dela. O cabelo era cor-de-laranja, de fios de lã lisinha, amarrado dos dois lados por dois lacinhos de feltro amarelo, e usava uma franja muito curta, aparada a direito, à la garçonne. Na verdade, a boneca não era bem minha: pertencia à minha mãe, oferecida por um doente, ou trazida por ela de fora. Lembro-me da boneca com todo o pormenor, mas não da sua origem, que, na verdade, me era indiferente. Por algum motivo, sentia-a tão minha, apesar dos cabelos cor-de-laranja (todas as minhas filhas tinham cabelos castanho escuro ou preto, o que a vida me veio a confirmar mais tarde, retirando o itálico ao meu discurso), mas talvez porque os olhos fossem pretos. Cuidava dela com o mesmo desvelo com que cuidava das outras, embora esta me desse muito menos trabalho: não era preciso penteá-la — por ter o cabelo colado, com cola, à cabeça —, nem dar-lhe banho — porque isso a estragaria, descolando o cabelo, os aventais e os laços. Mas deitava-a para que fizesse sestas (exactamente aquilo que nunca ninguém me conseguiu pôr a fazer a mim, mas de que reconhecia a necessidade), tapava-a para que não tivesse frio, e também lhe arranjei uma capa com capuz, que lhe cobria o corpo magrinho e a cara da lágrima.
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Não é boa ideia pintar as pestanas logo a seguir a um acesso lacrimal, de riso ou de choro (ou de cebola, ou de cisco, enfim) — pensava eu, hoje de manhã, enquanto punha rímel (desculpa, Filipa, não resisto. Aquela cena do burro velho tem muita força. Mas crê-me que penso em ti cada vez que digo ou escrevo rímel). Calhou hoje ter sido imediatamente a seguir a um ataque de riso. Tinha as pestanas tão molhadas que o rímel (no qual não poupo um cêntimo, porque tenho olhos sensíveis, aos quais tudo pica) fez com que ficasse com vários molhos de pestanas. Ilhas de pestanas agarradas umas às outras, empapadas em rímel e lágrimas das boas.
Estava eu nestes pensamentos, a lembrar-me da (que sentia) minha boneca ruiva de olhos pretos, e ouvi isto, no rádio:



E foi tão bom começar assim o dia.

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