13/11/2017

Ela fala tanto # 19

E ainda me surpreende, ao fim de vinte anos de relação.

Conta-me do marido, recentemente desempregado. História cheia de cabelos e rabos presos, que, quando questiono para clarificar/ ajudar/ tentar resolver, esquiva-se para outros mil assuntos que estão sempre mal presos na manga e saem como cerejas. Que a filha também não encontra trabalho, que passa os dias em casa, que nem as tarefas domésticas mais básicas cumpre. (Isto, dito por outros termos, que envolvem uma taça de cereais no chão da sala um dia inteiro.) É tudo em cima das costas dela, exclui deste fardo o filho, que é a melhor coisa que lhe aconteceu na vida (isto, dito por outras palavras, que é um miúdo que não chateia, está lá na vida dele), apesar, digo eu, de já ter perdido dois anos do percurso escolar. 
- Outro dia estava cansada, telefona-me a minha Tatiana a pedir para lhe comprar um gel para refrescar os pés. 
Eu pensei que ela estava revoltada porque, numa casa em que vivem quatro e só entra um ordenado pouco mais do que mínimo, um gel para refrescar os pés deveria ser, talvez, a última das prioridades. 
- Eu ainda lhe disse, Ó Tatiana, eu estou cansada.
Eu pensei que ela disse à sua Tatiana que estava cansada para se esquivar, reforçando a evidência da impossibilidade de lhe comprar um gel para refrescar os pés.
- Ainda por cima, levei que tempos a encontrar o gel, que havia lá uma data deles, todos iguais, e ela queria um especial. 
Eu não pensei. Morri.
- Ela precisa daquilo, porque os ténis lhe aquecem muito os pés, e aquilo é tudo ténis de 70 euros o par.
Já nem precisava deste golpe de misericórdia. Mas olhem, ressuscitei e posso ter sido acometida de um bocadinho de Tourette, porque saiu-me isto assim:
- Eu só gostava de saber o que é que passa pela cabeça de uma pessoa que não trabalha nem estuda, não faz nada o dia inteiro, tem o pai desempregado, e telefona à mãe, que é a única pessoa que sustenta a casa, a pedir um gel para refrescar os pés. 

Fica a questão. 

4 comentários:

  1. Vindo de uma família de 7 a viver num T2 em que, muitas noites, a minha mãe nem comida tinha para por na mesa, este tipo de histórias tocam-me de uma forma particular.

    Infelizmente as pessoas não escolhem de forma consciente estar nesta situação e o sentimento de auto-culpa é avassalador. Não se trata de um creme para pés ou de referir que compram ténis de 70€ quando não têm o que comer: trata-se de tentar relatar algo que alguém "normal" pode fazer, evidenciar detalhes que aos olhos dela são de pessoas "normais" para se sentir integrada e não perder mais uma amiga.

    Esta é uma mulher que luta com todas as forças que tem e não sente que tem a força necessária para fazer as mudanças radicais que a poderão realmente ajudar. Essa consciência virá a tempo, mas não agora.

    É algo muito íntimo, este medo muito corrosivo (o chamado peer-pressure) que leva a que milhares de famílias nessa situação se calem, não procurem a devida ajuda e se endividem mais e mais, até romper a barreira e que percam tudo.

    A cultura e a (falta de) educação das nossas instituições também não ajudam...

    Fica a minha opinião, com base apenas no que li e no meu passado :)

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    1. Que grande (grandiosa) resposta, Solteiro. Obrigada.
      No fundo, a minha "crítica" (mais sob a forma de pasmo) é o tipo de formação que ela está a dar (ou já deu, visto que a rapariga tem 21 anos) à filha — que não sente a mínima necessidade de trabalhar, quanto mais não seja naquilo que a não formação lhe deu: a limpar a casa dos outros, como a mãe. O que lhe transmitiu foi que ela está guardada para muito melhor, sem ter feito o mínimo esforço para que isso acontecesse.

      Não comparo sequer com os meus filhos, porque eles são o fruto de várias outras premissas que, "à partida", não existindo, tornariam esta "discussão" inútil, por não ser sequer possível fazer uma analogia.

      Obrigada outra vez :)

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    2. :) sem dúvida... e eu concordo contigo.

      Há uma grande falha cultural nessa camada da sociedade e o "entitlement" que a filha tem não é normal. A educação que recebi, o ter que deixar a escola a meio para ajudar em casa e o meu percurso profissional conquistado "a pulso" depois disso são exemplos de que é possível sair dessa situação, se tivermos os exemplos correctos e os soubermos seguir - não basta reconhecê-los, há que ter a vontade de os seguir - e que claramente essa filha não o faz.

      Culpa do sistema educativo, da educação que tem em casa e de uma mãe que quer poupar os filhos de sacrifícios e lágrimas. Pensando que os protege, acaba por expô-los de uma forma perigosa.

      (perdão pelos estrangeirismos e perdão pelo meu Português - ando em viagem há umas semanas...)

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    3. E muito me admira também que assim seja. Ela é a primeira de quatro filhas, de uma família de classe média-baixa (pai estivador, a ganhar muito bem na época em que todas eram pequenas, mãe doméstica), que se fez à vida aos 16 anos, apenas com o 4º ano, arranjou trabalho e juntou-se com o namorado, o mesmo com quem vive actualmente. Trabalhou sempre, sustentou-se sempre, grande parte dos primeiros trabalhos sendo explorada em termos de carga horária, tarefas e, claro, financeiramente. Mas nunca a vi virar costas a trabalho. Na minha casa está há vinte anos, e está para ficar. Pode não ser um primor (e quem é?), mas posso deixar-lhe ouro em pó em cima dos móveis, que ela não mexe (quanto mais não seja porque não gosta de limpar o pó. Ok, it was a joke :)). Pude sempre deixar-lhe os filhos, mesmo recém-nascidos, e sair tranquila. Isto não tem preço. E é esta pessoa que formata uma calona daquelas...

      (Logo a mim, que devia ter como título no blog "Pardon my french"...? :))

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