Caras pernas

Chego à loja das meias — sem maiúsculas — e, colado na montra, um cartaz promocional com a Julia Roberts, que, não sendo linda, é giríssima. Reparo-lhe no vestido curto, nos collants (que as funcionárias insistem em conjugar no feminino, como se não fossem já suficientemente femininos, aos pares), pretos, nos saltos altos, também pretos. Então, quero sentir-me um bocadinho Julia Roberts, por um bocadinho, entrar no cenário, usar aquelas pernas, e sigo, adentrando, pelos pés dos meus saltos altos pretos, pelas pernas dos meus collants pretos. Intimamente, lamento não ter vestido um vestido preto, assim curto, mas depois reparo que o cabelo da actriz está de loiro e sossego-me por o meu cabelo cair sobre vestido vermelho. Papoila.

Na véspera, por coincidências que a vida não tem, tinha anunciado que, no dia seguinte, iria vestir-me de Julia Roberts, para dar mais um dos meus passos importantes. Cada vez que dou um passo importante — todos os dias —, visto-me à confiança, para sentir confiança. Teve piada a reacção de uma delas: "De Julia Roberts? Mas... em qual?"; "Fica descansada que não é na Pretty Woman"; "OK... e na Erin, também não...?". Enfim, ganhou o consenso de outro filme qualquer, que não fosse um destes dois.

Vou para comprar mais collants pretos, porque os rasgo como papel molhado. Sobretudo os pumps e os stiletto arruinam um par deles em minutos, pelo dedo maior. Agora meto-lhe um reforço por dentro, e a coisa melhorou.

Encontro ou encontra-me uma menina maior do que eu. Gigante de pernas, de anca, de maquilhagem, de verve. Em cerca de segundos convence-me a experimentar os tais collants da Julia Roberts. Um par custa exactamente o mesmo que três dos que eu costumo levar. Tenho-os na mão direita e o par Julia na esquerda. O anjo canta-me "Leva só os teus", o diabo grita-me "A senhora vai ver que a resistência destes não tem nada a ver. Se a senhora os rasga com facilidade, esta é a collant indicada para si". Até me parece que o capeta chia para outra pessoa. A senhora, a senhora... Oh, criatura, eu sou a Julia Roberts. 

Levo os collants da Julia até ao balcão e, no último momento, o meu anjo bom, que deve ser gorducho e poderoso, dá um sopapo no diabo, o que me permite decidir que, pensando bem, não quero ter as pernas da Julia Roberts: "Registe só os outros três, esses especiais não vou levar".

E saio, pelas minhas próprias pernas, a sentir-me tão-só, tão só, eu.