A memória é tramada. Às tantas isto é o Alzheimer a espreitar.
Alô, Vizela!
Nós éramos tão miúdas e passávamos tanto tempo com velhos. Levavam-nos para umas termas onde se faziam tratamentos ao reumatismo, palavra tão grande e incompreensível, que passei a associar a pessoas vermelhas, agasalhadas em pleno Verão, e também inchadas. Se calhar, eram só comilonas. E cheirava intensamente a enxofre no local dos banhos. Os corredores do "balneário" (era assim que se chamava), que devia ter sido um convento, ou um sanatório, eram enormes, tanto em comprimento, como em largura, como em altura. Hoje, se lá for, sou capaz de achar aquilo tudo apertado, como acho tudo o que são interiores. E sapatos. Havia também uns cinzeiros de louça branca, de dez em dez metros - nos meus passos da altura, de duas em duas derrapagens pós sprint -, que tinham escrito a letras azuis "escarrador". Fonix, não consigo fazer um texto emotivo, com imagens destas. Mas o que querem?, fazem parte da minha infância e os escarradores estavam lá. E os velhos escarravam para lá, quando passavam. Faziam aquele barulho da escarreta, sabem? O que é que foi? Puxa, nem sequer estou a falar em cocó, que sensíveis. Está bem, eu calo-me. Mas não risco o que já escrevi. Eles faziam mesmo o barulho e tudo. Também havia umas pessoas que tomavam banhos de ampulheta, não sei para tratar o quê, mas nós íamos espreitar, mulheres para um lado, homens para o outro. Nunca vi tanto rabo junto. Eram enormes. Mas também não fiquei traumatizada. Depois via as pessoas a beberem uma água turva, que saía de uns bebedouros para copos de vidro de formato espalmado, e não descansei enquanto não provei daquela água, cujo gosto a água de lavar os pés guardo até hoje. Ou de lavar o rabo, mas sem sabonete. Pronto, já estava a ir bem outra vez, tinha que voltar à fase anal.
Mas bom, bom a sério, era ir ao parque, à tarde, depois da sesta que todos dormiam, menos eu. Tinha a mania que era carrapita, já aos cinco, seis anos, não dormia, nem de noite, nem de dia (rimei, genitais! Sou amada sem saber!). Lá nos levavam, pela tardinha, em Vizela e em Setembro às cinco da tarde já refresca, e nós entrávamos no parque as duas, muito direitinhas, numa harmonia de corações a descompassar diante da aventura que íamos percorrer logo a seguir, as vozes dos nossos pais a aconselhar "Fiquem ao pé de nós", e nós tão cabras, "Está bem", naquele fiozinho de voz que só as meninas sabem fazer, já com as duas mãos a agarrarem os vestidos, quatro mãos, dois vestidos, primeiro o fecho, quem é que mandava vestirem-nos vestidos com o fecho à frente?, já a acelerar o passo, "Ó meninas, outra vez, não!", depois os vestidos saíam a jacto por cima e ficavam no passeio, já o passo era de corrida, as vozes do pai e da mãe cada vez mais longe, "Ó meninas!", rápido, rápido, antes que o pai nos alcance, só o ruído dos nossos corações em harmonia descompassada, da respiração que ofegava, das sandalinhas a bater no chão e a fazer ressonância nos dentes, de cuecas as duas por ali afora até à fonte, que era só uma fontezinha, duas cobras de bronze que nos davam pelos ombros, duas conchas no chão onde caía a água mais gelada que eu já provei em mim, ainda estou a ver as árvores, tantas, no nosso caminho, sai da frente, sai da frente, a voz do pai a aproximar-se "Ó meninas!", às vezes nem tínhamos tempo de descalçar as sandalinhas, mergulhávamos os pés, uma em cada concha, e acocorávamo-nos o mais que podíamos para nos molharmos inteiras naquela água gélida.
Por isso, olhem, ao menos já posso dizer que andei de cuecas na rua. Posso não levar mais nada desta vida, mas isso levo com certeza. E também a cara dos meus pais, "Outra vez? Mas vocês não têm remédio?".
Não.
E ainda bem! Não é tão bonito em jovens fazer estas pequenas tropelias? Os meus, se eu lhes tivesse feito isso, ainda hoje sorririam a contar a história. Tal como sorriem a contar a história do andar em frente ao Hotel Eva ou da casa que ficava colada à igreha que ficou de pé enquanto a igreja caía no dia do terramoto de 1968... (Ou seria 1969?)
ResponderEliminarSixty nine, Silent. Nunca pensei dizer-te isto assim, a seco.
EliminarTambém não te digo que idade tinha, senão tu fazes contas.
E não te digo que as duas fechámos os meus pais no quarto, à chave, e não houve ameaça, promessa, nem santinho que nos convencesse a passar a chave por baixo da porta. Ainda lá devem estar os dois.
Só te digo que não têm muitas razões para sorrir, com duas filhas deste calibre.
Tu és fresca. Primeiro de cuecas na rua, depois ah e tal deve ser giro é trancar os papás no quarto! Agora vamos mas é cortir!
EliminarFresquíssima, aquela água devia estar para aí a 11º! Mas ó, o reumatismo nunca me agarrou!
EliminarTrancámo-los devia eu ter 6 e ela 7. Morávamos num 4º andar...